"Ela deu o furo", "cala a boca", "bundões". Bolsonaro ataca imprensa dez vezes por semana

A frase "a minha vontade é encher a tua boca de porrada", dita pelo presidente da República no domingo, ao ser questionado sobre depósitos suspeitos na conta da primeira-dama, é apenas o último episódio de uma longa lista de insultos a jornalistas.
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Jair Bolsonaro fez 245 ataques contra o jornalismo no primeiro semestre de 2020, perto de dez por semana, aponta estudo da Federação Nacional dos Jornalistas do Brasil (Fenaj) lançado no dia 2 de julho. O relatório foi recuperado nas últimas horas, após o presidente brasileiro ter dito "tenho vontade de encher a tua boca de porrada" a um repórter do jornal O Globo que o questionou sobre depósitos na conta sua mulher, Michelle Bolsonaro, de um ex-assessor do seu filho senador, Flávio Bolsonaro, envolvido em esquema de corrupção e detido numa prisão do Rio de Janeiro.

Segundo contabilidade da organização não governamental Repórteres sem Fronteiras (RSF) do primeiro trimestre do ano, Bolsonaro fora responsável por 32 ataques verbais ou ofensas diretas à imprensa nos três primeiros meses deste ano, uma média de um a cada três dias, dos quais 15 diretos, cinco deles destinados a mulheres.

Entre essas agressões ganhou repercussão a de 16 de janeiro, quando Bolsonaro, interrogado sobre acusações de conflitos de interesses envolvendo o chefe da secretaria de comunicação do governo, Fábio Wajngarten, respondeu: "Você está falando da tua mãe?"

Já em fevereiro, ao reclamar de reportagens em que o citavam a dizer que "uma pessoa com VIH representa uma despesa para o Brasil", o presidente fez um manguito na direção dos jornalistas.

Na sequência, no dia 4 de março, Bolsonaro transportou um humorista no veículo oficial da presidência que ofereceu bananas - símbolo de "manguito" no Brasil - à imprensa e exaltou os apoiantes do governo ali presentes a ofenderem os jornalistas.

Pelo meio, disse, com segundo sentido, que uma jornalista do jornal Folha de S. Paulo quis dar "o furo". "Ela queria um furo. Ela queria dar o furo", afirmou, rindo-se, em declarações diante de jornalistas e um grupo de simpatizantes no Palácio da Alvorada. A reportagem em causa, da repórter Patrícia Campos Mello, era sobre disparo de mensagens por WhatsApp de favorecimento a políticos usando registos fraudulentos, e foi comprovada.

Colunista do jornal O Estado de S. Paulo e apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura, a repórter Vera Magalhães também foi alvo de insultos de cunho machista do presidente e de apoiantes seus nas redes sociais, após publicar que Bolsonaro havia compartilhado no WhatsApp um vídeo de apoio a um protesto a favor do governo e contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal.

"Os casos de Mello e Magalhães são típicos do machismo cru que caracteriza o comportamento do presidente e dos seus apoiantes", afirma o levantamento da RSF.

Em maio, Bolsonaro mandou um repórter "calar a boca", depois de ter sido questionado sobre as acusações do ex-ministro da justiça Sérgio Moro de que havia interferido na polícia federal para blindar os filhos investigados.

Ainda em dezembro do ano passado, à pergunta sobre o que faria se o seu filho mais velho, senador Flávio Bolsonaro, tivesse cometido um deslize, respondeu, irritado: "Você tem uma cara de homossexual terrível, mas, nem por isso, te acuso de ser homossexual, falam 'se', 'se', 'se' o tempo todo."

Nesse dia, Bolsonaro disse também "porra, pergunta para a tua mãe o comprovante que ela deu para o teu pai, está certo? Você tem a fatura desse relógio contigo no braço? Não tem. Tem a fatura do teu sapato? Não tem, porra".

O presidente reagia na circunstância a uma pergunta sobre o mesmo assunto que o enervou neste domingo: a imprensa quis saber se ele tinha o comprovante de um empréstimo que diz ter feito a Fabrício Queiroz, pivô do escândalo de corrupção envolvendo o gabinete do filho, e cujo pagamento foi efetuado através da conta de Michelle Bolsonaro.

O tema voltou à ordem do dia porque, após quebra do sigilo bancário de Queiroz divulgada pela revista eletrónica Crusoé, não se tratou apenas de um mas de 21 depósitos do ex-assessor na conta da primeira-dama. Mais tarde, o jornal Folha de S. Paulo informou o registo de ainda mais cinco transferências, desta vez efetuadas por Márcia Aguiar, mulher de Queiroz.

A suspeita do Ministério Público do Rio é que o esquema de desvio de salários de assessores-fantasma, chamada informalmente de "rachadinha", alimentou um esquema de corrupção ao longo de décadas que serviu até para Flávio Bolsonaro e duas ex-mulheres do presidente comprarem imóveis em dinheiro vivo.

A pergunta do repórter de O Globo que gerou a resposta "vontade de encher a tua boca de porrada", entretanto, viralizou nas redes sociais. "#RespondeBolsonaro. Por que Michelle Bolsonaro recebeu 89 mil reais de Queiroz?" tornou-se umas das hashtags mais partilhadas de domingo e de segunda-feira no Twitter do Brasil, gerando mais de um milhão de partilhas, disse o professor e pesquisador de ciências de dados, redes sociais e comunicação política, Fabio Malini, ao jornal Metrópoles.

No total, o presidente da República foi marcado, segundo o especialista, em mais de 1,03 milhões de mensagens únicas sobre o questão acerca do repasse de dinheiro.

Fim do "cessar-fogo"

A reação de Bolsonaro, entretanto, é entendida como fim do período de "cessar-fogo" levado a cabo pelo presidente nos últimos meses - precisamente, desde que foi descoberto, em meados de junho, pela polícia o paradeiro de Queiroz, escondido numa casa de Fred Wassef, o advogado pessoal do chefe de Estado.

Até maio, Bolsonaro participava de manifestações em que se defendiam os fechos do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal; depois de encontrado o explosivo Queiroz passou a pregar entendimento com os outros poderes.

O presidente, que classificava a covid-19 de "gripezinha" e dizia não ser "coveiro" quando confrontado com os números de compatriotas mortos vítimas da doença, decidiu apaziguar os ânimos ao prestar homenagem aos mortos numa live - a célebre Ave-Maria interpretada pelo sanfoneiro e membro do governo Gilson Machado Neto.

Depois, diagnosticado com a doença, não falou à imprensa na quarentena.

Essa discrição, associada à distribuição de um generoso auxílio de 600 reais aos mais necessitados na pandemia, elevaram a sua aprovação, até então em queda.

A estratégia de promover tréguas, aparentemente, terminou. Nesta segunda-feira, sem se referir ao episódio com o jornalista de O Globo, Bolsonaro atacou o grupo de comunicação que detém o jornal via redes sociais. "Há pelo menos dez anos o sistema Globo me persegue e nada conseguiram provar contra mim."

E desafiou a TV Globo a justificar-se sobre uma reportagem da concorrente Record - propriedade do bispo Edir Macedo - sobre uma delação de Dario Messer, traficante de dólares no mercado paralelo, que implica a família Marinho, dona do gigante de comunicação.

Em seguida chamou os jornalistas de "bundões", isto é, "covardes", "medrosos". "Sempre fui atleta das Forças Armadas. Aquela história de atleta, que a imprensa gosta de tratar com deboche, mas quando pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor. Só sabe fazer maldade e usar a caneta com maldade, em grande parte."

Correspondente em São Paulo

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