Governo desvia cinco milhões da Marinha para "gestão" da compra dos seis NPO
O Tribunal de Contas (TdC) está a avaliar o pedido de visto prévio para um contrato que o ex-ministro da Defesa Nacional (MDN), João Gomes Cravinho, decidiu firmar com a IdD - Portugal Defence, uma holding do setor empresarial do Estado para a "gestão do programa de aquisição" dos seis navios patrulha oceânicos.
O contrato, autorizado numa Resolução de Conselho de Ministros (RCM) de junho do ano passado, prevê o pagamento pela Marinha à IdD "até ao montante máximo de 1,5%" do valor total desta compra, orçamentada em 352 milhões de euros - ou seja pode atingir os cinco milhões e 280 mil euros para "a prestação de serviços de gestão do programa em causa".
Segundo os "termos de referência para a celebração do contrato a celebrar entre o Ministério da Defesa Nacional e a IdD - Portugal Defence", já publicados em Diário da República , está previsto que, para já a "remuneração" da IdD, S. A., seja dividida em três partes: "uma associada aos custos de arranque da capacidade de gestão do programa, com o valor previsional de € 254 700; uma associada ao ritmo de execução da prestação dos serviços de gestão do programa, para os anos de 2021 até 2031 (atendendo ao período de garantia de dois anos), com o valor previsional médio anual de € 304 868, correspondente a um montante global de € 3 353 550 para a totalidade do período do programa; Uma componente final indexada à performance dos serviços prestados, medida em função do cumprimento dos prazos que vierem a ser definidos no contrato a celebrar e dos resultados a alcançar, designadamente quanto aos preços e prazos de entrega dos navios, com o valor previsional de € 636 750!". O total será um mínimo de 4,2 milhões de euros.
O acompanhamento será, de acordo com o MDN, "em articulação" com a Marinha e a Direção Geral de Recursos da Defesa Nacional (DGRDN).
A decisão, preparada entre Cravinho (atual ministro dos Negócios Estrangeiros) e o então presidente do conselho de administração da IdD, o atual secretário de Estado da Defesa, Marco Capitão Ferreira, suscita dúvidas legais e há quem considere que se trata de um financiamento "encapotado" de uma empresa pública.
O DN falou com três almirantes, na reforma, que não compreendem porque vai a Armada pagar por um serviço que poderia fazer ela própria sem encargos.
O facto de se estar a utilizar para este efeito uma verba aprovada da Lei de Programação Militar (LPM) é para Ana Miguel dos Santos, antiga coordenadora para a Defesa na grupo parlamentar do PSD e jurista especialista neste setor, uma "evidente ilegalidade".
Como explica numa entrevista ao DN, apenas os "serviços centrais do MDN" têm competências para a execução e acompanhamento da LPM "e não há hipótese de delegação de poderes".
O TdC não explica que dúvidas tem em relação ao contrato, invocando o "sigilo" do processo. Mas confirma que, já colocou, pelo menos, dois conjuntos de questões. "O processo está em análise, tendo dado entrada em 1 de fevereiro e sido devolvido a 8 de fevereiro. Foi recebida resposta em 7 de março e novamente devolvido em 17 de março para esclarecimentos, cuja resposta se aguarda", assinala fonte oficial.
Ainda sem o visto confirmado, a IdD já apresenta na sua página da internet esta nova missão, assumindo-se como "entidade responsável pela gestão do programa de aquisição dos seis novos Navios de Patrulha Oceânicos (NPO), em articulação com a Marinha e com a DGRDN, no âmbito da sua atividade de assessoria às transações de equipamentos no quadro da execução da Lei de Programação Militar".
Um antigo dirigente da EMPORDEF, a holding que antecedeu à IdD, acompanha o raciocínio jurídico de Ana Miguel dos Santos, mas considera que "o financiamento desta holding não está sequer a ser encapotado, é mais que explícito".
Pedindo anonimato por temer represálias, explica que se está perante uma "manipulação de verbas da LPM que suscita muitas dúvidas legais". "Uma empresa que é financiada através do Orçamento do Estado (OE) ainda tem um financiamento extra por serviços de consultoria para uma aquisição?", interroga-se.
