A vaca de Kelly Reichardt é a grande sensação da Berlinale
Uma competição tépida e uma nova direção a mostrar algum sangue novo. São para já estas as linhas fortes da 70.ª edição do Festival de Berlim, ainda a tentar incorporar novos procedimentos do diretor Carlo Chastrian, o italiano roubado ao Festival de Locarno. Mas o espírito da Berlinale permanece: espírito de ativismo, enchentes com público multicultural e uma presença massiva da imprensa internacional.
Tónica também predominante são as deceções, sobretudo na seleção oficial, a maior delas talvez Pinóquio, de Matteo Garrone, adaptação fiel ao clássico conto infantil de Carlo Cappoldi. Um épico de fantasia que não adianta nem atrasa em relação às outras adaptações sobre a vida de um boneco de madeira que ganha vida.
O filme tem um design de produção novo-rico e efeitos visuais e de caracterização de fazer inveja a um blockbuster de Hollywood, mas é de uma lentidão tão preguiçosa como presunçosa, como se fosse um decalque exato de O Conto dos Contos, a fantasia de Garrone que era, afinal, entrada para este. Depois há um Roberto Benigni perdido no meio de quadros cénicos que têm de evocar "magia". Mesmo sem ser um desastre, Pinóquio vai ficar naquela terra de nenhures de obra para público infantil e o desafio alegórico.
No encargo das desilusões, outra das que deram nas vistas foi Siberia, de Abel Ferrara, com Willem Dafoe perdido numa terra de neve e a enfrentar outras versões de si mesmo. A história de alguém que se retira do mundo e tenta aprender as artes da magia negra numa fábula com sexo, violência, peixes a falar e música death metal a provocar um silêncio da natureza. O cineasta americano faz o seu filme mais arriscado, algures entre uma possibilidade de fazer à Tarkovsky com uns pozinhos de Pasolini. Desta vez não há fios narrativos nem pontos de contacto com o real.
Há muito que não se via uma sessão de imprensa com tantas desistências e uma reação final tão fria. Siberia é tão pedante que nos esquecemos da própria ambição do seu gesto: que o cinema possa ser um laboratório de ignição dos sonhos. Apenas quando Ferrara faz ilusionismo com o espectador é que o filme parece poder ir para além do confuso e desagradável casulo de uma mão-cheia de nada.
Do Brasil, na competição, talvez a maior das desilusões: Todos os Mortos, realizado por Marco Dutra e Caetano Gotardo, experiência de anacronismo total em que se descreve São Paulo no dealbar da libertação dos escravos no século XIX. Uma São Paulo onde as figuras do passado estão em cenários que incluem arranha-céus e também convivência com fantasmas. Na teoria, a proposta é interessante, mas é pena que os realizadores insistam num tom vagaroso a querer rimar com propostas teatrais pseudointelectuais. O resultado é um pedaço de cinema demasiado palavroso, sem garra e sem conseguir tentáculos corretos para fazer o que mais pretendia: falar deste Brasil que aprisiona quem quer amar e ser livre. Nem todos os filmes de resistência podem ser bons. À saída da sala, um crítico brasileiro dizia alto que no Brasil ninguém vai ter coragem de dizer mal deste filme sob pena de ser visto como apoiante de Bolsonaro...
Felizmente que na competição também houve bom cinema, sobretudo com First Cow, de Kelly Reichardt, a história de uma vaca em terrenos da quimera de ouro numa América distante. A cineasta americana filma um conto de moral que é ao mesmo tempo um western sobre uma outra masculinidade, por sinal, nada tóxica.
O slow cinema elevado a uma espécie de subtileza decantada, respeitando-se tempos da natureza e um humor recatado. É sobretudo muito bonito e em Berlim já se fala que poderá ter lugar no palmarés, ainda que Le Sel des Larmes, de Phillipe Garrel, tenha também os seus defensores. Esta entrada francesa na Berlinale é, dos filmes de Garrel, aquele no qual se sente mais a escrita de Jean Claude Carriére e em que a ideia de "conto de moral" parece fazer-se sentir mais. Cinema de unhas afiadas contra uma certa modernidade.
Sem estar na corrida ao Urso, destaque para Bora Lá, de Dean Scanlon, o mais arriscado filme da Pixar em muitos anos. A história de dois irmãos elfos a contas com um feitiço mal feito: tinham pedido o pai falecido por um dia apenas e só lhes chegou o senhor da cintura para baixo. Um divertimento inteligente que arrisca nas coordenadas do entretenimento. Os fortes aplausos que recebeu na Berlinale Palast mostram que toda esta bizarria compensa.
Mas ainda mais aplaudido foi Persian Lessons, de Vadim Pearlman, igualmente mostrado fora de competição. Um filme inspirado na história verdadeira de um sobrevivente do Holocausto que enganou um oficial nazi a fingir conhecer a língua farsi. Cinema de grande público executado com elegância invulgar e com uma tensão dramática assinalável.
Para além dos filmes, a Berlinale foi também palco de glória para a portuguesa Joana Ribeiro, escolhida para ser a nossa Shooting Star, um programa da União Europeia para consagrar os atores europeus. A atriz portuguesa rentabilizou assim este seu período de fama internacional antes da estreia em breve de Infinito, produção de Hollywood em que contracena com Mark Whalberg.
No que toca às tendências de mercado, o cinema de ação parece ter sido a tendência dominante, com vendas de novos projetos de action heroes como Gerard Butler, Sylvester Stallone ou Arnold Schwarzenegger. Seja como for, fala-se também muito de uma outra moda: filmes de prestígio realizados por mulheres. O European Film Market foi palco de vendas dos novos filmes de Olivia Wilde, Claire Denis ou Maggie Gyllenhaal. Para o ano, a Academia de Hollywood e a Berlinale quase de certeza que vão ter mais cinema no feminino...