Turismo. Os dias negros dos hotéis e do alojamento local
O Hotel Rural Quinta do Marco, em Tavira, fechou as portas nesta terça-feira, 24 de março, sem saber quando volta a abrir. "Não posso ter a casa aberta com mais empregados do que clientes", disse ao DN Hélder Martins, antigo presidente da Região de Turismo do Algarve, um dos muitos hoteleiros que vivem os dias mais negros de que se lembram no setor. Dificuldades que já atingem grupos como o do emblemático Ritz Four Seasons, em Lisboa, fechado até 1 de maio.
Até ao domingo passado, o Hotel Rural daquela região algarvia ainda teve clientes. Era um grupo de suecos que estavam a atravessar a Europa de bicicleta e que - rendidos a Portugal em geral e ao Algarve em particular - equacionavam ficar por cá mais uns meses.
Mas o estado de emergência acabou por precipitar a decisão de Hélder Martins: "Não era minimamente viável. Além destes, na semana passada tive um grupo de motards alemães que, uma vez impedidos de atravessar a fronteira para Espanha, acabaram por voltar para trás e ficar aqui. O resto foi tudo cancelado", conta o proprietário do hotel, protótipo do retrato do parque hoteleiro do país. Ali, ficam fechados 28 quartos e foram para casa 16 funcionários. "Estava agora a contratar para o verão, habitualmente chegamos aos 24 postos de trabalho", acrescenta Hélder Martins, que entretanto não sabe como vai enquadrar legalmente os trabalhadores no âmbito desta nova realidade que a pandemia do covid-19 trouxe à vida de todos, atingindo o turismo de forma dilacerante.
Por agora, fecha durante dois meses. "Depois logo se vê. É que nesta área nem sequer é possível fazer lay-off", lembra o empresário, que diz ter feito "um investimento fortíssimo" no hotel rural com apenas quatro anos. E, nessa linha de recuperação do investimento, este seria "o primeiro ano em que iríamos ter um período mais tranquilo". Mas uma pandemia arrasou com os planos - e provavelmente com a sobrevivência - de muitos negócios turísticos como o de Hélder Martins.
O hoteleiro levanta várias questões para os próximos tempos, nomeadamente a exequibilidade das linhas de crédito entretanto anunciadas pelo governo. "O que sabemos é que existem para as microempresas, mas para as PME não existe nada. Além disso, os juros são altíssimos. Assim como a carga de impostos que está a ser diluída no tempo. Como é que as pessoas vão pagar no segundo semestre se não vão ter faturação?"
Para Hélder Martins há ainda uma outra preocupação, que se prende com a segurança dos espaços. "A partir desta terça-feira o meu hotel fica fechado, assim como tantos outros. Como é que vamos garantir que não vão ser vandalizados?", questiona, sem contar com a manutenção dos equipamentos que é preciso fazer.
Foi precisamente a questão da manutenção que levou a hoteleira Elisabete João, em Pombal, a optar por manter uma funcionária no Cardal Hotel, um dos três da cidade. O espaço encerrou a 14 de março, ainda antes de decretado o estado de emergência, mandando para casa os dez funcionários que fazem parte dos quadros. "Ainda não sei muito bem como vou fazer em termos legais. Para já, foram para casa, estão em segurança e, como são pessoas que trabalham connosco há muitos anos, isso nem sequer foi ainda falado. Arranjaremos a melhor solução para todos", sublinha a hoteleira.
Além do Cardal Hotel, Elisabete João dedica-se também ao alojamento local, uma área que "parou logo, completamente". Ainda assim, no universo dos negócios a que se dedica na área do turismo, aquele que sentiu mais rapidamente os efeitos da pandemia foi a empresa D Travel, um recetivo que representa no estrangeiro algumas agências de viagens. Elisabete trabalha sobretudo com os mercados de Itália, Bélgica e França, constituído maioritariamente por grupos de seniores. "Não tive outra hipótese que não fosse avançar logo para o lay-off", admite ao DN, embora relate imensos casos de quem "começou a despedir já há duas semanas". "Na última reunião em que participei de Destination Management Company em Portugal já tinha colegas a avançar para despedimento coletivo."
