Lares: Funcionários "avatar" e internos com turnos de dez dias

Os lares criticam a ministra da Saúde ao dizer que deviam ter funcionários disponíveis para substituir os infetados com o covid-19. E propõem o funcionário "avatar" - alguém disponível a qualquer dia ou hora - ou aquele que faça turnos de dez dias seguidos.
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A ideia de um funcionário "avatar" é da União das Misericórdias Portuguesas (UMP). "O modelo consiste em cada funcionário ter o seu 'avatar', alguém da estrutura que, por relações pessoais, facilidade de horários, etc., aceitou ter esse papel e que avança se essa pessoa faltar. É um acordo entre as duas partes", explica Manuel Lemos, o presidente da UMP.

Esta é uma das propostas do plano de contingência das Misericórdias para os lares, casas de repouso e afins. Inclui medidas de higiene e de ética respiratória, resposta para os trabalhadores que fiquem contaminados e um espaço de isolamento para os utentes com a doença.

Mas, sublinha Manuel Lemos, esse modelo funciona em instituições localizadas nos grandes centros urbanos e que tenham um quadro de pessoal extenso, como Lisboa, Porto ou Braga. Não será possível nas organizações pequenas, por exemplo em Resende ou em Pedrógão Grande.

Os "avatares" são encontrados dentro de cada Santa Casa da Misericórdia, entre os que não trabalham diretamente com os idosos. Outra solução é alocar pessoas a unidades da mesma instituição e que fecharam devido à pandemia, como as creches e jardins-de-infância. A UMP é responsável por cerca de 400 lares no país, o que significa 40 mil utentes.

A residência sénior O Amanhecer da Criança, no concelho da Maia, tem 60 utentes. Nos últimos dias, faleceram dois que tinham mais de 90 anos, mas apenas um óbito é atribuído ao covid-19, contaminação associada a outras patologias.

O utente, de 92 anos, não teve sintomas da doença e foi levado para o Hospital de São João, no Porto, devido aos valores elevados de hemoglobina, acabando por dar positivo no teste ao novo coronavírus. O INEM recolheu amostras a outros 13 utentes esta segunda-feira por terem sintomatologia que pode ser identificada como sendo da doença, aguardando-se os resultados. Já os funcionários, que fizeram os testes no mesmo dia, receberam os resultados esta terça-feira e oito estão infetados.

José Manuel Correia, o presidente da instituição, diz que, na sexta-feira à noite, quando soube que havia uma pessoa contaminada na residência sénior, telefonou para o delegado de saúde, para a linha de apoio Saúde 24, enviou e-mails, sem obter respostas. Decidiu implementar um novo sistema laboral para impedir a propagação do vírus, com início nesta segunda-feira.

"Temos uma equipa de 15 pessoas que trabalha durante dez dias consecutivos e dorme na residência. Passado este período, são substituídas por outras 15, sem que as duas equipas se cruzem, e fazem o isolamento social. Achámos que este era o sistema mais seguro, agora não é fácil convencer as pessoas, algumas com filhos, mas acabaram por concordar. Também porque sabem que estou disponível quando precisam", esclarece José Manuel Correia. Sublinha que isso não significa que se desleixem nas normas de higiene e do uso de equipamento de proteção, que têm de ser devidamente cumpridas.

A residência sénior tem 48 funcionários para 60 utentes, além do presidente da associação, diretora técnica e gerontólogo, que estão em permanência na instituição. É um lar privado e o valor mensal para cada utente varia entre 1287 e 1500 euros (quarto individual), o que também depende da autonomia de cada utente. Têm, ainda, creche, jardim-de-infância, ateliês dos tempos livres, centro de dia e apoio domiciliário, continuando a servir refeições, e o serviço de higiene ao domicílio.

Sublinha o responsável pela O Amanhecer da Criança que a solução que encontraram é diferente da preconizado pela ministra da Saúde, Marta Temido, a propósito de um lar em Famalicão, com a quase totalidade dos funcionários infetados pelo novo coronavírus. Os utentes foram posteriormente encaminhados para o Hospital Militar do Porto, neste domingo à noite.

Esta sexta-feira, dia 27, também os utentes do lar O Amanhecer da Criança vão ser transferidos, estes para um hotel na Maia, para que a residência para idosos seja desinfestada. Todos realizaram testes e estão infetados com o novo coranavírus 25 pessoas, entre utentes e funcionários, 50 deram negativo, Aguardam-se a conclusão dos testes de mais 30 pessoas. "O que não se compreende é que os resultados demorem tanto tempo, os primeiros testes aos utentes foram realizados na segunda-feira de manhã e, 72 horas depois, o Instituto Ricardo Jorge ainda nada tinha informado. Os funcionários fizeram o teste no mesmo dia à tarde no privado e obtiveram os resultados no dia seguinte ", protesta José Manuel Correia.

Feita a desinfestação, espera reabrir as portas do lar rapidamente, com os funcionários que têm permanecido em casa e os utentes que não deram positivo ao SARS-Cov-2.

"Não é viável profissionais de segunda linha"

A ministra disse que as instituições deviam ter um plano de contingência, defendendo a existência de profissionais de segunda linha para constituir equipas que pudessem "funcionar em espelho". "Por cada um que está a trabalhar, deveria estar outro em casa e rodarem por turnos", referiu.

"Fala de uma coisa que não conhece. Disse que as instituições deviam ter o dobro do pessoal, onde está o dinheiro?", pergunta José Manuel Correia.

