"Sintra é quase o laboratório do país"
Sob o pretexto dos 150 anos da publicação por Eça e Ramalho de O Mistério da Estrada de Sintra, o DN foi almoçar com Basílio Horta, presidente da Câmara da vila. E muito mais. Até sobre o plano de António Costa Silva para Portugal.

© Cartoon de André Carrilho
Almoço com Basílio Horta, presidente da Câmara de Sintra, em que sob o pretexto dos 150 anos da publicação por Eça e Ramalho de O Mistério da Estrada de Sintra se falou da atração dos escritores pela vila, das potencialidades de um concelho que a covid-19 esvaziou de turistas e muito, muito, da carreira política do homem que ajudou a fundar o CDS, fez frente ao hiperfavorito Soares nas presidenciais de 1990 e não afasta a possibilidade de se candidatar a um terceiro mandato nas fileiras do Partido Socialista.
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Basílio Horta saiu mais cedo do que o previsto de uma reunião na câmara e está já sentado na esplanada do Café de Paris quando chego. A escolha do restaurante foi do presidente sintrense, eleito pelo PS, e a vista para o Palácio da Vila é um dos pontos fortes do Café de Paris, na realidade um restaurante com excelente reputação. Contudo, o silêncio que se faz sentir em Sintra nesta tórrida hora de almoço é estranho - poucos ou nenhuns turistas nas imediações, que estes tempos de pandemia puseram o mundo com medo de viajar. Mas não é o tema da covid-19 que inicia a conversa, e sim (tirando um simpático "o DN diz-me muito") um velho episódio da vida de Basílio Horta, a candidatura presidencial em 1991 em desafio ao favoritíssimo Mário Soares. Obteve 14% dos votos, resultado mais do que honroso, pois nas anteriores legislativas, as da primeira maioria absoluta do PSD de Cavaco Silva, o CDS tinha-se ficado pelos 4% e quatro deputados, ganhado o epíteto de "partido do táxi".
Relembro-lhe que na época eu era estudante no ISCSP (nome carinhoso de uma escola que diz muito a ambos, mas onde outros só veem as iniciais de Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas) e que ficámos impressionados com aquela campanha, sobretudo o desempenho no debate televisivo que tanto irritou Soares, a caminho de uma reeleição com 70% dos votos. O meu professor de Direito Político era Fernando Seara, curiosamente mais tarde autarca por Sintra numa lista do PSD, mas a estrela da época para os alunos era "o Basílio", e não é qualquer político que é conhecido pelo primeiro nome.
"Sabe, eu até era a favor de apoiarmos o Dr. Soares", diz Basílio Horta, depois de termos pedido para entrada um carpaccio de novilho. Percebe a minha surpresa e conta, que perante a popularidade do presidente, e na falta de candidato do próprio PSD, apoiar o histórico socialista era perfeitamente lógico para os democratas-cristãos. Mas a decisão foi apresentar candidato próprio e depois de algumas recusas foi Basílio Horta, então número dois de um regressado Freitas do Amaral, a ter de avançar. "Eu era amigo do Dr. Soares, mas ele não gostou da minha candidatura e durante uns 15 anos deixou de me falar, recusando sempre a reconciliação. Foi só depois de ele ter falhado a terceira candidatura a Belém, em 2006, que um dia nos encontrámos num restaurante e ele disse com aquele tom genuíno: 'Basílio, dê cá um abraço.' Para mim foi o fim de um afastamento que nunca entendi. Fiz parte de um governo dele muito jovem. Sempre nos demos bem."
"Sabe, eu até era a favor de apoiarmos o Dr. Soares"
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Interrompo para lembrar que o pretexto do nosso almoço são os 150 anos da publicação de O Mistério da Estrada de Sintra no Diário de Notícias, mas que, para já, não me importo nada de continuar a ouvir a aula de história política. Oiço mais uns elogios ao DN - que desde a fundação do CDS em 1974 tantas vezes já escreveu o nome Basílio Horta nas suas páginas - e também se recorda de em tempos apoiar a republicação em fascículos da emblemática obra de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão.
Fico a saber que gosta de um bom vinho à refeição, mas que por estes dias anda a água e sumos. E fica-se mesmo pela água, pois a limonada que pedimos lhe parece amarga de mais. Continuo a escutar a tal aula de política portuguesa, com Basílio Horta a juntar dotes de professor (foi Adriano Moreira que o convidou para o ISCSP) com a qualidade de protagonista também. Gostei especialmente do episódio que me contou passado em 1975, quando houve um cerco operário ao Parlamento com o CDS a ser o maior dos inimigos de quem gritava junto ao Palácio de São Bento: "Tínhamos um deputado do CDS enervado pois a mulher tinha uma grave doença cardíaca e ele queria ir ter com ela. Fui falar com um dirigente do PCP a pedir ajuda mas recebi a resposta de que nada podia fazer, que o partido não tinha nada que ver com aquilo. Ia voltar até junto dos deputados do CDS quando alguém me toca nas costas. Era o Jerónimo de Sousa, um jovem operário, deputado comunista daqueles das bancadas de trás, que me diz :'Traga lá o homem.' E assim foi. O atual secretário-geral do PCP, não sei bem como, conseguiu pôr o deputado do CDS fora da Assembleia a tempo de ver a mulher, que morreu pouco depois. Nunca esqueci este gesto." De Álvaro Cunhal diz que só se lembra de ter tido um encontro, por causa da Reforma Agrária quando foi ministro da Agricultura, "e chegou". Aproveita para salientar que sempre combateu o Partido Comunista mas que este, "quando assume um compromisso, leva-o até ao fim, cumpre".