Elisabete João tem o hábito de ser otimista, mas neste caso está a ter alguma dificuldade. A empresária acredita que "esta crise acentuada vai durar pelo menos dois ou três anos no setor". "Agora, imagine uma família que viva exclusivamente de um hotel..."
Os últimos dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) são relativos ao final de 2018. Na altura, em pleno inverno, a hotelaria registava uma ocupação de 30%, seguida do alojamento local (32%), e por último o turismo no espaço rural e de habitação (24,7%). Estes números diziam respeito à pior época do ano para o parque hoteleiro do país. Ainda segundo o INE, no verão de 2018 a taxa de ocupação chegou a ser de quase 70% em termos globais.
Os dados mais recentes (2019) foram compilados pelo Turismo de Portugal. Precisamente há um ano, em março, o país registava uma taxa de ocupação de 44%. Já em agosto ultrapassou os 77%. A percentagem mais baixa registou-se em janeiro, com 29,8% de ocupação. Por estes dias sucede-se o fecho de portas de hotéis de menor ou maior dimensão. É o caso de um dos mais emblemáticos hotéis de Lisboa, o Ritz. Num breve comunicado divulgado nas páginas do Facebook e no Instagram, o Ritz Four Seasons Hotel informa que "a segurança e o bem-estar dos nossos colegas e hóspedes continua a ser a nossa prioridade e contamos poder recebê-lo a partir de 1 de maio".
Na sexta-feira passada, uma vez declarado o estado de emergência no país, o presidente da Associação de Hotelaria de Portugal estimava que metades dos hotéis do país já teriam encerrado em consequência do impacto do covid-19. Raul Martins apontava então para "uma quebra de 30%" na faturação até ao final do ano. Em declarações à Lusa, aquele responsável afirmava que "só no final de maio poderemos começar a registar a inversão desta tendência", mas "antes de julho não estaremos a reabrir hotéis".
Quando há duas semanas a crise chegou à maioria dos hotéis em Portugal já a cidade de Fátima se ressentia de um mercado que deixou de se alimentar de turismo religioso: os coreanos, que nos últimos anos sustentam boa parte da chamada época baixa no parque hoteleiro.
Alexandre Marto, representante do grupo Fátima Hotels, a maior cadeia nas proximidades do santuário, contou ao DN como é que 2020 chegou já envolto em crise, mesmo quando a pandemia parecia dizer apenas respeito à Ásia. Ao todo, os hotéis disponibilizam habitualmente mais de mil camas. E apesar de nenhum dos trabalhadores ter sido dispensado (mantêm-se algumas centenas de postos de trabalho), Alexandre Marto não sabe por quanto tempo conseguirá o grupo aguentar pagamentos de salários. Também ele é muito cético em relação às linhas de crédito disponibilizadas pelo governo: "Não estou a ver como é que os empresários conseguirão pagar esses empréstimos, sinceramente. Ou os créditos são perdoados (e transformados em subsídios), ou então só será possível pagá-los a muito longo prazo, se calhar a 30 anos."
Alexandre Marto sublinha que, no decurso da crise, Fátima está "no olho do furacão". Afinal, o turismo religioso alimenta-se maioritariamente dos mercados asiático, logo seguido do italiano do espanhol. "Além disso, a maioria dos turistas vêm habitualmente em grupos, que compram pacotes nos hotéis. E esses são constituídos maioritariamente por pessoas da terceira idade", aponta o gestor hoteleiro, enumerando assim três razões que o fazem temer pelo futuro.
Reservas canceladas, apoios insuficientes e plataformas acusadas de não cooperar com os anfitriões. A pandemia do covid-19 está a colapsar um setor do qual dependem muitos portugueses e que estava em crescimento.
