O que faz um médico em 24 horas no Serviço Nacional de Saúde (SNS)? De acordo com dados recolhidos pela Ordem dos Médicos e disponibilizados ao DN, os médicos integrados nas unidades públicas de saúde realizam por dia 118 825 consultas, 17 440 urgências, 2149 internamentos, 1841 intervenções cirúrgicas e 190 partos..O que ganham é justo para o número de horas que trabalham e nas condições em que o fazem? A classe é perentória e diz que não. O relatório da OCDE de 2019, publicado recentemente, revela que os médicos portugueses, e de um conjunto de colegas de outros 11 países - como Áustria, Bélgica, Canadá, Estónia, Finlândia, França, Hungria, Israel, Luxemburgo e México - são os únicos que registaram uma descida nos ordenados nos últimos sete anos, de cerca de 1,3%. Ou seja, de 2010 até 2017, coincidindo com a passagem da troika pelo país, em que se travaram contratações, regimes de exclusividade e outro tipo de incentivos..O mesmo relatório revela que, ao contrário dos profissionais dos outros países, tanto os médicos generalistas como os especialistas são os que ganham menos. O DN contactou alguns para saber o que acontece na prática e ficou a saber que a base de um médico generalista é de cerca 1200 euros por mês, enquanto a de um médico especialista, já com vários anos de carreira, pode chegar aos 1500 ou 1800, nestes valores não estão contabilizados bancos extras nem horas extraordinárias..De qualquer forma, e como assumem médicos seniores, são ordenados que não se comparam ao que hoje é oferecido no setor privado, que, por norma, é o dobro destes valores, e com outras regalias, como seguros, horas para investigação e formação. Ou do que se pratica no estrangeiro, sobretudo em França e no Reino Unido, países que mais recrutam médicos portugueses, em que os valores podem passar para o triplo do que recebem cá e ainda com a vertente de trabalharem a 100%, 75% ou 50%..Quanto à formação dos médicos e ao que esta custa ao Estado, ao país e aos contribuintes, também há muito a dizer. As contas estão feitas, aliás, e, dizem, qualquer administrador hospitalar as sabe fazer, mas, em quanto fica ao certo não há quem avance com números oficiais. Fontes do setor afirmam que os 10 a 12 anos de formação, cinco anos de formação base, curso, um ano de internato geral, e mais quatro ou seis de especialidade custam entre 80 e 100 mil euros..Os números são redondos. Para uns são elevados, mas para quem está no setor "são o que são". O médico cardiologista do Hospital de Santa Marta e vice-reitor da Universidade Nova de Lisboa, José Fragata, defende mesmo: "Um médico bem formado é uma dádiva para a vida de um doente.".Segundo explicaram as mesmas fontes, as contas à formação dos médicos durante estes anos tem por base o número de horas despendidas - por alunos, internos e formadores -, o preço de tais horas, tendo em conta que na especialidade um interno ganha à volta de 1200 euros pelo trabalho que desempenha - neste momento, representam um terço dos médicos do SNS, e muitas das suas queixas surgem precisamente por estarem a fazer muito mais do que deveriam e, por vezes, sem supervisão sénior - e pelo tipo de atos praticados, quer seja em consulta, internamento, urgência ou cirurgia..Argumento da formação é falacioso?.Por tudo isto também questionam: é falacioso ou não o argumento de que se é o Estado que nos forma deve ser compensado? O Estado já não está a ser compensado durante estes anos todos? Será esta a solução para atenuar a falta de médicos no SNS?.Os mais jovens reagem de forma firme e rejeitando qualquer medida neste sentido. Vasco Mendes, presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina, diz que "o cenário é catastrófico para se chegar a uma medida destas, quer dizer que esgotámos todas as soluções. Temo que o efeito seja o inverso. Não quero sequer pensar nesta solução, no meu caso vejo-me aprisionado a um cenário que me é relatado diariamente como mau"..O Conselho Nacional do Médico Interno, com o aval do bastonário Miguel Guimarães, exigiu nesta semana ao ministério que abra o jogo e diga realmente o que está a pensar fazer e como. O ministério apenas confirma que está a equacionar várias soluções no sentido de "incentivar a adaptação de novos modelos de organização do trabalho, podendo equacionar-se a celebração de pactos de permanência no SNS após a conclusão da formação especializada, a opção pelo trabalho em dedicação plena, bem como a promoção de responsabilidade da equipa e o pagamento de incentivos associados ao desempenho"..Para os sindicatos, "a medida até é boa se tudo o resto for assegurado, senão