"A Carta das Nações Unidas é uma estrutura sólida em cima da qual podemos construir um mundo melhor." As palavras são do então presidente dos EUA, Harry Truman, proferidas no final da conferência de São Francisco onde, a 26 de junho de 1945, foi assinado o tratado fundador da organização..Mas, 75 anos depois, a estrutura que começou por ser para 50 países é agora a de 193 estados membros. E já não é tão sólida. As brechas que antes pareciam apenas visíveis no Conselho de Segurança, criam divisões até em estruturas que pareciam apolíticas, como a Organização Mundial de Saúde, debaixo de fogo por causa da pandemia do coronavírus.."As Nações Unidas estão a assinalar o 75.º aniversário num momento de grande disrupção para o mundo, agravado por uma crise de saúde global sem precedentes com severo impacto económico e social. Vamos sair mais fortes e mais bem equipadas para trabalhar juntos? Ou vai a falta de confiança e o isolamento crescer ainda mais?", questiona a ONU no evento que terá lugar online para assinalar a data. .A crise não é de hoje. Apesar dos desejos expressos na carta das Nações Unidas (que seria ratificada e entraria em vigor só em outubro do ano seguinte) e de não ter voltado a haver uma guerra mundial como a que acabou naquele 1945, a Guerra Fria trouxe a frustração de ter que trabalhar com dois países em lados opostos com direito de veto no Conselho de Segurança -- que tem travado uma reformulação que traduza de forma mais representativa o que é o mundo de hoje..Rússia, EUA e China: 21 vetos em 5 anos.Apesar de ainda não ter voltado aos números de entre 1975 e 1990, o número de vetos dos cinco membros do Conselho de Segurança tem vindo a aumentar nos últimos anos. Ou melhor, de três dos cinco membros, já que nem Reino Unido nem França fazem uso dessa ferramenta desde 1989..Às duas potências em lados opostos na Guerra Fria (Rússia usou o veto 14 vezes nos últimos cinco anos e os EUA duas vezes), junta-se também a potência emergente, a China (cinco vetos). "Nós, o os povos das Nações Unidas", como se lê no preâmbulo na Carta assinada em 1945, acaba por ser transformado no desejo dos cinco países do Conselho de Segurança, independentemente de quem os governe, com este a perder força na impossibilidade de chegar a consenso..Desde o início da pandemia, o Conselho de Segurança ainda não aprovou uma resolução sobre o tema (mas já passou resoluções sobre a Líbia ou o Sudão do Sul), não tendo sequer chegado a acordo para apoiar o apelo do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, para um cessar-fogo global..OMS: a última arma de arremesso.Em causa uma referência à Organização Mundial da Saúde (OMS), que a China queria fazer, mas que os EUA recusaram. A OMS, uma organização de peritos, transformou-se num instrumento político por causa do coronavírus..No passado, a OMS já foi liderada por líderes mais defensores de ação (como a norueguesa Gro Harlem Brundtland, que lidou com mão de ferro durante a pandemia de SARS, em 2003) e por aqueles que defendem uma agência mais apolítica (como Margaret Chan, com dupla nacionalidade chinesa e canadiana, criticada pela lentidão em lidar com a epidemia de ébola). O atual diretor-geral é o etíope Tedros Adhanon, que tem estado debaixo de fogo.."A covid-19 é um novo desafio. Um vácuo existe onde o mundo normalmente olharia para a liderança americana. Em vez disso, vê o presidente Donald Trump a comportar-se como um louco, sugerindo curas malucas. Trump tem estado mais interessado em culpar a China pela pandemia do que em gerar uma resposta internacional", escreve a revista The Economist na sua edição desta semana, com um trabalho alargado sobre a nova "desordem mundial", aproveitando o aniversário das Nações Unidas..Pequim é acusada de ter escondido o verdadeiro impacto da pandemia numa fase inicial -- só alertou para o novo coronavírus em dezembro, quando se fala que poderia estar a circular em Wuhan pelo menos a partir de outubro, e só em janeiro admitiu que era possível a transmissão entre seres humanos..Do outro lado desta guerra de palavras, estão os EUA, que depois de terem ignorado os alertas sobre o coronavírus, resolveram passar as culpas para a China (que entretanto começara a conter a covid-19) à medida que o número de casos positivos e mortos ia aumentando nos 50 estados. E tomaram a decisão de suspender o financiamento à OMS, ameaçando até sair, por considerarem que este organismo não mostrou independência em relação à China..Mas a OMS, que no passado também já foi acusada de ser pouco crítica, está dependente das informações que cada estado membro faculta, ficando por isso dependente do que cada regime decide partilhar. O futuro pode passar por reanalisar a forma de trabalhar da organização, que logo à partida não tem poder para sancionar os seus membros ou obrigá-los a seguirem as suas diretivas..O virar de costas de Trump."O futuro não pertence aos globalistas. O futuro pertence aos patriotas", disse Trump na Assembleia Geral da ONU do ano passado. Já tinha então deixado a UNESCO (a organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), num divórcio que tinha começado a desenhar-se em 2011 quando esta aceitou a entrada da Palestina, e o Conselho de Direitos Humanos, que acusa de ser tendencioso contra Israel e que nunca foi bem visto nos EUA..Trump optou ainda por sair do acordo do clima de Paris, assim como deixar cair o acordo sobre o nuclear iraniano. E, apesar de não ter ainda saído da Organização Mundial do Comércio, tem minado o seu funcionamento ao recusar nomear um juiz para o órgão de supervisão. E as ameaças de mais cortes orçamentais (em 2018, os EUA contribuíram com 10 mil milhões, quase um quinto do orçamento) não auguram coisas boas..Mas a culpa para os problemas das Nações Unidas não estão só do lado dos EUA, com a Rússia a vetar qualquer condenação da sua anexação da Crimeia, em 2014, na prática ignorando qualquer chamada de atenção da parte das instituições internacionais e mostrando a incapacidade da ONU de lidar com estas situações..O futuro?."O multilateralismo sempre foi uma interação entre as preocupações nacionais e as comuns. Quando os governos se unem, os resultados têm mudado vidas", escreve o conselheiro especial para o 75.º aniversário, Fabrizio Hochschild, num artigo do New Europe. "O progresso tem sido desigual e os falhanços bem documentados e trágicos. E agora, os ganhos duramente conquistados nas décadas anteriores estão sob ameaça", acrescenta, falando da pandemia, mas não só..Este aniversário, indica no artigo intitulado "o futuro que queremos, as Nações Unidas que precisamos", não é visto "como uma celebração, mas como um momento de reflexão", explicando como está a decorrer desde janeiro um questionário online onde todos são chamados a dar a sua opinião. Os resultados serão apresentados durante a Assembleia Geral da ONU, em setembro.."Este aniversário deve ser a oportunidade para juntos reinventarmos o mundo que partilhamos", disse, por seu lado, o secretário-geral da ONU. "Para isso, precisamos de um multilateralismo efetivo que funcione como um instrumento de governação global onde for necessário", indicou Guterres, sublinhando que é necessário "repensar a maneira como as nações cooperam".