Toc, toc, toc, toc. Um cavalo troteia pelo empedrado de Verdelhos com uma batida pachorrenta mas ritmada, parece a introdução para uma cantiga que nunca chega a arrancar. Atrelada ao animal está uma carroça, vem carregada de toros de pinho - e, ao lado, a mulher que foi colher madeira ao monte. "Dá-me para uma semana, este calhambeque cheio", zomba Silvina Afonso, 56 anos. Toc, toc, toc e o cavalo finalmente para. "Ó Nuno," grita ela pelo filho, "anda cá ajudar a descarregar isto"..Neste ano fartou-se de chover no outono e o povo de Verdelhos viu-se atrapalhado. É que chegou o inverno e ninguém tinha lenha seca nos armazéns para aquecer as casas. "Nós ainda nos safamos porque temos força nos braços", diz Nuno Afonso Costa, 38, o filho de Silvina. "Agora temos aí muito velhote que já não consegue ir todas as semanas ao monte. A maioria teve de poupar nos medicamentos e gastar a reforma a comprar madeiro." Aqui, explica o homem, os remédios podem prevenir doenças, sim. Passar frio é que é morte certa..Portugal, que tem no clima ameno um dos seus maiores argumentos turísticos, é na verdade o segundo país europeu onde se morre mais no inverno - e um daqueles em que as pessoas passam mais frio em casa. Nesta semana, a associação ambientalista Zero fez as contas ao desconforto térmico das casas portuguesas nos picos de calor e frio e concluiu que Portugal era o quarto país onde faltam mais fontes de energia para manter as casas confortáveis, atrás de Bulgária, Eslovénia e Hungria - onde o frio é muito mais extremo..O último Inquérito da União Europeia sobre Rendimento e Condições de Vida, divulgado no ano passado, aponta no mesmo sentido: mais de um quinto da população (20,4%) vive em situação de pobreza energética. Ou seja, não tem recursos para pagar a energia que precisa para as necessidades domésticas. E não há nenhuma freguesia no país onde isto aconteça como em Verdelhos, no concelho da Covilhã..Numa escala de zero a vinte, em que zero é o conforto térmico pleno e 20 uma condição semelhante à de um sem-abrigo, estas terras registam um índice de 14,2. "Aqui juntaram-se as condições para uma tempestade perfeita", diz João Pedro Gouveia, investigador do CENSE, um laboratório da Universidade Nova de Lisboa que passou os últimos anos a analisar a vulnerabilidade energética das 3092 freguesias do país às variações climáticas..Os níveis proibitivos de pobreza energética são transversais ao território, passa-se um frio intolerável no Algarve, em Trás-os-Montes ou nos subúrbios das grandes cidades, mas em nenhuma outra terra se passa tanto como nesta. "Em Verdelhos as casas são antigas, têm má eficiência energética e as temperaturas baixas da serra entram com facilidade nas habitações. Para piorar tudo, temos uma população com baixos recursos, que não tem condições para pagar faturas de eletricidade ou gás." Para esta gente, então, o desconforto não é arrepio - é fado.."As minhas filhas estão na Suíça e só aceitam vir cá no verão", diz Lucinda Silva Correia, 74, que vive na casa mais antiga da aldeia. "Dizem que passam muito mais frio aqui do que lá, e então não há maneira de passar o Natal com elas." Hoje, que o termómetro marca 15 graus na rua, estão nove dentro de casa. "Não é mau, quando o inverno aperta chegamos a estar aqui com graus negativos." A única solução, garante, é fazer uma fogueira no chão da cozinha..A freguesia de Verdelhos tem uma única povoação, dividida em vários bairros. Os seus 664 habitantes distribuem-se por Barreiros, Cova, Sarnadas e Borralheira. Esta última, na vertente nascente do vale, fica tapada pelo monte e, nos dias de inverno, há casas que não apanham um minuto de sol. A casa de Lucinda é uma dessas. Construída no século XVIII, tem paredes de xisto e um telhado que também é teto. Falta chaminé, luz e água canalizada. E falta uma casa de banho.."A única coisa que me safa é a lenha", atira com um encolher de ombros. "Tenho o lume acesso o dia inteiro", e nisto vai atear as brasas à cozinha. A janela fechada, nenhuma saída de ar, e o fumo a espalhar-se pelas divisões da casa. "Quando já não se consegue respirar é que vou abrir uma fresta das janelas da casa, mas na maior parte