é demagogia pura e má gestão de recursos humanos. Se queremos integrar as pessoas no SNS a primeira coisa a fazer é mudar a estrutura atual, começar a olhar para o internato como o primeiro grau de carreira e dar aos internos a hipótese de poderem optar pela exclusividade", defende João Proença, presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam)..O Sindicato Independente dos Médicos (SIM) afirma estar "assumidamente contra a medida se não houver uma mudança estrutural radical". Jorge Paulo Roque da Cunha refere ser "mentira que o Estado invista na formação dos internos. Hoje, eles são a mão-de-obra barata, a mais baixa, e estão a ser aproveitados para tudo. Por exemplo, nas escalas de ginecologia-obstetrícia, o Estado deveria ter cinco especialistas, mas quando tem dois especialistas seniores e três internos está a poupar e não a investir"..Medida pode ser boa mas não isolada.Para quem já passou pela carreira hospitalar universitária, para quem já desempenhou cargos e pensou reformas, traçou metas e objetivos, a visão não é muito diferente. Ou seja, a medida até pode ser equacionada e aplicada, mas não de forma isolada, terá de fazer parte de um conjunto de muitos outras que tornem o SNS mais atrativo, como projetos que valorizem a prática clínica ou de investigação, e incentivos à remuneração. Como dizem os médicos seniores, o SNS está a concorrer com um setor privado muito forte e com um mercado de trabalho internacional também e o Estado "não se pode esquecer disso"..Constantino Sakellarides é médico, professor jubilado, ex-diretor da Escola Nacional de Saúde Pública, ex-diretor-geral da Saúde, presidente da ARSLVT, perito durante 14 anos na OMS, está na reforma, mas continua a trabalhar, sempre tendo em conta o que se pode fazer de melhor no SNS. No ano passado, em entrevista ao DN, e sobre a nova Lei de Bases da Saúde, afirmava não haver mais tempo a perder para se reformar o serviço público, senão este estava condenado ao fracasso ou a sobreviver só para classes desfavorecidas..Hoje, e perante esta hipótese de fixar os jovens médicos por alguns anos após a formação, refere: "No mundo atual não se pode governar como se gere uma mercearia, com uma medida hoje, amanhã outra. As medidas implementadas sem uma estratégia para o sistema têm pouca capacidade de sucesso." Ou seja, reforça, "se se avançar com esta medida sem serem criadas outras que funcionem como um incentivo para que os médicos queiram ficar a trabalhar no SNS, não iremos muito longe. A questão sobre que futuro para o SNS vai permanecer". Constantino Sakellarides acredita que se a medida for apresentada isoladamente será uma "discussão impossível, pois não tem capacidade estratégica"..Formação em Portugal é das melhores.Maria do Céu Machado, pediatra, professora universitária jubilada, passou por direções de serviço em várias unidades do SNS, foi diretora do Hospital de Santa Maria, presidente do Infarmed, é perentória ao defender também que "não pode ser uma medida isolada".."A formação de um médico é exaustiva, tem de ser muito séria e envolve muita gente, muitos especialistas seniores", reforçando que "a formação dada aos médicos portugueses continua a ser das melhores da Europa, por isso são muito requisitados para irem para fora", mas, para se aplicar uma medida destas, "tem de haver uma estratégia, já nem falo dos ordenados, que são muito baixos, nada comparáveis aos que se praticam no setor privado ou lá fora"..Portanto, "não nos podemos esquecer de que o SNS está a competir com um setor privado muito forte, a todos os níveis, prática hospitalar, tecnologia, investigação, etc., e o que deve ser pensado é como vamos alterar o cenário atual de forma estratégica e não de forma isolada"..O SNS está numa moral depressiva.O diretor da unidade de cirurgia cardiotorácica do Hospital de Santa Marta e vice-reitor da Universidade Nova de Lisboa, José Fragata, alerta para o facto de "a falta de médicos no SNS estar anunciada há muito tempo", e a partir do momento em que se deixou de cuidar das carreiras, que se desistiu da progressão hierárquica por mérito e dos incentivos pelo desempenho, e se deixou de pensar no investimento em projetos clínicos e de investigação.."Há muito que o SNS pratica salários baixíssimos e que não valoriza os profissionais com base na experiência, na idade, nos resultados que se obtém". Por isso, neste momento, diz, "o SNS está numa moral depressiva", sem capacidade para cativar quem está a ser formado e é bom profissional. E dá exemplos. "Se um interno é bom, antes de terminar a sua formação começa a ter convites do