Lisboa encheu-se de apartamentos de alojamento local com a chegada dos turistas. Mas o que fazer quando não há turistas? Quando uma epidemia manda toda a gente fechar-se em casa? Para Fátima Pereira, isto pode significar o fim dos seus rendimentos. O seu Unique Lisbon Rooms, um pequeno alojamento local em Arroios com apenas sete quartos, teve todas as suas reservas anuladas. As reservas de abril foram todas canceladas e grande parte das que estavam agendadas para o mês de março. Esta pandemia irá custar-lhe o seu rendimento mensal, bem como o dos seus colaboradores. Veremos se apenas deste mês ou dos próximos, consoante a extensão do problema.
Apesar do problema, Fátima não quis ficar parada. E assim disponibilizou os quartos vazios a profissionais de saúde deslocados em Lisboa. Anunciou a cedência de quartos na página do Facebook do Unique Lisbon Rooms no dia 15 de março e no dia seguinte recebeu logo o primeiro hóspede: um enfermeiro. A iniciativa já levou à criação de diversos grupos do Facebook para canalizar as inúmeras ofertas que têm surgido, nomeadamente o grupo Covid19 - Alojamento/outro serviço SOLIDÁRIO para profissionais de saúde e outros grupos menores focados em regiões específicas de Portugal.
Mas estas ações de solidariedade são uma espécie de paliativo para a alma. Porque o que os donos dos alojamentos locais estão a prever é uma autêntica hecatombe. Teresa Costa Gomes, contabilista e gestora de 13 apartamentos, acha que não haverá reservas até finais de junho. Neste momento, todos os seus imóveis estão vazios. O setor está muito instável e nenhuma medida terá efeitos práticos antes de maio.
Teresa teria, à semelhança de outros proprietários de imóveis em AL, uma margem de lucro à volta dos 50%. O prejuízo vai depender do género de negócio adotado por cada pessoa. Muitas pessoas contam com os rendimentos do verão, época em que o setor é mais próspero, para compensar e sustentar o inverno. No seu caso, a estrutura de custos é "magra", uma vez que conseguiu montar a sua própria estrutura e não precisa de recorrer à subcontratação para a maior parte dos serviços. No entanto, reconhece que é uma minoria. Muitos empreendedores no setor de AL recorrem à subcontratação de serviços de check-in, limpeza, lavandaria, entre outros. No seu trabalho de contabilista, Teresa aconselha os seus clientes ao cancelamento dos débitos diretos, uma vez que os pagamentos continuam a cair nas suas contas automaticamente. Assim, podem ir gerindo as prioridades.
Eduardo Miranda, presidente da Associação de Alojamento Local em Portugal (ALEP), não tem meias-palavras: diz que o setor está a "colapsar". Todos os alojamentos locais em Portugal estão a atravessar um "cenário completamente dramático" com a previsão de "faturação quase nula nos próximos meses".
A associação representa cerca de quatro mil associados de todo o país, num universo próximo dos 90 mil alojamentos. "O negócio paralisou", admite Eduardo Miranda, que por estes dias tem outras preocupações inerentes à crise. "Muitos dos que detinham alojamento local para subsistir, e que se encontravam em nome individual, foram excluídos pela Segurança Social. Já era um problema que estávamos a acompanhar desde a atualização da lei. Mas agora isso coloca-os numa situação ainda pior, nomeadamente os que têm filhos menores de 12 anos (e que na melhor das hipóteses ficarão com 1/3 dos rendimentos declarados), ou mesmo os que não têm mais nenhuma forma de rendimento".
O presidente da ALEP sublinha que "esse é um problema que precisa de ser urgentemente resolvido". Além desse, há outro que o preocupa sobremaneira: a questão das "mais-valias" sobre os imóveis, uma vez que "mesmo aqueles que queiram sair da atividade podem não conseguir, pelo custo absurdo de um imposto que é irreal". E Eduardo acredita que serão muitos os que quererão sair da atividade, ou que precisem mesmo de ocupar as casas para a própria família.