das vezes não é preciso. As paredes estão tão cheias de rachas que o ar circula." Nisto, Lucinda desata num ataque de tosse danado..Frio, calor e humidade nas casas.Só em Malta a taxa de mortalidade é maior no inverno do que em Portugal. Lá morrem mais 33% de pessoas na estação fria do que a média europeia, aqui são mais 24. Nos índices de pobreza energética, tirando a Lituânia, os países onde é mais difícil manter as casas quentes são igualmente do sul do continente - Bulgária, Grécia e Chipre. No outro lado da tabela estão os países escandinavos e do norte da Europa, onde o frio é mais intenso.."O que se passa em Portugal é uma questão de saúde pública que tem sido ignorada ao longo de décadas", defende João Paulo Gouveia. "O sul da Europa foi-se tornando confortável com o desconforto, as pessoas aqui estão tão habituadas a sofrer que o sofrimento tornou-se banal. Mas não é, nem pode ser. Esta pobreza energética tem sérias consequências para a sociedade." Desde logo nos gastos com o Serviço Nacional de Saúde. Uma população mais exposta é também mais vulnerável..Porque é que se passa mais frio num país que faz aberturas de noticiários quando cai neve do que naqueles onde todo o inverno é um manto branco? Os mapeamentos da pobreza energética nas freguesias portuguesas dizem que há um conjunto de fatores climáticos, económicos, sociais e arquitetónicos a explicar isto..E se a vulnerabilidade da população portuguesa já é grande, as alterações climatéricas estão a adensar o problema. "Se cada vez há fenómenos mais extremos, se cada vez há mais picos de calor e frio, então as pessoas também estão a passar por períodos de maior sofrimento", diz o cientista. Na visão de João Paulo Gouveia, este é o tempo de tornar a pobreza energética uma emergência política..Não é só o frio, na verdade, é também o calor e a humidade. Portugal é o quinto país da União Europeia onde a população revela maior incapacidade de manter a casa adequadamente quente, mas é o segundo onde se deteta maior presença de infiltrações, humidade e decomposição das habitações (25,5%, atrás de Chipre) e onde a população se queixa de conseguir manter as casas devidamente arrefecidas no verão (35,5%, atrás da Bulgária). "Se pensarmos na Califórnia, que tem um clima muito semelhante ao nosso, vemos que quase toda a gente tem ar condicionado. Aqui, o número oscila entre 10% e 15% do parque habitacional. Repito: ficámos confortáveis com o desconforto.".Não se consegue estar de mãos destapadas nas mesas do café Dan, que fica mesmo no largo principal da aldeia e é o principal ponto de peregrinação dos verdelhenses a partir da hora de almoço. As paredes estão decoradas com cartazes da Proteção Civil. Indicações de segurança para o caso de vir fogo, e isso faz Otília Correia rir. Tem 53 anos, é a dona do estabelecimento, e na hora em que o sol bate mais forte ela atira lenha para dentro da salamandra - "É que não se consegue estar aqui sem o lume acesso.".Os incêndios florestais normalmente acontecem nos dias quentes, mas quando o frio desce o vale eles provocam uma segunda tragédia. "A lenha vai desaparecendo e depois como é que temos aquecimento", pergunta-se a mulher. Ela explica - Verdelhos é terra de gente remediada e envelhecida, não há dinheiro para as faturas da luz ou para comprar botijas de gás. Só a madeira salva esta gente, mas ela é cada vez menos, roubam-na as labaredas e as celuloses. E isto é um bom exemplo do que se passa no país.."Quando pensamos em pobreza energética temos de pensar na falta de recursos", explica João Paulo Gouveia. "Portugal tem níveis baixíssimos de gastos com energia, mas o consumo de biocombustíveis está mais ao nível de um país africano do que europeu." Ou seja, é com fogo e, na maior parte das vezes, restos da floresta que as famílias combatem a vulnerabilidade ao frio..Dados já deste ano do Eurostat indicam que os portugueses pagam respetivamente mais 12% e 28% por eletricidade e gás do que a média europeia. O rendimento per capita, no entanto, é apenas 77% da média - o oitavo país da Europa a 27 com menor poder de compra. Acrescenta-se a isso um dos piores índices de desigualdade de rendimentos - 30% acima