setor privado, convites bons do ponto de vista remuneratório e de evolução na carreira, e isso dá que pensar", porque da parte do serviço público não há qualquer reação.."No serviço público, os internos acabam a formação, não sabem se ficam no serviço onde se formaram ou se vão para outro sítio. Neste momento, há muito pouco para lhes oferecer", refere o cardiologista, sublinhando: "Por muito amor que as pessoas tenham à camisola e ao serviço onde se formaram têm de pensar nas suas vidas. O SNS é que não se preparou para o mundo de hoje e para as regras de concorrência.".José Fragata sublinha que não há falta de médicos no país, "há falta de médicos no SNS e não é com uma medida de obrigatoriedade que os jovens médicos se vão sentir atraídos a ficar, como obrigação já basta os impostos". O médico aceita que a medida pode ser equacionada pelo cenário que se vive atualmente pelo "sentido de urgência" que acarreta e pelo "desespero" que até se sente, mas "o problema na saúde tem de ser encarado de frente, de forma estratégica, com valorização e incentivos, com projetos de carreira" e não de forma isolada, defendendo que tem de "haver um grupo de reformadores da saúde"..Diogo quer ter a hipótese de escolher se quer ficar no SNS. Sem ser obrigado.Diogo Bernardo Matos, de 25 anos, é médico e quer trabalhar no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Em 2018, foi o aluno 100% do exame Harrison, hoje está prestes a dar início à especialização em oftalmologia, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e não duvida da importância do setor público. "É no SNS que temos a maior parte dos nossos doentes e onde temos a capacidade de transformar mais vidas. Se houver condições para isso, gostaria de manter-me aqui. Só trabalharia no privado se precisasse de mais dinheiro para fazer a minha vida", diz..Mas a hipótese de fidelidade ao serviço público durante mais uns anos por obrigação não lhe agrada, tendo em conta as condições de trabalho que espera encontrar: equipamentos obsoletos, instalações envelhecidas lista de espera e falta de médicos para dar resposta.."Não vejo com bons olhos que sejamos obrigados a fazer seja o que for. Forçar especialistas a assinar um acordo de permanência sem terem qualquer tipo de incentivo seria sempre um desrespeito. Durante o tempo em que estamos a fazer a especialização já temos um vínculo ao SNS. Depois disso deveria ser regime livre.".Este é o sétimo ano de formação de Diogo Matos, o primeiro classificado no exame de acesso à especialidade, em 2018, quando mais de 700 ficaram de fora. Diogo obteve 100% no Harrison, um teste baseado na memorização do tratado de medicina norte-americano com o mesmo nome, que neste ano foi substituído pela Prova Nacional de Acesso à Formação Especializada..O exame mais temido pelos estudantes de Medicina consumiu-lhe um ano de vida. Começou a estudar 13 meses antes e chegou a passar, nos últimos meses, 12 a 13 horas por dia a preparar-se para o momento em que estaria frente a frente com o enunciado e a lutar por uma vaga na especialidade. A ideia de seguir oftalmologia surgiu entretanto; tal como a decisão de ser médico, não era um plano de infância. Os pais, enfermeiros, deram-lhe uma noção do que seria o ambiente hospitalar e, na hora de escolher entre Economia e Medicina (opções que considerou no fim do ensino secundário), seguiu o caminho que lhe era mais familiar..Diogo é médico em Coimbra e começa a trabalhar no Hospital de Santa Maria em janeiro de 2020, mas já sabe o que o espera no Serviço Nacional de Saúde. Até porque já cumpriu o estágio no Centro Hospitalar Lisboa Central. E por isso também desvaloriza a opção da exclusividade". Não quer ficar amarrado..Emigrar pode ser solução.Vasco Mendes, presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina, começa também a fazer contas à vida e coloca mesmo a hipótese de emigrar. "A situação atual do SNS faz pensar onde queremos exercer e como. Medicina é um curso que envolve, no mínimo, dez anos de formação e, se falarmos em mais quatro ou cinco, só vou ter liberdade profissional quando tiver 40 anos. Se for para o estrangeiro fazer a minha especialidade e a seguir voltar sou livre", refere o aluno do 5.º ano de Medicina. Se não for durante a formação, pode ser depois. Vasco admite poder emigrar se o obrigarem a ficar no SNS mais tempo..Vasco e Diogo sentem-se revoltados com a medida que agora volta a estar em cima da mesa e que pode obrigá-los a ficar mais tempo no SNS. Depois de todo o esforço que fizeram para entrar no curso e já na formação básica, queriam poder escolher onde trabalhar.