A mesma crítica é feita por Manuel Lemos, que, além do problema financeiro, acrescenta a falta de mão-de-obra. "A nossa capacidade de contratação é limitada, pagamos mal e, em algumas zonas do interior, não há pessoas para trabalhar."

O padre Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS), responde que não é possível ter uma espécie de reserva de funcionários. "As instituições não têm a possibilidade de ter uma bolsa de trabalhadores, normalmente até têm mais trabalhadores do que os que estão previstos nos acordos de licenciamento. Os custos com pessoal são elevadíssimos, representam 70% das despesas das instituições. Não é viável ter uma bolsa de pessoas para ocorrer a este tipo de situações", argumenta.

Acrescenta que questão da substituição dos trabalhadores é o mais difícil na criação dos planos para reagir à pandemia para quem opera na área do apoio social. E este é um problema, alerta João Ferreira de Almeida, presidente da Associação de Apoio Domiciliário de Lares e Casas de Repouso (ALI). "Concordo com a ministra quando diz que todos os lares devem ter um plano de contingência, já o que disse sobre os funcionários não faz qualquer sentido. Qualquer organização, seja um lar ou outro setor da atividade, não tem o seu quadro de pessoal a duplicar, não acontece em lado nenhum. E, depois, foram proibidas as visitas, mas os funcionários entram e saem todos os dias e vêm de transportes públicos."

A ALI representa as organizações privadas, 740 são sócios da associação, estimando o seu dirigente que sejam um terço das que existem no país. A primeira medida do plano de contingência são as regras de higiene e de ética respiratória. Regras de procedimento que, através do Instituto de Segurança Social e em articulação com a Direção-Geral da Saúde, garante que os sócios receberam atempadamente. "Não lhes falta informação concreta, objetiva e específica para lidar com a situação, o que não quer dizer que não surjam problemas. Trabalhamos num setor complicado: uma população muito fragilizada, que está toda concentrada e empregados que entram e saem todos os dias."

Assim, é fundamental, ainda, que existam os artigos de proteção em número suficiente. Outro problema é a falta de formação e de preparação de muitos donos de lares, apesar de ter haver melhorias, segundo João Ferreira de Almeida. "Sou presidente da ALI há dez anos e esse perfil tem vindo a melhorar ao longo do tempo." Não está a falar dos mais de 3500 lares clandestinos que estima existirem no país. "Ninguém sabe onde estão e que condições têm."

O terceiro ponto do plano de contingência é a existência de um espaço de isolamento em cada unidade para aqueles que estão contaminados com o covid-19. Essa é uma exigência que os dirigentes dizem ser mais fácil de cumprir, embora também dependa das condições de cada espaço. "Em imóveis que foram adaptados, e bem adaptados, se não estavam licenciadas, não é fácil criar esse espaço", diz João Ferreira de Almeida.

Bolsa de voluntários e equipa multidisciplinar

O secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, disse na conferência de imprensa desta segunda-feira que os lares poderiam recorrer à bolsa de voluntários. Os responsáveis desses estabelecimentos não sabem a que bolsa se refere. "Não existem assim tantos voluntários e, nestas circunstâncias, é preciso que tenham formação, não pode ser qualquer pessoa. Além de que se estão a passar mensagens díspares, diz-se às pessoas para ficarem em casa dados os riscos da propagação do vírus e, depois, pede-se para se recorrer aos voluntários", critica Lino Maia.

Outro mecanismo que desconhecem é a equipa multidisciplinar para acompanhar as instituições do setor social, anunciada também nesta segunda-feira pela ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Godinho, depois de uma reunião com agentes do setor. E também Manuel Lemos, que assistiu viaSkype ao encontro. A assessoria da ministra disse ao DN que se trata de um grupo criado no âmbito da subcomissão para acompanhar a situação epidemiológica do covid-19, da dependência da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil.

"Trata-se de um grupo de trabalho que define o protocolo de atuação para apoio às instituições do setor social, estabilizando as repostas locais e definindo quem deve agir perante as necessidades verificadas. Neste momento, as prioridades são as estruturas residenciais para idosos", explicam.

Ana Godinho anunciou, ainda, o reforço de 50 milhões de euros para as instituições do setor social, mas esse reforço não chega a quem presta cuidados continuados, protesta José Bourdain, presidente da Associação Nacional dos Cuidados Continuados (ANCC).

"Cinquenta milhões são trocos e, mais uma vez, não estamos incluídos nesse apoio, da mesma forma que ficámos de fora quando foi anunciado um aumento de 3,5% no orçamento para o setor", critica o dirigente da ANCC.

Aconselha a ministra a "descer à terra" no que diz respeito aos profissionais de segunda linha. "Muitas destas instituição só têm uma valência, os lares, e funcionam com o número mínimo de trabalhadores, ou abaixo do mínimo, em alguns casos porque não há pessoas, em outros porque o apoio do Estado é insuficiente e, no privado, cobra-se os valores possíveis, dados os rendimentos baixos em Portugal."

Quanto à bolsa de voluntários, que também desconhece, pergunta: "Será que é um voluntário que vai prestar cuidados a uma pessoa doente? Não era preferível centralizar nas autarquias uma bolsa de profissionais de saúde que alguma instituição possa ceder?"

Atualizado às 20:30 com a informação relativa à associação O Amanhecer da Criança, na Maia

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