da média. Traduzindo em miúdos: a energia é mais cara, os rendimentos são mais baixos e estão mal distribuídos. Em regiões como Verdelhos, de população esparsa, pobre e envelhecida, o problema duplica..Otília, que há pouco andava a colocar lenha da salamandra do café, diz que há muita gente a morrer desta miséria. "E olhe, mesmo sem contar com os que ficam doentes de frio, temos os que morrem no lume." Vai buscar as gavetas da memória: há 30 anos foi o António Porfírio, há 20 a ti Maria do Adelino Lopes, há uma dezena de anos foi-se a dona Patrocínia. "Estavam ao lume a aquecer, adormeceram com aqueles fumos e caíram às brasas.".No final de janeiro, o JN analisou as notícias que saíram na comunicação social e chegou a um número que faz pensar: em três meses, contavam-se 19 mortes de pessoas por quedas nas lareiras ou intoxicações com monóxido de carbono quando tentavam aquecer as suas casas..Manual de sobrevivência.Apesar de os registos darem conta da existência de alguns castros medievais em Verdelhos, é no século XVIII que a aldeia se torna aldeia. Os 19 quilómetros que a separam da Covilhã são enganadores: os caminhos da serra são tortuosos e este sempre foi um vale isoladíssimo. Os habitantes costumam definir a povoação assim: "Fica no cu do mundo a caminho com nada.".O caudal do rio Beijamos permitiu abrir lameiros para os rebanhos pastarem - e foi o gado que justificou o estabelecimento da presença humana. Mas a terra sempre teve fama de friorenta. "O povo dizia que aqui os dias eram mais aferrenhados, porque o sol quase não batia na aldeia. Então, a partir do século XIX, os naturais de Verdelhos começam a tornar-se especialistas no combate ao frio", diz Adelino Pais Fernandes, historiador e autor de duas monografias sobre a freguesia. "A par da pecuária, os carvoeiros passaram a ser a grande riqueza da terra.".Dava emprego a metade das famílias da povoação, assegura ele, até o século XX ir já adiantado. Gente que vendia brasas nas aldeias e nas ceifas. "Os homens saíam de casa às primeiras horas da manhã com os potes cheios de carvão e só tornavam de noite. As mulheres e a canalha faziam-se ao mato para apanhar os madeiros e tratavam de o carbonizar." Era o inverno inteiro naquilo, gente pobre na manha de esconder a pobreza..Agora são três da tarde. Maria José e Maria da Graça, cunhadas, ambas com 80 anos e ambas com o apelido Correia, vieram sentar-se num banco na rua para apanhar o sol da tarde. "Aquecer os ossos, pois então." É paisagem frequente no país rural, este: um coro de velhotes a aquecer-se nos largos da aldeia do país. Mas aqui há uma coisa que mudou, e que demora até se reparar. Aqui o luto continua a ser feito com vestes negras. Mas já não são roupas de algodão, antes de tecido polar.."Quando éramos gaiatas as famílias eram grandes, estavam dez ou 12 numa casa e por isso o frio nunca era tanto", conta uma delas. Três ou quatro irmãos em cada quarto sempre disfarçavam o incómodo. "E toda a gente tinha os animais na loja, por debaixo da casa. Vivia-se uma pobreza muito grande, é verdade, mas lá nos íamos amornando uns com os outros.".Cobertores elétricos não havia, às vezes deitava-se brasas aos pés da cama para aquecer os pés. De Belmonte vinha todas as semanas um comerciante de cobertores e capas de burel, trocava-as por peles de ovelha. Mesmo hoje, ter radiador ou aquecimento a óleo é hábito raro em Verdelhos. "Nos colchões de palha parecia que não sofríamos tanto. Ou então era por sermos mais novas, ainda não tínhamos acumulado tanto gelo nos ossos.".Daniela Correia, presidente da Junta de Freguesia de Verdelhos, não tem dados concretos, mas desconfia que hoje mais de 90% dos agregados familiares sejam constituídos por apenas uma ou duas pessoas. "Idosos, sobretudo." Oitenta deles acorrem diariamente ao centro de dia da aldeia. "E não tenha dúvidas, vêm para estar quentinhos." Em novembro faz-se a festa do povoado, montam-se contentores com fogueiras na rua, vendem-se mantas de trapos e comida quente. A celebração de Verdelhos tem um nome que conta esta história inteirinha: Agasalhos no Frio..Em terra de emigração há os que saem e voltam - e são esses que vão melhorando as casas