Carlos Avilez: O experimentalista
Quando Carlos Avilez tinha 34 anos encenou Fedra (Jean Racine) alheio ao escândalo que agitou o meio: como poderia Muñoz, a caminho de se tornar Senhora Dona Eunice, ser dirigida por um miúdo?
Estava em 1967, dois anos depois de ter ajudado a fundar, com rebeldia - e "coragem", acrescentava sempre - o Experimental de Cascais(TEP), obra que marcaria o teatro português. "Rebeldia e coragem", traços distintivos que o levariam a arriscar, em tempos de crise pandémica, a encenação de Hamlet, convocando um elenco vasto que, por se tratar de Avilez, acedeu, mesmo sem qualquer certeza quanto à data de estreia.
O teatro de Carlos Avilez é feito com as mãos. "O teatro, independentemente das técnicas, tem de ser artesanal", disse num dos muitos "Dias do Teatro", em resposta aos jornalistas. O teatro de Avilez é a palavra. "Teatro é falar e ouvir falar", repetia, em alusão permanente ao fascínio que considerava maior: "Nem toda a gente pinta ou desenha, mas todos nós representamos. Estamos sempre a representar. O que me fascina no teatro é que trabalhamos com um "instrumento" diferente - o ser humano".
Primeiro quis ser ator. Estava-lhe na massa do sangue: nasceu neto de empresários teatrais e sobrinho de um encenador de operetas, estudioso de teatro e de fado. Órfão de mãe quase à nascença, depois da morte do avô paterno, tinha Carlos Vítor Machado 12 anos, ficou à guarda de familiares maternos. O tio general bem tentou encaminhá-lo para o Colégio Militar. Mas o daltonismo que não lhe permitia distinguir azul de castanho em boa hora o salvou.
O teatro era uma pulsão. Em carta a Amélia Rey Colaço, atreveu-se. "Quero ser ator", escreveu. Para espanto do então estudante universitário de matemática e físico-química, - quantas vezes se perguntava como podia gostar de teatro e de matemática ao mesmo tempo - a atriz respondeu depressa, marcando um encontro para o dia seguinte. Poucos depois, estava a ensaiar com os grandes sob o nome de guerra - Avilez.
Foi com 17 anos que decidiu mudar de nome, convencido pelo apelido distinto de Maria João Avillez. "Contou-me ele, muito mais tarde, que foi pedir autorização para usar o nome ao meu tio Francisco". O Avilez, criativo e rebelde, por oposição ao Carlos Vítor, a sua face séria e formal, cultivavam uma relação nem sempre pacífica, confessava o encenador em longa entrevista à Visão (abril, 2023). Ainda que ambos manifestassem timidez semelhante.
O Avilez-ator tem então pequenas participações em peças da companhia Amélia Rey Colaço - Robles Monteiro. Até um dia. "Você não é um ator, é um encenador", sentenciou a atriz. Sentindo-se agredido, reagiu com fúria e só muito mais tarde confessaria o quanto sofreu e o quanto lhe custou aceitar o veredicto.
1963 é o ano em que reconhece que a representação não é o caminho. Desde logo pela tendência para esquecer as falas. Com A Castro, de António Ferreira, na Guilherme Cossoul, Avilez provoca e desentorpece o meio artístico lisboeta. Do guarda-roupa arrojado (peças contemporâneas) ao coro - masculino em vez de feminino. Já então um experimentalista, ganharia o epiteto de enfant terrible. Pouco consensual, para a censura e a PIDE, aprendendo a lidar com críticas rendidas e valentes pateadas.
Quatro anos depois nascia o TEC, que amigos descrevem como "risco maior e paixão da vida". José Jorge Letria, amigo antigo, conta: "Houve momentos em que o TEC correu perigo, colocando-se a possibilidade de o teatro fechar. O Carlos encontrou sempre uma forma criativa de resolver o problema". Arriscando: "Numa dessas ocasiões aflitas, pôs em cena Dom Quixote, de Yves Jamiaque", recorda o atual presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, então vereador da Câmara de Cascais. "O Carlos, de grande entusiasmo, foi um criador, um inovador, sempre à procura de novas soluções", acrescenta Letria.
No Teatro Nacional D. Maria II (TNDM), casa que também foi sua, dirigiu Pedro, o Cru, Guerras de Alecrim e Manjerona, Fígados de Tigre, O leque de Lady Windermere, Ricardo II, O Crime da Aldeia Velha e A maçom e Real Caçada ao Sol.
"O Carlos é uma figura decisiva do teatro português, quer como ator, quer como encenador. Na relação com a pluralidade estética, é um artista determinante na agregação de outros artistas, o que é raro. É um criador de espaço e de oportunidades", diz Tiago Rodrigues. O ex-diretor do TNDM recorda a "generosidade", faceta que Maria João Avillez também relembra: "Um homem muito trabalhador, talentoso e criativo. Um ser humano muito bem formado, e generoso". Porque, diz Tiago Rodrigues, sabia dar uma opinião "sem se impor". E "porque ajudava os que chegavam", dando-lhes protagonismo. "Fez isso comigo no D. Maria. Que tinha sido ali muito feliz, disse-me, mas que, agora, era o meu tempo". Atualmente a dirigir o Festival Internacional de Teatro de Avinhão, o mais prestigiado da Europa, Rodrigues releva, na relação de ambos, "a elegância". E tece elogios a uma geração que, com o fim da ditadura, teve a oportunidade de moldar o teatro português: " O Carlos - tal como Jorge Silva Melo, Luís Miguel Cintra, João Mota, Fernanda Lapa e outros - influenciou muito o modo como se faz teatro no país. No caso dele, estamos perante alguém que se preocupou em criar, em fazer e em ajudar a fazer", referência ao pedagogo. A Escola Profissional de Teatro de Cascais, fundada por Avilez em 1993, "ainda hoje é muito importante para o teatro nacional", acrescenta Tiago Rodrigues.
Carlos Avilez cresceu em Arroios. Um dia, acompanhado de umas tias maternas, viu Palmira Bastos, Amelia Rey Colaço e João Villaret em Electra e os Fantasmas (Eugene O"Neill) no Teatro Nacional. "É isto", pensou. O círculo completa-se: fecha a caminhada de vida e obra com a mesma peça, atualmente em cena.
Carlos Avilez morreu ontem, aos 88 anos, no Hospital de Cascais, a cidade que elegeu, muito por causa do mar. "Estava em enorme sofrimento físico, mas feliz pela vida que teve", revela José Jorge Letria. Desaparece no mês em que fundou o TEC, a obra mais querida do seu percurso.
Quando encenou Fedra, aos 34 anos, Avilez disse ao que vinha. Não iria render-se à facilidade. "Queria fazer teatro como achava que devia ser feito, e fez". O teatro português tinha um eterno experimentalista. Era ele.
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