"Estava a olhar para aquelas pessoas reais todas e pensei: 'Estão todos mal casados'."
A história é contada por José de Bouza Serrano, embaixador e antigo chefe do protocolo nas páginas do seu novo livro: a infanta D. Maria Antónia de Bragança, filha de D. Miguel I de Portugal, vendo as filhas entretidas com o Almanaque de Gotha, perguntou-lhes que secção liam. As princesas responderam "a terceira", enfurecendo a mãe. "Infelizes, a única que vos interessa é a primeira." O livro em causa reunia informação sobre as famílias reais (no primeiro capítulo) e a aristocracia (no segundo e terceiro), além de dados económicos. Foi publicado na Alemanha, entre 1763 e 1944, ano em que os russos bombardearam as instalações onde eram impressos. É uma obra pequena, de capa vermelha e muitas páginas. Ditava as regras. Aquelas que (quase) nenhuma casa real europeia cumpre.
José de Bouza Serrano, 68 anos, deu-se conta desse fenómeno na Holanda, o seu último destino como embaixador e onde assistiu à entronização do príncipe Guilherme, em 2013. Foi olhando para a plateia daquela cerimónia, em que marcaram presença os herdeiros ao trono das monarquias europeias, que teve a ideia de escrever o livro As Famílias Reais dos Nossos Dias (Esfera dos Livros), que acaba de chegar às livrarias. É, como se diz no pós-título, o olhar de um diplomata português.
Atualmente inspetor de diplomacia do Ministério dos Negócios Estrangeiros, José de Bouza Serrano está a dois anos de se reformar. "Sempre tive a sorte de ser colocado em países que eram monarquias", diz. "Espanha foi o meu primeiro posto, depois estive na Bélgica, no Vaticano - que é uma monarquia eletiva e onde estive cinco anos e onde também ia muita alteza real -, na Dinamarca, vim a Portugal três anos e meio como chefe do protocolo, e na Holanda para acabar." Sorte para quem, como ele, servindo a República, apoia a causa monárquica.
Temos de começar com uma provocação, indo à conclusão do seu livro (página 231): "Mesmo aquelas famílias cujos tronos estão vazias e cujas dinastias já não são reinantes podem exercer enorme poder de influência e fascínio sobre os governantes e os altos funcionários das repúblicas onde habitam." Este parágrafo pode referir-se à casa real de Portugal?
Sim, com certeza. Temos de pensar no papel que o duque de Bragança teve relativamente a Timor e um certo número de diligências que fez em Díli e pequenas coisas discretas. Toda a família Bragança está ligada à nossa história.
Referia-me mais aos descendentes do duque de Bragança. Afonso, o primogénito, 22 anos, que, em teoria, herdaria o trono. Ele já é maior de idade, é um jovem adulto. O que é que ele pode trazer de novo e entusiasmar para uma instituição que os portugueses...
... Não conhecem. Porque, no fundo, 100 anos de República apagaram oito séculos de monarquia. Se formos brutais, radicais, é assim. Ele tem-se dedicado muito a este problema da proteção dos fogos e tem tentado estimular as jovens associações de bombeiros. Tem sempre, por um lado, a preparação que os pais lhe dão, e a identificação da família com a história de Portugal. Portanto, a sua disponibilidade para servir o país, o compromisso para servir os concidadãos. Tenho muita esperança de que esta nova geração seja inspiradora.
Acha que isso pode acontecer pelo casamento, como sucedeu nas casas reais europeias?