para protegê-las do clima. Sabino Morais, dono de uma empresa de construção civil em Verdelhos, diz que começam a chegar cada vez mais pedidos de reabilitação térmica para as habitações.."Temos sempre um problema, que é o tamanho das casas. Para as isolarmos melhor temos de criar segundas paredes e por caboto, uma espécie de esferovite. Mas, além do risco de incêndio, às vezes não conseguimos roubar espaço à rua para tornar uma casa melhor, ou os pés-direitos são demasiado baixos e depois não se consegue intervir no teto.".Não é só em Verdelhos que isto acontece. João Paulo Gouveia assegura que 75% das primeiras habitações do país - 3,5 milhões de casas - têm uma classe energética inferior a C. Ou seja, têm um isolamento térmico inferior ao que a lei europeia exige, desde 2006, aos novos edifícios. "Mas a verdade é que quase todas estas casas foram construídas muito antes disso", diz o investigador do CENSE. Em Verdelhos, são poucas as habitações com menos de trinta anos. Venha gélido ou escaldante, o vento parece que fura as paredes..A calamidade que ninguém resolve.Faz para a semana 20 anos que se deu o acidente. Adelino Correia, então com 38, trabalhava numa serração quando uma pilha de sete pinheiros deslizou para cima dele, partindo-lhe a espinha. Meses antes, ele e Maria José tinham comprado a casa onde ainda hoje vivem, em Verdelhos. A vida corria-lhes bem, ele a ganhar dinheiro na serração, ela numa fábrica de confeções na Covilhã. E de repente a vida mudou.."Passei a ficar em casa para tomar conta dele", conta a mulher, "e desde essa altura sustentamo-nos com 500 euros por mês." A cama é elétrica, a cadeira de rodas também - fica todos os dias a carregar das nove da noite às nove da manhã. "Todos os meses pagamos de luz 120 euros, não nos passa pela cabeça gastar mais a aquecer a casa.".A sala, no primeiro piso, tem uma salamandra, é ali que se aquecem. Mas só até à hora de jantar, porque a essa hora Adelino tem de cumprir a viagem para o andar de baixo. É lá que fica o quarto, a casa de banho e o lugar onde carrega a cadeira. "Dou a volta da rua de cima para a de baixo, faça sol, chuva ou vento. Saio do quentinho e vou para o meio do gelo. Mas não temos outra hipótese.".Os agregados familiares portugueses que recebam pensões de invalidez ou velhice, ou rendimentos sociais de inserção, têm desde 2016 direito automático a um desconto de 34% nas faturas de eletricidade e gás natural - é a taxa social de energia. Os últimos dados do Eurostat sugerem que 20% da população portuguesa tenha algum tipo de desconto graças a esta lei..Mas o sistema está longe de ser perfeito. Em agosto do ano passado, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos condenou a EDP pagar 1,9 milhões de euros por infrações na atribuição da tarifa social de eletricidade para consumidores com menores rendimentos. A própria empresa teve de vir a público pedir desculpas e admitir que estava a cobrar dinheiro indevidamente às famílias mais vulneráveis..A situação energética ideal, no entanto, está longe de agradar às corporações. "Além do isolamento térmico, temos de criar casas e comunidades autossustentáveis do ponto de vista da energia. Com os seus próprios painéis fotovoltaicos e as suas próprias fontes renováveis", diz joão Pedro Gouveia..Continuar a adiar uma solução, assegura o cientista, tem riscos demasiado elevados para a saúde pública. A diretora do Centro de Saúde da Covilhã, Eugénia Calvário, parece dar-lhe razão nos argumentos. "O frio potencia as doenças cardíacas e respiratórias e fragiliza o sistema imunitário, e fazemos um grande esforço a ensinar as pessoas a protegerem-se dele.".A médica garante que o povo de Verdelhos tem mais problemas de saúde do que os que vivem na cidade. "Ainda mais porque estas populações mais rurais e isoladas sempre estiveram habituadas a uma certa carência, não são tão reivindicativos quanto as camadas urbanas. Precisam de quem os defenda e de quem lhes defenda a saúde", diz Eugénia Calvário..Então de Verdelhos vê-se o país silencioso e pobre das casas mal isoladas, onde não há dinheiro para aquecimento ou refrigeração. Onde, na verdade, Portugal vai morrendo lentamente.