Para Matteo Salvini parece valer tudo em campanha eleitoral, inclusive passar por cima dos direitos das pessoas e criar um incidente diplomático. Em Bolonha, acompanhado de câmaras de televisão, o ex-ministro do Interior toca à campainha de um prédio de apartamentos. "Boa noite, alguns moradores disseram-nos uma coisa desagradável. Disseram-nos que a origem de algumas das drogas que estão a ser vendidas no bairro é sua. Isto é verdade ou mentira?", perguntou o líder da Liga na terça-feira à noite. Já sem ninguém do outro lado do intercomunicador, prosseguiu: "Ele é tunisino? Qual deles é o traficante de droga, o filho ou o pai?".Que efeitos eleitorais poderá trazer a fanfarronice é uma incógnita. O certo é que o jovem de 17 anos em questão veio desmentir as acusações e disse ao Corriere della Sera que vai avançar com uma queixa na justiça. O embaixador da Tunísia em Roma, Moez Sinaoui, lamentou a "provocação deplorável" e a "conduta embaraçosa de um senador da República", que "difamou injustamente uma família tunisina". À partida seriam apenas mais umas eleições regionais e somente em duas das 20 regiões de Itália. Mas o momento é tudo: de um lado está a coligação de direita e extrema-direita de Matteo Salvini a ameaçar uma vitória histórica em Emilia-Romagna e do outro um movimento cívico que está a combater nas ruas o extremismo do líder da Liga. E pelo meio o Movimento 5 Estrelas a viver a sua maior crise, com a demissão do líder Luigi Di Maio a dias do escrutínio. O primeiro-ministro desmente que o resultado das eleições regionais decida a continuidade do governo, mas não falta quem garanta o contrário..No domingo, 3,5 milhões de eleitores são chamados no nordeste e 1,5 milhões no sudoeste de Itália. A Emilia-Romagna e a Calábria estão distantes, não só geograficamente. A primeira região, que tem Bolonha como capital, é uma das mais populosas do país e com os melhores índices económicos e de desenvolvimento social. Já a Calábria é a região com a maior taxa de desemprego e disputa com a Sicília a última posição no Índice de Desenvolvimento Humano. Ao nível político estão, até hoje, alinhadas, com o Partido Democrático a governar as duas regiões..Os alarmes da esquerda soaram nas eleições europeias. Num escrutínio que contou com 67,3% de afluência, a Liga (cujo nome nos boletins de voto é Lega per Salvini premier, ou seja, Liga Salvini primeiro-ministro) foi o partido mais votado na Emilia-Romagna, com 33,7%, à frente do Partido Democrático (31,2%). Um sismo eleitoral. Historicamente de esquerda - conhecida como Emilia rossa (Emilia vermelha) -, a região manteve-se nas mãos da esquerda até hoje. Há 30 anos, a então Liga Norte estreava-se nas regionais de Emilia-Romagna. Ficou em penúltimo lugar, a larguíssima distância do Partido Comunista Italiano..O grande salto da Liga dá-se em 2010. Fica em terceiro, nas primeiras eleições em que o Movimento 5 Estrelas concorre (alcançando o quinto lugar). Por fim, nas últimas regionais, marcadas por um nível histórico de abstenção (62,2%, em comparação com 21,1% em 2000), o Partido Democrático voltou a vencer de forma folgada. Mas a tendência já estava traçada, com a Liga e o 5 Estrelas a ultrapassarem a formação de Silvio Berlusconi..Salvini joga tudo.O objetivo de Matteo Salvini, de 46 anos, é claro e nem tem pruridos em citar o ditador fascista Benito Mussolini: "Peço ao povo italiano para me conceder plenos poderes", disse em setembro, ao reclamar novas eleições. Antes tentara aproveitar-se da sua crescente popularidade, com a sua inflamada retórica antimigratória e de combate ao crime, e rompeu a coligação da Liga com o Movimento 