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23 NOV 2020
23 novembro 2020 às 00h38

"Biden durante a campanha manifestou uma retórica antagónica face à China"

Entrevista a Luís Tomé, especialista na geopolítica da Ásia-Pacífico e diretor do departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa. O académico admite certa continuidade da política americana com a China, mas abordagem de Biden será diferente da de Trump.

Leonídio Paulo Ferreira

Contenção da China será a mais óbvia linha de continuidade da política externa americana com Joe Biden presidente?
Sim e não. A perceção da China como rival estratégico e até principal ameaça tornou-se relativamente consensual nos EUA, quer entre a população quer entre democratas e republicanos, e o próprio Joe Biden durante a campanha para as presidenciais manifestou uma retórica bastante antagónica face à China e ao presidente Xi Jinping. Além disso, Biden deverá recolocar a promoção da democracia e dos direitos humanos entre as prioridades da política externa americana, o que pode aumentar certas fricções com Pequim para lá das questões comerciais, tecnológicas, de Taiwan ou do mar da China do Sul. Estes fatores permitem antever uma certa continuidade na contenção da China. Contudo, penso que a Administração Biden tentará seguir uma abordagem distinta de Trump: por um lado, dando mais margem para cooperação e articulação com a China onde é possível numa agenda muito ampla, do combate às alterações climáticas à gestão dos dossiês nucleares do Irão e da Coreia do Norte ou de certas crises e conflitos, no fundo, conjugando competição e cooperação com Pequim; por outro, lidando com a China em articulação com parceiros e aliados, designadamente do "arco das democracias".

Barack Obama, Donald Trump, agora Biden. Como tem evoluído a abordagem dos Estados Unidos a uma China cada vez mais poderosa?
Apesar das muitas diferenças, creio que todas as administrações americanas desde o fim da Guerra Fria têm tido em relação à China, fundamentalmente, uma política que mistura contenção e competição com cooperação e envolvimento. Porém, a China foi aumentando o seu "poder nacional abrangente", o que levou a Administração Obama a tentar criar com parceiros e aliados dos EUA mecanismos de contrapeso à China e para levar Pequim a assumir e respeitar mais premissas crucias de reciprocidades nas relações económicas e comerciais, por exemplo, através da Parceria Trans-Pacífico ou das negociações TTIP com a UE, ao mesmo tempo que tentou articular com parceiros reformas da Organização Mundial do Comércio e dos mecanismos de arbitragem para disputas comerciais. Por seu lado, a Administração Trump acentuou a dimensão competitiva e mesmo confrontacional face à China, designadamente nas áreas do comércio e da tecnologia, mas de forma isolada, não só não articulando com parceiros e aliados como também atacando estes numa postura nacional-populista, protecionista, egoísta e isolacionista. Daí, por exemplo, ao mesmo tempo que lançava a guerra comercial com a China, a Administração Trump ter imposto e ter ameaçado impor novas tarifas a importações provenientes desde o Japão à União Europeia, retirado os EUA do TPP e do TTIP, e até ameaçar abandonar a OMC, tal como retirou os EUA do Acordo de Paris sobre combate às alterações climáticas, do Acordo nuclear com o Irão ou da Organização Mundial da Saúde, deixando vários dos seus aliados do mesmo lado da China. Biden confrontar-se-á com um menor poder relativo dos EUA (em particular "poder de atração") e uma China mais poderosa e também mais assertiva, e creio que tenderá a seguir uma abordagem mais próxima da da Administração Obama (de que foi vice-presidente), sobretudo, no que respeita ao envolvimento e à articulação com parceiros e aliados para lidar com a China.