Pode. O casamento de D. Duarte [em 1995] foi uma coisa... Quando se casaram tive o privilégio de estar cá. Estava colocado na Bélgica nessa altura e estava a ver que não conseguia chegar porque havia uma greve dos controladores aéreos. Foi extraordinário, muitas pessoas na rua, ajudou muito na altura o presidente ser Mário Soares, porque ele era um homem de esquerda, lutador pelas liberdades, mas de uma grande abertura e convivia perfeitamente com a monarquia. Esteve presente no casamento como também esteve o então primeiro-ministro, Cavaco Silva. Vieram imensos estrangeiros, foi uma festa muito bonita, e as pessoas esquecem-se de que têm representantes da casa real e descendentes da Casa de Bragança. Uma das coisas que tenho no livro é uma árvore genealógica que prova que todos são família. O livro era para se chamar "A Casa de Orange e os seus primos reais da Europa", mas o editor achou que não ia vender nada e ficou As Famílias Reais dos Nossos Dias. Há aí muito sangue Bragança.
Perguntava-lhe do casamento, porque lendo o livro fica claro que estas uniões morganáticas [entre realeza e os que não o são] são polémicas, por um lado, mas, por outro, trazem uma vitalidade que as Casas reais precisavam. Concorda?
Sim, mas temos de ver isso à la longue. Até agora tem funcionado em casas como os Windsor, que têm esta capacidade de se superarem a eles próprios. Quem diria há dez anos que Meghan Markle entraria uma família real. Uma americana, divorciada. Pensa-se na Wallis Simpson, que nunca conseguiu ser tratada por alteza real, só pelos criados. É possível porque Harry é o filho segundo, não é o herdeiro ao trono, a sucessão está garantida. O pai [Carlos] seguiu aquela tradição do heir and the spare (o herdeiro e o sobressalente). E o que nós vimos, numa altura em tudo está em crise, o que foi a aclamação popular daquele casamento.
Como antes o de William e Catherine Middleton, que foi ainda mais contundente.
Porque ele é o herdeiro ao trono e aí o protocolo faz a diferença. Este também teve a sua dignidade, com aquele gesto do príncipe Carlos de levar a noiva ao altar. Um gesto que não foi inédito. O rei Olaf [da Noruega], que levou dez anos a aceitar que o rei Harald se casasse com a rainha Sónia, porque ela era plebeia, levou-a ao altar, para fazer ver a toda a gente que ela era bem recebida na casa real. São gestos, pormenores muito significativos. Mas eles são uma casta à parte, quer a gente queira quer não. São treinados desde sempre para a função real.
Se os membros das casas reais são educados para tal, mas depois querem casamentos por amor, e sujeitos ao desamor, que sentido faz terem privilégios?
Essa é a pergunta que, mais cedo ou mais tarde, será feita.
E qual é a sua opinião?
Que não, que não queremos. Se a realeza é igual à vizinha do lado ou se é igual a mim, se vai à escola com os meus filhos e não sobressai em nada, porque hei de estar a fazer uma reverência a uma pessoa que tem um privilégio de nascimento, um emprego vitalício? Uma pessoa se é filho de um alto funcionário ou de um grande médico não herda a função do pai. Porque é que numa altura de globalização, em que o mundo mudou tanto - é a primeira frase do livro: "O mundo em que nascemos já não existe" -, porque é que tenho de fazer uma vénia a alguém igual a mim? A aristocracia é uma parcela superior da sociedade e a realeza está acima. Eles eram preparados para reinar em qualquer país e tomar as dores desse país, assimilar-se. Durante muito tempo achavam que esse poder lhes vinha por direito divino. Depois, começaram a pensar na vontade do povo. Já era com a ajuda de Deus, mas com a vontade do povo. E muitas vezes foram confirmados. Na Noruega, quando houve a cisão com a Suécia, ele quis fazer um referendo. Era pior para ele não ter a adesão do povo, numa altura em que as mulheres não votavam, e os homens só a partir dos 25 anos.
Portugal não sente necessidade de ter um rei, porque tem as mesmas fronteiras há muito tempo...
E deve-as aos seus reis, mais do que aos presidentes da República.
Mas facto de existir essa coincidência das nossas fronteiras com a nossa língua, e ela ser a nossa pátria, essa identificação que não existe na Bélgica, na Noruega ou na Espanha.
Podemos dispensá-la? Não, porque a história é muito mais rica do que isso.