5 Estrelas. A iniciativa foi contrariada pelo primeiro-ministro Giuseppe Conte, pelo partido fundado por Beppe Grillo e pelo Partido Democrático, que chegaram a acordo de governo e evitaram eleições.. Salvini continuou a manobrar para chegar à chefia do governo e viu nas eleições de Emilia-Romagna uma oportunidade de ouro, um referendo ao executivo - pretensão que ganha mais força após a demissão, na quarta-feira, do ministro dos Negócios Estrangeiros Luigi Di Maio da liderança do 5 Estrelas. O partido antissistema, vencedor das eleições de 2018, mergulhou numa crise de identidade ao chegar ao poder. A popularidade ressentiu-se ao ponto de os militantes terem referendado a participação nestas eleições.. Mas o escrutínio na Emilia-Romagna também é um teste ao líder da Liga, ao tornar a campanha uma questão pessoal. Esteve em campanha pelas províncias das duas regiões desde novembro, ora a enaltecer o presunto e o queijo parmesão, ora a elogiar figuras do desporto como o ciclista Marco Pantani, o treinador de futebol do Bolonha, Mihajlovic, ou a marca de automóveis de luxo Ferrari. Provocação ou piscar de olho derradeiro, Salvini visitou o museu dedicado aos filmes de Dom Camilo e Peppone, dos anos 50, protagonizados por Fernandel e Gino Cervi, e foi fotografado ao lado do busto da personagem comunista, debaixo do símbolo do PCI e das fotografias de Lenine e de Estaline.."Aposto que Peppone votaria na Liga hoje", diz ao público. De comício em comício, a campanha centrou-se em Salvini de tal forma que um italiano mais distraído pode pensar que é ele e não Lucia Borgonzoni a candidata à presidência da região. A ex-subsecretária da Cultura e atual senadora, considerada "fidelíssima" de Salvini, é acusada pelos partidos da aliança de centro-esquerda de se esconder atrás do líder. "Não tendo nada a oferecer à Emilia-Romagna, tentam distanciar a discussão dos problemas desta região. No minuto a seguir às eleições, ele [Salvini] vai desaparecer com as suas promessas, como já fez em todas as outras regiões", disse o atual presidente e candidato a um segundo mandato Stefano Bonaccini. As sondagens apontam para um empate técnico, com Bonaccini a recolher 45% das intenções de voto e Borgonzoni 43%. Foi em reação ao comício de lançamento da campanha da Liga, em Bolonha, em novembro, que quatro amigos convocaram nas redes sociais uma manifestação na Piazza Maggiore, no centro da cidade. Em vez de um flash mob, os organizadores propuseram um "fish mob" com as sardinhas como símbolo - "apertadas como numa lata" em bloco contra a extrema-direita. E a verdade é que a praça encheu, "sem bandeiras, sem partidos e sem insultos", como era pedido. O movimento passou as fronteiras da região e realizaram-se manifestações de norte a sul do país - e até na Bélgica e em França. Na noite de quinta-feira, enquanto Salvini discursava em Bibbiano (província de Reggio Emilia) para umas mil pessoas, a centenas de metros, uma maré de sardinhas encheu outra praça, em tom festivo, cantando o hino da resistência Bella Ciao, como passou a ser marca dessas reuniões. "As sardinhas encravaram a máquina do ódio", ouviu-se na manifestação..O sucesso do movimento poderá não ficar ligado apenas a estas eleições. Em 2007, Beppe Grillo lançou nas redes sociais o Vaffanculo Day contra os políticos condenados continuarem a exercer funções. O sucesso desaguou no 5 Estrelas. As sardinhas vão realizar nos dias 14 e 15 de março um encontro nacional em Scampia, bairro da periferia de Nápoles famoso pela ligação à Camorra - "uma demonização que não reflete plenamente a realidade", diz um dos fundadores do movimento, Mattia Santori.