Aproveito que estamos a falar dos tempos do imediato pós-25 de Abril para perguntar por que razão o CDS, que sempre se disse um partido de centro, votou contra a Constituição de 1976. "Porque éramos a favor da democracia, mas não do socialismo. Discordávamos da ideia de que democracia era igual a socialismo. Não queríamos construir uma democracia socialista", responde Basílio Horta. Sobre "o partido de centro que, por fracasso de outros, acabou por ficar como o mais à direita", recorda que nasceu baseado na matriz democrata-cristã, de conciliar liberdade e direitos sociais. "O Diogo [Freitas do Amaral] era o homem das grandes ideias, o Adelino [Amaro da Costa] era o estratego e eu era o homem no terreno", resume. Diz que o partido e o país perderam muito com a morte de Amaro da Costa (na queda do Cessna em 1980 em que morreu também o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro). E, depois de uma pausa, sublinha que "conheci na minha vida três homens que eram superiores, de una grande inteligência e visão: Mário Soares, Adelino Amaro da Costa e Francisco Sá Carneiro".
Chega o linguado na grelha, acompanhado de legumes. E fechamos a conversa sobre o CDS, partido que foi perdendo os fundadores e depois os sucessivos líderes, porque uma segunda, mas sobretudo uma terceira geração de militantes, se revelou mais à direita do que os fundadores. "Com o Diogo o partido era democrata-cristão. Depois com o [Francisco] Lucas Pires tentou ser liberal. O Adriano optou pela democracia social. E a seguir veio o Manuel Monteiro e já era direita nacionalista. Paulo Portas, que incentivou Monteiro e depois o fez cair, tentou o regresso à democracia-cristã."
Nascido em 1943, em Lisboa, jurista de formação, Basílio Horta vai no seu segundo mandato como presidente da Câmara de Sintra. Com maioria absoluta agora. É independente eleito nas listas do PS e sente-se confortável. Foi ministro do Comércio e do Turismo no final dos anos 1970, num governo chefiado por Soares, e depois ministro adjunto e mais tarde ministro da Agricultura num governo liderado por Francisco Pinto Balsemão. Foi também embaixador na OCDE e presidente da AICEP. A presidência da Câmara de Sintra não é a primeira experiência autárquica, pois presidiu antes à assembleia municipal de Celorico de Basto, antigo bastião do CDS que chegou a dar-lhe "percentagens norte-coreanas" mas que depois se tornou PSD e que teve também Marcelo Rebelo de Sousa como presidente da assembleia municipal. Do atual Presidente da República, Basílio Horta elogia "a inteligência pura".
Chegamos então ao tema O Mistério da Estrada de Sintra. E ao fascínio dos escritores, alguns estrangeiros até como Lord Byron que o autarca refere, pela vila e a sua envolvente. "Tem que ver com o mistério de Sintra, a vila e a serra, têm mistérios que nunca se descobrem todos. Há sempre uma parte nova de Sintra para quem a quer descobrir. É realmente uma mistura de cultura, de ambiente, de história, até o clima é, na verdade, muito sui generis. É um ambiente que se presta à meditação, à reflexão, a olhar a beleza com olhos limpos. O céu é lindíssimo, a serra tem paisagens maravilhosas, portanto, apaixona quem gosta da natureza, juntamente com a cultura, com a história... É fácil a pessoa apaixonar-se por Sintra e os escritores não são exceção. E Eça é um dos meus escritores preferidos. Tenho no meu gabinete um fac simile do Diário de Notícias do verão de 1870 com o Mistério da Estrada de Sintra", conta Basílio Horta.
"É fácil a pessoa apaixonar-se por Sintra e os escritores não são exceção. E Eça é um dos meus escritores preferidos. Tenho no meu gabinete um fac simile do Diário de Notícias do verão de 1870 com o Mistério da Estrada de Sintra"
Chega a hora da sobremesa. O presidente da câmara aceita a sugestão de uns morangos, para mim só café, digo. Olhamos para o Palácio da Vila com o terreiro vazio e lá volta o tema da crise e da falta de turistas por causa da pandemia. "Sintra hoje estaria cheiíssima. Em 2018 tivemos quatro milhões de visitantes, em 2019 é capaz de ter sido mais. Mas começa a recuperar. Pouco a pouco, mas começa", comenta.