Ganharíamos com uma Coroa.
Eu acho que sim. Mas sou eu que digo na minha fantasia monárquica [risos]. Não faço proselitismo, não estou a vender isto a ninguém. Eu, no fundo, sou um monárquico com serviço à República, porque sou funcionário público, mas como também não escondo nada, sirvo sempre a República. Se vir o meu gabinete, eu sirvo a República [aponta para as fotografias dos Presidentes da República] sempre a olhar para a monarquia [aponta para as fotos dos membros de casas reais].
Deve ser um dilema.
Não é, porque gosto muito do meu país e da minha profissão, que é representar o meu país lá fora. E tive a sorte, pensando bem, de todos os postos onde servi serem monarquias. Servi sempre bem a República e ao mesmo tempo mantive esta causa, a monarquia, que é nós gostarmos que o nosso país fosse organizado dessa maneira. Uma monarquia democrática, parlamentar, ninguém põe em causa que não seja assim. E o meu pai, que era republicano, sempre me alimentou os devaneios monárquicos. Sempre houve uma grande tolerância.
Não herdou esse gosto de família.
Da minha mãe sim, eram espanhóis. Os reis estavam no exílio no Estoril. Mas sempre soube descobrir as coisas de um lado e do outro. E a história de Portugal é riquíssima.
Lendo o seu livro, a ideia de casar fora do círculo aristocrático não é de agora.
Sónia da Noruega era filha dos donos de uns armazéns, nem para os parâmetros noruegueses era rica. Ela foi a primeira, no século XX, sem uma gota de sangue real, nem nobre. Porque, por exemplo, o rei dos belgas casou-se com uma aristocrata [Mathilde], que já tem uma formação que procura imitar a realeza. Por exemplo, com a Lady Di não houve a ideia de a casar com os primos alemães, que estavam todos malvistos e tinham atacado a Inglaterra e feito sofrer tanto o povo. No casamento de Isabel II e do príncipe de Edimburgo não foi ninguém da família dele, por terem simpatias nazis.
Até que ponto as simpatias nazis de Eduardo VIII e Wallis Simpson pesaram na facilidade com que aceitaram a abdicação?
Sim, Churchill percebeu isso, embora o divórcio fosse ainda uma hot stuff. Entretanto, a rainha jurou que ia servir o seu povo até ao fim, o que no caso deles é até à morte, porque não põem a hipótese de uma abdicação como na Holanda. Adorei ver a entronização de um rei. Há cinco anos, estava a olhar para aquelas pessoas reais todas e pensei: "Estão todos mal casados."
Acha que estão todos mal casados?
Mal casados para as regras do Almanaque de Gotha. Hoje não, porque o Gotha deixou de se fazer [em 1944, foram destruídos durante a guerra pelos alemães].
Voltemos à Sónia da Noruega, que inaugura esta época de casamentos morganáticos, entre cabeças coroadas e plebeias.
Com grande resistência, e depois não conseguia ficar grávida. Como conto no livro, chamavam-lhe a Fabíola do Norte. A rainha Sílvia, da Suécia, também não passou bem. O príncipe, Carl Phillip, foi herdeiro ao trono por muito pouco tempo, porque mudaram a lei com efeitos retroativos e Victoria tornou-se a herdeira. O pai ficou tristíssimo e manifestou-se. Na Suécia, por um lado, como na Noruega, as repúblicas não eram fashionable e mudar tudo sai muito mais caro. A monarquia tem aquele tipo de património que pode ser usado no dia-a-dia. Têm tudo, os palácios, os coches, os guardas de honras. Quando eu era chefe do protocolo acusavam-me imenso de pôr cavalos a mais nas visitas de Estado [risos], mas eu dizia que se nós temos os cavalos, os homens, e há a lei das honras militares que diz quantas pessoas devem ir, podemos encolher, mas não estou a fazer nada que seja mal gastar. Tudo tem os seus preceitos na lei. E hoje a República já usa os palácios da monarquia. E bem! O senhor Presidente da República, com imensa sensibilidade, senta-os mais ou menos. Tem-se portado muito bem, porque sempre disse que o senhor duque de Bragança e o senhor cardeal-patriarca, um príncipe eleitor de outro Estado, pode sair eleito, e Portugal não tem qualquer categoria, é uma simples cortesia. No outro dia vieram os Príncipes da Bélgica e convidou-os e a outras primas, as filhas da princesa Teté, a princesa Teresa de Orleães.