"É claro que vai ser a Marinha a fazer o trabalho todo. A IdD não tem know how técnico e ainda vai receber por isso. Por uma empresa, cuja função é gerir as participações do Estado, a fazer a gestão de um programa é, no mínimo, bizarro. Tenho muitas dúvidas do ponto de vista legal que a IdD possa fazer estas operações de intermediação".
Além disso, acrescenta, "vai aumentar artificialmente o investimento da Defesa, porque é a Marinha que vai receber este valor do OE, no âmbito da LPM, e depois tem de o desviar para o setor empresarial do Estado que, como é óbvio, não contaria como investimento na Defesa".
"Não é a mesma coisa colocar dinheiro nas Forças Armadas e colocar dinheiro no setor empresarial do Estado. Se a despesa está na Marinha conta para o investimento na Defesa. Na IdD não conta. É uma trapalhada completa, sem sentido nenhum", conclui.
O almirante Melo Gomes, ex-Chefe de Estado-Maior da Armada, que começou por não querer comentar, perante o que lhe descrevemos não resistiu a manifestar a sua incredulidade.
"Tudo isto é um disparate. A Marinha tem qualificações de sobra para gerir todo este programa sem encargos extra. Lamento profundamente que isto esteja a acontecer. A Marinha vai pagar para alguém fazer uma coisa que sabe de cor. Que tenha conhecimento é a primeira vez que isto acontece nas Forças Armadas", asseverou.
Outros dois oficiais generais da Armada vão no mesmo sentido. "É um absurdo. Nunca aconteceu antes", declara um vice-almirante, ainda no ativo, que também esteve ligado no passado à indústrias de Defesa. Manfesta-se "muito incomodado" com este "desperdiçar de dinheiro". "Cinco milhões de euros neste meio pode fazer muita diferença. Tudo conta", assinala.
Recorda o contrato das corvetas que, no seu entender, "a Marinha dirigiu de forma brilhante". "Ou é a Marinha que continua a assegurar a gestão destes contratos ou pode correr mal. É preciso pensar que não é só a gestão que está em causa. É também a integração na Marinha destes meios e o seu ciclo de vida. Se não for tudo pensado ao milímetro os custos para a manutenção podem disparar de forma desastrosa. A Marinha é que tem este know how".
Este vice-almirante também receia que a "articulação" prevista entre a IdD e a Marinha, possa resultar em problemas: "uma coisa é a articulação, outra é a decisão e se não estiver claro quem decide, pode sem complicado".
Um antigo responsável pela logística da Marinha que esteve envolvido na compra do primeiro par de NPO"s, salvaguardando desconhecer "em concreto o que se passa neste momento", contrapõe com o exemplo daquela altura: "A Marinha constituiu um grupo de 10 oficiais com o MDN e o controlo era feito diretamente pelo Chefe de Estado-Maior da Armada e pelo Superintendente de Serviços e Material. Essa equipa, designada Missão de Acompanhamento e Fiscalização, era chefiada por um engenheiro de construção naval e acompanhou toda a construção nos estaleiros de Viana do Castelo", assevera.
Questionada a IdD, atualmente dirigida por Catarina Nunes, ex-vogal de Marco Capitão Ferreira e ex-assessora do gabinete de João Gomes Cravinho, sobre o que justifica este pagamento por um serviço que a Marinha pode fazer sem encargos, sublinha "a missão da IdD de alavancar a Base Tecnológica e Industrial de Defesa, que será uma dimensão importante neste processo".
O montante em causa, explica fonte oficial, "diz respeito à remuneração associada ao ritmo de execução da prestação dos serviços e compreende o período de 2021 até 2031".
Refuta a ideia que o TdC tenha tido dúvidas, alegando que se tratam de "perguntas e recomendações objetivas, desejáveis e úteis, e que têm sido respondidas e acolhidas".
O gabinete da nova ministra da Defesa, Helena Carreiras, alinha na mesma justificação. Quantos às perguntas do TdC: "esse processo corre nos moldes habituais, especialmente quando estão em causa programas complexos e com expressão financeira, isto é, com naturais pedidos de informação que têm sido obviamente respondidos, e com desejáveis recomendações que têm sido acolhidas", assinala.