À pergunta sobre o porquê de algumas das freguesias de Sintra estarem entre aquelas em que o número de infetados com covid-19 se mantém mais elevado a nível do país e como isso afeta o turismo, setor essencial, a resposta vem célere: "Este concelho é singular, não há outro em Portugal. Porquê? Primeiro, é o único concelho que tem 320 quilómetros quadrados de área, com 400 mil pessoas. Lisboa tem mais 100 mil, mas tem um terço da área, tem 100 quilómetros quadrados. O Porto tem metade da população de Sintra - 200 mil -, mas tem 41 quilómetros quadrados. Depois há a diversidade, nós temos aqui uma percentagem importante da riqueza nacional, temos agricultura, temos indústria, temos serviços. Claro que o turismo é muito importante, agora, se é essencial ou não, depende da conceção da economia que se tenha. Eu considero que o turismo não deve ser essencial numa economia porque o turismo é muito mutável, como se está a ver. Uma economia que assente só no turismo é frágil. Aqui, o turismo é muito importante e temos de o apoiar. Agora, temos de ter uma indústria forte. Temos de ter uma indústria farmacêutica como temos, forte e revigorada; temos de ter uma indústria metalúrgica como temos, forte e revigorada; temos de ter uma indústria tecnológica forte e revigorada, como vamos ter. Estamos à beira de termos aqui uma Faculdade de Tecnologia do ISCTE, que para nós é muito importante juntamente com a Faculdade de Medicina da Católica que espero que se concretize. Portanto, esta economia de Sintra, tal como a vejo, tem o turismo, mas se o turismo falhar, a economia de Sintra não para. Claro que, se o turismo funcionar bem, a economia é muito melhor e o emprego é muito melhor. Para dar uma ideia, no ano passado, por esta altura, Sintra estava no pleno emprego, tínhamos 4,6% de desemprego. Atualmente, temos quase 9%."
Infelizmente, acrescenta, "tenho um pressentimento em relação ao país, à nossa economia e à parte social que não é otimista. Quando digo isto, não é para nós nos sentarmos em cima das dificuldades e não fazer nada, não! É reconhecermos as dificuldades para as ultrapassarmos. E é possível fazê-lo, com grande esforço, grande capacidade. O plano de António Costa e Silva a pedido do primeiro-ministro António Costa já nos dá alguns caminhos. Com um governo com boas ideias, com boa capacidade operativa, podemos ultrapassar esta crise".
O calor continua a apertar em Sintra, apesar da frescura relativa que oferece a esplanada do Café de Paris, uma instituição com 75 anos (pouco comparado com o Palácio da Vila, que foi casa de D. João I e Filipa de Lencastre), e Basílio Horta pede um sumo de laranja. Está na hora de nos despedirmos, mas não sem antes abordarmos se será candidato a um terceiro mandato, que o levaria a deixar já octogenário esta Sintra que começou a visitar menino, com o pai e a mãe, "para comprar queijadas". E depois, já aluno do Colégio Militar, em passeios com uma avó vinda de Ponte de Sor. "Ainda não decidi. Há três condições para eu me poder candidatar. A primeira é que o PS continue a apoiar-me. Nunca me candidataria por nenhum outro partido que não o PS. A segunda é que eu tenha saúde e me sinta com capacidade para fazer mais um mandato; se fosse agora, graças a Deus, sentia-me. A terceira é que tenha vontade; se fosse agora, também tinha. Na altura própria tomarei a decisão, se o PS me convidar. Farei a minha reflexão e direi aquilo que entender, se os outros dois critérios estiverem satisfeitos. Se eu me recandidatar, vou dizer porque é que o faço - porque gostava de ver aquilo que eu e a minha equipa semeámos, gostava de ver o hospital a ser feito; gostava de ver o centro de saúde de Algueirão-Mem Martins, que é o maior do país, feito; gostava de ver o centro de saúde de Belas feito; gostava de ver as escolas todas que estamos a requalificar todas elas requalificadas, uma grande parte já o ficam neste mandato, e mesmo aquelas que não são da nossa responsabilidade, são do governo. Nós vamos investir 42 milhões nas escolas. Não se pode dizer que se tem amor à educação quando os miúdos têm escolas onde chove lá dentro, como eu vi muitas. Depois, gostava fundamentalmente de ver uma época de modernização do meu concelho. Sintra é quase o laboratório do país. Somos o concelho com mais jovens entre os 16 e os 25 anos. Temos agricultura, temos comércio, temos indústria, temos território, temos cultura, temos mão-de-obra, temos tudo. Portanto, é pegar na economia nova e fazê-la economia verde."
Verde. Belíssima palavra. Tão acertada na paisagem sintrense. Recordo que, a dado momento, Basílio Horta falou do reflorestamento que mandou fazer - era ministro da Agricultura - quando um incêndio afetou parte dessa serra onde está o Palácio da Pena. Também recordo que noutro momento, algures entre duas garfadas de linguado, e por entre elogios rasgados a Costa e Silva, o engenheiro a quem se pediu um plano para sair da crise, Basílio Horta dizer com toda a naturalidade que "só se pode esperar muito de alguém que esteve para ser fuzilado e mostra imenso sentido de humor", referência a um episódio complicado vivido em Angola pelo presidente da Partex. Saberá o autarca sintrense que Costa e Silva nasceu em Nova Sintra, hoje Catabola?
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