Diz que Espanha é a monarquia com a vida mais difícil no futuro. Porquê?
Porque temos vivido até agora com bipartidarismo, como em Portugal. Agora vivemos uma fragmentação - Podemos, Ciudadanos, separatismos, os independentismos catalães, republicanos de base. Tivemos uma certa culpa. Em 1640, preferiram ir abafar a revolta na Catalunha, destes que são ricos e produtivos, os portugueses já lá vai, conseguimos ficar independentes. Desde então, eles estão mal na sua pele. Contestam os títulos do rei de Espanha, os principados. É uma Coroa frágil e nova. Voltaram por vontade de Franco, que saltou um dos elos, o conde de Barcelona [D. Juan], mas sempre com aquela ideia galega de não ter a certeza. E tinha uma série de outros pretendentes ao trono. Até casou uma neta com o duque de Cádis. Podia mudar de vontade. Veio D. Juan Carlos, que sofreu muito, era pequenino, em Espanha. O ambiente era agreste, ele gostava das irmãs, dos amigos. Sacrificou-se muito. Hoje como arranjamos um consenso? O que eu penso - fui cinco anos secretário da embaixada de Madrid - é que não estamos longe de alguém, por uma associação parlamentar, pedir um referendo entre democracia e república. São os espanhóis muito monárquicos? Não. São juancarlistas, os que gostavam do rei - que não são estes novos, que já nasceram em democracia, nunca houve golpes de Estado.
Guilherme da Holanda, que tomou posse em 2013, quando era embaixador, tornou-se popular. Era visto como demasiado folião.
Máxima tem ajudado imenso. E se olhamos para a Bélgica, a rainha tem sido fundamental naquele regime. As mulheres têm tido uma grande influência.
E preparamo-nos para uma Europa em que reinam as mulheres.
É. Espanha, Bélgica, Holanda, Noruega, Suécia, por duas vezes. É l'air du temps.
Qual acha que é a casa real europeia mais vital, uma monarquia muito sólida?
Vejo a holandesa, mas também a belga. Tem uma grande hipótese, o rei está a mostrar-se e ela, Mathilde, tem tido um papel muito importante. Ele era um homem tímido. Viveu aquele truque da irmã querer ficar com o lugar dele, Philippe estava solteiro e sem filhos. Foi preciso a rainha Fabíola dizer que o rei Balduíno queria que fosse ele o herdeiro. Quando Balduíno morreu, o pai perfilou-se para ser rei. Vivi na Bélgica três anos, e é uma sociedade muito dividida.
O príncipe Carlos, 70 anos, algum dia será rei?
A rainha Isabel II nunca saltará [uma geração]. Nesta última reunião da Commonweatlh, ela preparou o caminho para o filho ser o soberano dos 15 Estados. Mas não a vejo abdicar. Carlos pode ter um reinado curto. A rainha está mais distendida e, apesar das pessoas reais serem treinadas para não mostrarem os sentimentos, no outro dia convidou Meghan Markle para uma viagem no comboio real e aparecia a sorrir.
Os casamentos morganáticos começam com o fim da publicação do Almanaque de Gotha, em 1944.
Pois foi [risos]. Os alemães vão ter de reconstruir as indústrias da publicação. O Almanaque de Gotha era importante para os diplomatas, pois como tinha quadros, os diplomatas faziam informações económicas dos países.
(Artigo originalmente publicado a 26 de novembro de 2018)