Questionada sobre porque vai o Estado pagar por um serviço que podia ser feito sem encargos, fonte oficial afirma que "a criação da capacidade de gestão de um programa como este teria sempre custos associados, motivo pelo qual isso mesmo estava já previsto no programa na LPM. Em segundo lugar, a IdD é uma Entidade Pública Reclassificada, integrando o perímetro do Orçamento do Estado no Programa Orçamental da Defesa".
O mesmo porta-voz confirma que "os montantes a pagar à IdD sairão do orçamento do programa, no âmbito da LPM, e respeitam a despesas administrativas e de pessoal decorrentes da gestão do programa nos seus 10 anos de duração".
Qual a mais valia da intervenção da IdD? - questionamos. "Uma das atribuições da IdD Portugal é potenciar a Base Tecnológica e Industrial de Defesa, envolvendo os diferentes atores da economia nacional. Neste âmbito, este é o primeiro projeto cometido à referida empresa pública, prosseguindo a decisão conjunta dos ministérios das Finanças e da Defesa Nacional que foi incorporada no plano de negócios aprovado para a mesma, e dando seguimento ao objetivo de desenvolver capacidades nacionais nesta área", esclarece.
Indagado se tinha sido identificado algum risco ou desvantagem em continuar a ser a Marinha a conduzir estes processos de aquisição, o gabinete de Helena Carreiras sublinha que "a gestão do programa de aquisição de seis NPO´s foi atribuída à IdD pelo Ministro da Defesa Nacional em plena coordenação com a Marinha Portuguesa e envolvendo a Direção Geral de Recursos da Defesa Nacional (DGRDN), com a fundamentação que consta na Resolução do Conselho de Ministros nº 72/2021. A decisão não resulta de putativos riscos ou desvantagens, tal como não se deve inferir o mesmo quando Portugal recorre a agências da NATO para efeitos semelhantes, como já foi feito em várias ocasiões, por vezes por iniciativa dos próprios Ramos das Forças Armadas".
O MDN não respondeu ainda às questões sobre as alegadas ilegalidades relacionadas com as competências de gestão e acompanhamento da execução da LPM.
A compra dos seis NPO da classe "Viana do Castelo" constitui um dos projetos estruturantes da Lei da Programação Militar de 2019.
Fazem parte de um programa para aquisição de navios que começou em 2004, com a compra do primeiro par de NPO"s. A crise financeira congelou o plano e só em 2015 foram construídos outros dois (entregues em 2018), cuja aquisição por ajuste direto à West Sea (empresa do Grupo Martifer ganhou a subconcessão dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, que já estavam em processo de extinção), foi alvo de um processo de infração da Comissão Europeia por violação do direito comunitário - isto apesar de, em Portugal, ter sido aprovada pelo Tribunal de Contas.
Só depois do contrato com a IdD ter o visto do Tribunal de Contas se poderá avançar para o concurso propriamente dito, mas em relação a este procedimento, há também quem já antecipe um novo ajuste direto, dado o atraso que já esse verifica.
A LPM indica que o primeiro NPO seja entregue em 2023, mas o vice-almirante que acompanhou a construção dos anteriores NPO diz que "é totalmente impossível".
"A construção de um NPO demora, em média três anos e meio. É impossível a primeira entrega ser em 2023. Tem ainda de se fazer o concurso e o contrato de adjudicação com os fornecedores. A não ser que a intervenção da IdD tenha em vista limitar este concurso e utilizar o ajuste direto", declara.
O MDN garante que "quanto aos prazos do programa de aquisição destes NPO, as entidades envolvidas - a IdD, o Ministério da Defesa Nacional, através da DGRDN, e a própria Marinha - trabalham no calendário que está identificado na RCM", salientando que "num projeto deste tipo a entrega do primeiro navio é, habitualmente, a mais prolongada porque a sua construção é antecedida dos necessários procedimentos de revisão do projeto de engenharia, passos que ficam cumpridos para as construções subsequentes".