Com peixe a metade do preço, pescadores ameaçam ficar em terra
"Já nem vale a pena ir para o mar." O tom de Ricardo Santos, presidente da Cooperativa de Pesca de Setúbal, Sines e Sesimbra (Sesibal), é o de quem não vê solução para um setor que ainda não mereceu grande atenção das autoridades. "O ministro Ricardo Serrão Santos pede-nos para trabalharmos, diz que somos responsáveis por um bem de primeira necessidade, que temos de nos esforçar, mas as despesas mantêm-se, os preços caíram para metade e, sem a restauração, estamos a viver do peixe pequeno, além de que as medidas de restrição na Docapesca estão a endurecer - só entram dois barcos de cada vez (eram quatro), agora vão fechar dois dias por semana... Se não saírem medidas concretas e úteis da reunião de hoje, talvez tenhamos de parar", concretiza Manuel Marques, armador e pescador da Póvoa de Varzim.
Em contacto com o governo desde o início da pandemia da covid-19, o poveiro lamenta a falta de decisões capazes de amaciar o impacto económico que os pescadores estão a sentir. "Uma medida que nos ajudaria muito era se fosse ativado o fundo de compensação salarial dos profissionais da pesca" - anunciado depois do Conselho de Ministros de sexta-feira, envolvendo 350 mil euros, mas que será pago apenas no início do próximo mês. "Com esse subsídio e o pouco que se ganha hoje no mar era possível equilibrar um pouco as contas e garantir a subsistência das famílias", defende Manuel Marques.
Também Ricardo Santos via com bons olhos um apoio que garantisse que os pescadores levavam para casa o equivalente ao salário mínimo para terem "garantia de sustento", além de injeções à tesouraria para aguentar as empresas.
Para esta quarta-feira, está marcada uma reunião extraordinária do Conselho de Ministros da Agricultura e Pesca com o comissário europeu, Virginijus Sinkevičius, para análise e tomada de mais decisões nesta matéria. Mas os pescadores estão pouco otimistas quanto ao resultado do encontro.
Preços mínimos do peixe na lota, suspensão de impostos cobrados na venda e interdição da pesca ao fim de semana, para que durante a semana se possa distribuir melhor o pescado, são algumas das medidas urgentes que o setor pede, numa carta enviada ontem pelos armadores poveiros à tutela.
Se toda a economia está a sofrer com a pandemia do novo coronavírus e as consequentes medidas de contenção, a situação para quem trabalha nas pescas está particularmente complicada. Até porque é um setor envelhecido. "Muitos dos homens nas embarcações são idosos, os jovens não querem trabalhar nisto, e temos de proteger os mais velhos; não podemos deixá-los sair para o mar, ficarem dez ou 15 pessoas juntas, dias a fio, numa embarcação de 15 metros, com os beliches em cima uns dos outros", diz Ricardo Santos, contando que, por essa razão, nem metade dos barcos andam nas pescas.
E as contas continuam a ter de ser pagas - e, entre a quota das embarcações, o combustível, os seguros, o IRS, a Segurança Social e os salários e as bolsas dos homens (marmita que levam para o mar), a despesa é imensa. Imensamente maior do que aquilo que os pescadores que ainda saem conseguem fazer com o que de lá tiram.
"Estamos a viver do peixe pequeno, de 1 euro/kg ou menos - cavala, carapau, choco, sardinha -, porque o peixe maior, de 13/15 euros, não tem para onde ir", sublinha o armador poveiro Manuel Marques. "A Makro, e outras grandes superfícies que nos compravam para vender para a restauração, deixou de comprar peixe fresco", confirma Ricardo Santos. E mesmo o que vai saindo está a uma fração do que antes custava. "Estamos a vender a metade do preço do ano passado", confirmam ambos. "O carapau está a 40 cêntimos, a cavala a 23 cêntimos"; "e o que custava 15 euros/kg, como o rodovalho para exportação, está agora a 7 euros/kg", exemplificam.
Os preços caíram brutalmente na lota, mas não na banca, e alguns até ficaram mais caros nos supermercados: a cavala fresca, por exemplo, custa três euros/kg. São 13 vezes mais do que recebem os pescadores na primeira venda.
Os pescadores têm estado em contacto com o governo, que aprovou no Conselho de Ministros de sexta-feira medidas de apoio ao setor, incluindo "uma linha de crédito até 20 milhões de euros, a cinco anos, permitindo a contratação de empréstimos e a renegociação de eventuais dívidas, com o pagamento dos respetivos juros pelo Estado". Suspendeu ainda, por 90 dias, a cobrança da taxa de acostagem devida pelas embarcações. "Muito pouco ou quase nada", reagem os pescadores. "Os juros dos créditos que a banca nos dava para comprar embarcações chegavam aos 17% e temos de os pagar. A solução não pode passar por nos endividarmos mais", concretiza Ricardo Santos.
O que já se adiantou pouco resolve do impacto no setor, que tem sido dramático, sublinham, havendo já famílias a passar mal. Para mais, porque, lembra Ricardo Santos, "os pescadores não têm direito ao salário mínimo nacional - estando os armadores sujeitos ao que conseguem levar à lota, a contratação não o assegura; o que recebem é uma percentagem do que se pesca, uma vez descontada a despesa".
Num documento enviado ontem ao governo, os armadores poveiros elencam uma série de medidas que consideram essenciais para mitigar o impacto da crise da covid-19 no setor, incluindo "dotar a Docapesca de equipamento de proteção individual para que possam distribuir por todos aqueles que frequentam a lota, dada a dificuldade em obter esses equipamentos por parte dos pescadores, armadores e compradores", mas também o estabelecimento de "preços mínimos do pescado na venda em lota, para que todos os armadores consigam cobrir as despesas fixas diárias normais, tais como salários, seguro dos trabalhadores, da embarcação, gasóleos, alimentação, entre outros".