Michele Arriaga é responsável por fazer o check-in de várias casas. E custa-lhe pensar que ainda em fevereiro mostrava os apartamentos aos clientes com total normalidade e fazia uma pequena apresentação da cidade de Lisboa. Suspendeu esse hábito quando começaram a circular as primeiras recomendações sobre o covid-19 em Portugal. Michele adotou as medidas de higiene recomendadas pela DGS. Mas o último check-in que fez foi a um profissional de saúde, dos muitos que estão a recorrer ao alojamento local por motivos de deslocação profissional ou para se separarem temporariamente das suas famílias, por receio de contaminação.
Depois da perceção de que o coronavírus não ia embora tão rapidamente, diversas plataformas de reservas lançaram políticas de cancelamento excecionais. A AirB&B permitiu cancelar todas as reservas feitas até ao dia 14 de março, com data de check-in entre 14 de março e 14 de abril. Durante esta política de circunstâncias atenuantes, os hóspedes foram reembolsados no valor total pago à plataforma e procedeu à devolução da taxa de serviço aos anfitriões.
O Booking aconselhou os seus parceiros a abdicarem da taxa de cancelamento e incentivou o reembolso de qualquer pré-pagamento, abdicando também da comissão de serviços da plataforma. As datas e as condições dependem de país para país, tendo em conta a evolução do número de casos de covid-19.
A Vrbo não ativou nenhuma política específica, optando por aconselhar os hóspedes a contactar diretamente o proprietário do alojamento, de forma a negociar um possível cancelamento e reembolso, e a contactar as companhias de seguro caso tenha adquirido um seguro de viagem. Estas políticas estão em constante atualização tendo em conta a evolução do surto e das medidas oficiais de contenção anunciadas por cada país.
Estas novas políticas de cancelamento estão a penalizar o rendimento do setor. Hugo Loureiro, enquanto proprietário de duas casas e dois quartos em AL, considera que as plataformas não estão a cooperar para criar uma solução que não penalize os anfitriões - como a criação de um crédito para ser gasto mais tarde.
Adverte ainda que muitos negócios de alojamento local são bastantes recentes e ainda não obtiveram o retorno do investimento inicialmente para a requalificação e embelezamento máximo dos imóveis. Hugo, além de anfitrião, é professor de pilates. Deixou de dar aulas para proteção dos seus alunos e com o cancelamento das reservas vê as suas fontes de rendimento totalmente abaladas.
Teresa Costa Gomes ficou surpreendida com a falta de consciência de alguns hóspedes relativamente à evolução do vírus, mostrando-se despreocupados, sobretudo nos primeiros dias. Conta o exemplo de um casal alemão que pretendia fazer uma última paragem numa cidade europeia antes de regressar a Berlim. Mudaram de ideias por aconselhamento da anfitriã.
Como forma de prevenção, Teresa decidiu redobrar as medidas de higiene, seguindo as indicações dadas pela DGS - não manter contacto próximo com outras pessoas, lavar e desinfetar as mãos com frequência. Além disso, passou a realizar todos os procedimentos de check-in que já estavam automatizados à distância. Quando não o podia fazer, recebia os seus hóspedes de luvas e cumpria as restrições aconselhadas.
Passou a deixar luvas, máscaras e desinfetante nos apartamentos. Parou de sugerir restaurantes aos seus clientes, aconselhando-os a ficar em casa. Pediu às equipas de limpeza que reforçassem a higienização das casas, que só deveria ser feita 24 horas após a saída dos clientes, recorrendo a lixívia e desinfetante.
Mário Centeno, ministro das Finanças e presidente do Eurogrupo, disse que o surto de covid-19 está a ter um impacto na economia como em "tempos de guerra". Neste cenário, o governo decidiu avançar com linhas de crédito até três mil milhões de euros para dar apoio às empresas dos setores mais atingidos - para o setor do turismo, para empreendimentos e alojamento turísticos, o Estado reservou 900 milhões de euros, dos quais 300 para micro e pequenas empresas.
O representante dos donos de alojamento local, Eduardo Miranda, afirmou em declarações à Lusa que a resposta do governo é "bem-vinda". No entanto, marcou a necessidade de pensar numa "outra linha de apoio".
*com Rafaela Teixeira e Sofia Pancada