Em finais de março, o governo de Viktor Orbán foi autorizado a governar através de decreto, sem necessidade de aprovação do Parlamento húngaro, para combater o coronavírus. Uma decisão que fez soar os alarmes a nível internacional, onde a reputação do primeiro-ministro não é das melhores. Quase dois meses depois, Orbán prepara-se para devolver esses poderes. Mas onde é que os usou?.O chefe de gabinete de Orbán, Gergely Gulyás, anunciou no domingo que o governo vai apresentar esta terça-feira (26 de maio) ao Parlamento o decreto para revogar os poderes especiais de emergência que o primeiro-ministro obteve em finais de março. A ideia é que o decreto seja aprovado já em junho, mas uma alteração aos números do coronavírus podem obrigar a um recuo..A Hungria contabilizava, até esta segunda-feira, 3756 casos de covid-19 (com 1711 recuperados), tendo registado 491 mortes desde o início da pandemia..Numa entrevista à emissora pública Kossuth Radio, na sexta-feira, o primeiro-ministro defendeu que dar poderes especiais de emergência ao governo foi "uma das melhores decisões", já que isso permitiu atuar a tempo sem "ter que lutar contra a oposição de esquerda", evitando assim uma propagação do vírus em massa na Hungria..Além disso, Orbán disse que as críticas que lhe foram feitas não eram fundadas. "Damos a todos a hipótese de pedirem desculpa à Hungria por causa das acusações injustas", afirmou. Ken Roth, diretor executivo da Human Rights Watch, defendeu que Orbán tinha criado a primeira "ditadura na Europa", numa entrevista à Deutsche Welle. Já a Freedom House considerou que a Hungria já não era uma democracia, mas um regime híbrido ou transitório..Ataques aos críticos.A lei que deu poderes especiais a Orbán, sem impor um prazo limite, previa que quem partilhasse factos considerados falsos ou distorcidos - e que pudessem interferir com a proteção do público ou criar alarme social - podia enfrentar vários anos de prisão. Na semana passada, a polícia húngara anunciou que já tinha aberto 87 investigações, entre as quais a pessoas que disseram mal do governo de Orbán no Facebook..Um deles, András Kusinszki, foi preso por ter criticado nesta rede social a decisão do governo de levantar o confinamento obrigatório. As acusações foram abandonadas, segundo o site Politico, mas não sem antes a polícia publicar no seu YouTube o vídeo de Kusinszki a ser detido. As autoridades defenderam que as leis não põem em causa a liberdade de expressão..Mas, de resto, Orbán não precisou dos poderes especiais para continuar com a política que estava a empreender antes. Afinal, o seu Fidesz tem a maioria de dois terços no Parlamento húngaro.."Muitos críticos interpretaram a lei aprovada a 30 de março como uma sentença de morte para a democracia parlamentar e acusaram Orbán - erradamente - de fechar a legislatura. Isso nunca aconteceu", lê-se na análise no site Balkan Insight.."Pelo contrário, Orbánfalou em sessões plenárias várias vezes e usou a sua supermaioria de dois terços para aprovar uma série de medidas controversas", refere, defendendo que ao ceder agora os seus poderes, o primeiro-ministro ganha na batalha de relações públicas ao retirar um argumento aos opositores.Eis algumas das medidas controversas que foram aprovadas..Revogados direitos dos transgénero.O Parlamento húngaro aprovou na semana passada uma emenda constitucional que impede as pessoas transgénero ou intersexo de alterarem legalmente o seu género. A emenda foi aprovada por 134 votos a favor, 56 contra e quatro abstenções..Segundo a Human Rights Watch, a legislação redefine a palavra "nem", que em húngaro pode significar tanto sexo como género, para se referir especificamente ao sexo da pessoa na altura do nascimento como o "sexo biológico baseado nas características sexuais primárias e cromossomas". A lei húngara estabelece que o sexo no nascimento, uma vez registado, não pode ser alterado.."O Comissariado para os Direitos fundamentais da Hungria deve atuar urgentemente e solicitar ao Tribunal constitucional que reveja e anule as provisões desta lei. A identidade de género deve ser reconhecida legalmente e a todos deve ser permitido a alteração do seu nome legal e do seu género em todos os documentos oficiais", assinala por seu lado a Amnistia Internacional..Rejeitada proteção de vítimas de violência.No início de maio, o parlamento húngaro tinha já rejeitado a ratificação de um tratado internacional destinado a reforçar a proteção das mulheres vítimas de violência, mas entendido pelo governo húngaro como promotor "da ideologia destruidora do género"..A Convenção de Istambul cria uma base de inclusão, reconhecendo o direito de toda a gente de viver livre de violência, independentemente da orientação sexual, identidade de género, estatuto de imigração ou outras características, obrigando os estados signatários a um mínimo de parâmetros para a proteção das mulheres vítimas de violência, assim como à prevenção e à acusação destes crimes..Mas os conservadores do Fidesz defendem que a convenção promove a "ideologia de género", um termo usado para alegar que a igualdade de género prejudica os "valores tradicionais da família" e encoraja a homossexualidade. Além disso, a proteção às mulheres migrantes e refugiadas vai contra os esforços húngaros de lutar contra a imigração ilegal. E as mulheres já estão protegidas na lei húngara, alegam..O segredo da linha ferroviária e mais.Os deputados aprovaram também que vários aspetos do projeto para a moderna linha ferroviária que ligará Budapeste a Belgrado, um projeto de Orbán que já vem desde 2014, serão secretos. A ligação, cujos custos não param de aumentar, será financiada a 85% pela China, sendo construída pela empresa de um empresário próximo do Fidesz..No setor da Cultura, o Parlamento aprovou que funcionários dos museus, bibliotecas, arquivos, teatros ou orquestras já não serão considerados funcionários públicos a partir de novembro. Além disso, o governo reforçou o controlo nos teatros e nas escolhas artísticas, com o órgão de supervisão a ter agora cinco membros nomeados pelo governo (eram três)..Só na última sessão legislativa, foi ainda aprovada o extensão dos direitos de vigilância das autoridades policiais do país, para ajudar a prevenir contra um "ciberataque", segundo o site Hungary Today. As autoridades poderão aceder ao conteúdo das redes de comunicações eletrónicas de organizações governamentais locais ou estaduais.Ceder à União Europeia.Depois de o Tribunal de Justiça da União Europeia ter considerado que manter requerentes de asilo nas zonas de trânsito da Hungria equivalia a "detenção" e que era permitido por um período máximo de quatro semanas, a Hungria decidiu encerrar esses campos na fronteira sul com a Sérvia.."A zona de trânsito era uma solução que protegia as fronteiras da Hungria e a infeliz decisão do tribunal da UE obriga a Hungria a eliminar essas zonas", explicou numa conferência de imprensa Gergely Gulyas, chefe de gabinete de Orbán. Gulyas especificou que 280 pessoas seriam transferidas para centros no país..A Hungria construiu cercas com arame farpado nas fronteiras do sul com a Sérvia e com a Croácia e, mais tarde, construiu zonas de trânsito na fronteira com a Sérvia após a crise dos migrantes de 2015, quando cerca de 400 mil pessoas passaram pela Hungria a caminho da Europa Ocidental..As medidas faziam parte das políticas anti-imigração cada vez mais rigorosas de Orbán, que considerou a decisão do tribunal "uma medida perigosa porque põe em causa toda a segurança da União Europeia".