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24 OUT 2020
27 outubro 2020 às 09h17

A primeira Volta a Portugal teve cerveja, uma travessia de barco e um amputado

A edição inaugural da principal prova de ciclismo portuguesa foi organizada pelo Diário de Notícias, iniciou-se em Cacilhas e decorreu paralela à linha de fronteira ​​​​​​​durante 20 dias, em 1927.

A tarde de 26 de abril de 1927 foi de grande alvoroço em Setúbal, onde terminou a primeira etapa da primeira das 82 edições da Volta a Portugal em bicicleta. A prova era então organizada pelo Diário de Notícias e pelo jornal Os Sports E foi, precisamente, junto ao edifício do DN, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, que às 13.30 foi feita a chamada para os ciclistas que iam iniciar a prova.

Nesse dia, desde bem cedo, centenas de pessoas concentraram-se na Praça Marquês de Pombal.
E nem o sol intenso que se abatia sobre a capital demoveu os curiosos que queriam assistir ao arranque de uma prova inspirada no famoso Tour de France, cuja primeira edição tinha decorrido 24 anos antes. À chamada responderam 38 ciclistas, que durante 20 dias percorreram Portugal através de um traçado paralelo à linha de fronteira, algo que só tinha semelhança com a prova francesa. Pela frente tinham 1958,5 quilómetros divididos por 18 etapas, com apenas dois dias de descanso já perto do final da prova, em Vidago e nas Caldas da Rainha.

Segundo relatou o DN do dia seguinte à primeira etapa, um dos corredores, António Rodrigues, equipava com as cores do elétrico, pois era funcionário da Carris, mas o caso mais extraordinário era o de Augusto dos Santos, que fez questão de fazer a volta, extracompetição, apesar de ter uma perna amputada. Pedalava apenas com uma perna e caminhava auxiliado por uma muleta. "O Augusto dos Santos pedala a sua máquina só com um pé, visto que tem uma perna amputada. Servir-se-á também, no percurso, duma muleta, que nunca o larga", assinalava o repórter do DN.

Contudo, os principais ciclistas equipavam com as cores de clubes como Benfica, Sporting, Leixões, Carcavelos, Campo de Ourique, Belenenses, Portimonense, entre outros. O favorito à vitória final era António Augusto Carvalho, do Carcavelos, que acabou por confirmar os atributos que lhe eram reconhecidos.

Após responderem à chamada, todos os participantes levaram os seus "bidons de folha" com água ou... cerveja, que seguiam amarrados ao guiador da bicicleta. Cumpridas todas as formalidades burocráticas, os participantes receberam abraços dos amigos e lá foram rumo ao Cais do Sodré, com a ajuda da polícia que, a custo, lá conseguiu abrir caminho aos ciclistas, pois as pessoas fizeram questão de acompanhar a pé aqueles pioneiros das bicicletas, que eram aclamados durante o caminho até ao cais, onde apanhariam o barco para Cacilhas, local da partida para a primeira etapa. Na margem sul do Tejo, mais um banho de multidão...

Conta o DN da época que "a largada foi qualquer coisa de impressionante" devido à multidão, que fez questão de assistir àquele momento histórico dando origem a um cortejo de automóveis atrás dos ciclistas, que seguiam atrás da motorizada do diretor da corrida. A meta estava instalada a 40,4 quilómetros de Cacilhas. Setúbal era o destino do pelotão da primeira etapa de sempre daquela que ficou conhecida como a prova rainha do ciclismo português.

O primeiro ciclista cortou a meta à beira-Sado quando os ponteiros do relógio marcavam 17.40, debaixo de uma multidão que se concentrou junto ao final da primeira etapa. O primeiro grande herói da Volta a Portugal foi Quirino de Oliveira, que vestia as cores do Campo de Ourique. Gastou uma hora e 24 minutos e tornou-se o primeiro camisola amarela da história da prova e líder da categoria de Fortes. Aliás, havia mais duas categorias de competição denominadas de Militares, que tinha apenas dois corredores, e Fracos.

À noite, o Vitória de Setúbal ofereceu um banquete aos ciclistas e à comitiva da Volta, que se prolongou pela noite com vários discursos das entidades oficiais. Na manhã seguinte, às oito da manhã, lá estavam todos preparados para a partida da segunda etapa que terminou em Sines.

A edição do DN de 16 de maio de 1927 titulava em manchete: "António Augusto de Carvalho foi o glorioso vencedor". Terminava a primeira Volta a Portugal em bicicleta... uma volta literal ao território nacional. A última etapa, de cem quilómetros, foi entre as Caldas da Rainha e Lisboa. A meta estava instalada nos Restauradores, onde os heróis receberam mais um banho de multidão. Aliás, os relatos da época falam em mais de 50 mil pessoas que ladeavam o percurso final entre o Campo Grande e a meta.

O benfiquista Santos Almeida foi o primeiro a chegar à capital, mas o grande vencedor foi o ciclista do Carcavelos, que recuperara a camisola amarela duas etapas antes, na tirada de 117,2 quilómetros que ligou o Porto a Coimbra. António Augusto Carvalho, natural de Sintra, contabilizou um tempo total de 79.08,00 horas, à média de 24,2 km/hora. No momento de cortar a meta, "com uma elegância digna de um vencedor", contou o DN, o vencedor foi absorvido pela multidão e levado em ombros desde a meta até ao Ateneu Comercial, onde estava instalado o posto médico.

O pódio completou-se com Nunes de Abreu (Leixões), que gastou mais 9,31 minutos do que o camisola amarela, enquanto Quirino de Oliveira (Campo de Ourique) foi terceiro, a mais de 19 minutos, numa prova de 20 dias que teve 12 desistências. O jantar de encerramento, oferecido pelo Diário de Notícias, realizou-se no restaurante Olímpia, onde não marcou presença o vencedor da primeira Volta a Portugal porque, à mesma hora, tinha um jantar com os colegas de equipa em Carcavelos.