As relações económicas fortíssimas entre Estados Unidos e China são antídoto para uma nova Guerra Fria semelhante à americano-soviética das décadas de 1940 a 1980?
Creio que sim, até porque é muito evidente que danos na economia ou no comércio um do outro resultam em danos próprios, pelo que mesmo um eventual "desacoplamento" tem e terá muitos custos. Todavia, a interdependência económica, por si só, não garante automaticamente um bom relacionamento, podendo até aumentar tensões se e quando essa interdependência se torna "dependência" de um em relação ao outro, ou desigual, em que um beneficia muito mais do que o outro. Mas, independentemente da interdependência económica e comercial entre EUA e China, não podemos olhar novas realidades aplicando simplesmente conceitos e quadros obsoletos. Até podemos vir a ter uma espécie de segunda guerra fria - à questão "se pode" temos de responder que "sim, pode". Porém, a situação atual é completamente distinta daquela que existia durante a Guerra Fria: a China não é a URSS, o sistema internacional e o padrão de interações são completamente distintos e muito mais complexos, e as interdependências e a agenda mútua da China quer com os EUA quer com aliados e parceiros dos EUA são muitíssimo mais intensas, tanto nos domínios da economia e do comércio (e recordo que a China é o maior parceiro comercial da maioria dos aliados dos EUA) como em muitas outras áreas, do combate às alterações climáticas à gestão de crises e conflitos. E há ainda outras grandes potências à escala global ou regional (da Rússia, UE, Índia ou Japão à Turquia, ASEAN, Brasil, Irão ou Arábia Saudita) que seguem agendas próprias e têm mais margem de manobra na política internacional do que tinha a generalidade dos atores perante as pressões geoestratégicas das duas superpotências durante a Guerra Fria... Ou seja, mesmo que venha a confirmar-se a percecionada bipolaridade emergente EUA-China, tal não significa a inevitabilidade de conflito nem de uma nova guerra fria. Aliás, um dos cenários pode até vir a ser o de articulação e acomodação mútua de interesses entre EUA e China à custa dos interesses de todos os outros, cenário igualmente negativo.

O recente acordo comercial entre a China e países como o Japão e a Austrália contraria a construção de uma aliança antichinesa na Ásia que incluía estes dois países, a Índia e os Estados Unidos?
A assinatura do Acordo RCEP e o Quad são excelentes exemplos da complexidade das interações que referia há pouco num jogo tremendo de, simultaneamente, competição e cooperação entre os principais actores internacionais. O RCEP firmado entre os dez países ASEAN (vários com disputas territoriais com a China no mar da China do Sul) e Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia (aliados dos EUA) e a China tem uma dimensão simbólica, económica e política: institui a maior área de comércio livre do mundo, acentuando as interdependências entre países da região com a China mas sem os EUA, e é a demonstração de que os parceiros e aliados dos EUA na Ásia-Pacífico não partilham a ideia de somente competição e confronto face à China e que repudiam a visão protecionista. Convém recordar, aliás, que antes da assinatura do RCEP, já vários dos países signatários deste acordo tinham afirmado e reforçado, em 2018, o Acordo Trans-Pacífico (agora CPTPP), donde a Administração Trump tinha retirado os EUA. Acontece que, paralelamente, nos últimos anos, o Japão e a Austrália, com a Índia e os EUA, também reforçaram a articulação entre si numa clara lógica de frente anti-China. Quatro parceiros do Quad que, ao mesmo tempo, preservam as respetivas "parcerias estratégicas" bilaterais que cada um tem com a China. De facto, o mundo não é a preto e branco e não há simplesmente dois campos bem definidos que se oponham um ao outro. As dinâmicas não são lineares e o sistema internacional e o padrão de interações são muito complexos.

A Europa ganha ou perde com a tensão sino-americana?
Depende. Se a tensão degenerar em pura e simples confrontação EUA-China, a Europa corre um sério risco de se tornar num "teatro de operações" e pressões geopolíticas e geoestratégicas, de se dividir entre eixos opostos e/ou, caso alinhe genericamente com os EUA como seria expectável, perder o acesso que tem tido ao gigantesco mercado chinês e a investimentos chineses aqui na Europa. Uma tensão conflitual EUA-China pode ter implicações muito negativas em todas as áreas, até porque são os dois maiores parceiros comerciais da UE e são ambos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Porém, se a tensão sino-americana não escalar e se se mantiver em níveis razoáveis de convivência pacífica, a UE pode tirar algum partido dessa competição porque é parceira crucial tanto dos EUA como da China e, por outro lado, ganhar margem de manobra para se afirmar como ator internacional mais autónomo e mais completo na promoção dos seus interesses e valores. Em qualquer cenário e independentemente da evolução da relação EUA-China, é imperativo que a Europa e, concretamente, a União Europeia consigam falar a "uma só voz" no mundo, seja com EUA e China seja da Rússia à Venezuela, à Turquia ou à Líbia. Falar a uma só voz é a melhor forma não só de lidar com outros atores como de salvaguardarmos os nossos interesses e valores e de evitarmos que a Europa se torne periférica.

Tópicos: Joe Biden, Mundo, China, EUA