Há anos que o líder da extrema-direita italiana escolheu como alvos a imigração e Bruxelas. A estratégia tem colhido frutos: a Liga lidera as sondagens e Salvini decidiu livrar-se dos parceiros de coligação. Mas há quem lhe faça frente..O presidente italiano recebeu na quarta e quinta-feira os líderes partidários, bem como os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado com o objetivo de se alcançar um acordo que permita a formação de um novo governo, na sequência do pedido de demissão do primeiro-ministro Giuseppe Conte, na terça-feira, em resposta a uma moção de censura (entretanto retirada) por parte da Liga de Matteo Salvini, um dos partidos que a par do Movimento 5 Estrelas (M5E) formava o governo populista, agora em gestão..O presidente.Sergio Mattarella quer uma solução que evite a convocação de eleições e, apesar de não querer que a crise política se arraste, poderá conceder aos partidos alguns dias. O chefe do Estado sabe que, se os italianos forem chamados às urnas nos próximos tempos, Salvini tem grandes probabilidades de chefiar o próximo executivo..O ex-juiz do Tribunal Constitucional nunca escondeu o desconforto com a solução governativa que surgiu na sequência das eleições de março de 2018. Durante a formação do governo Liga-M5E, Mattarella vetou a nomeação do economista Paolo Savona, voz crítica do euro. Para o presidente era inaceitável passar a mensagem de que o governo italiano estava contra a moeda única. Por esses dias, Mattarella chegou a chamar outro economista, Carlo Cottarelli, para liderar um governo, mas entretanto os dois partidos cederam e Savona foi nomeado ministro dos Assuntos Europeus..Tinha o governo um mês e Mattarella, ex-democrata-cristão fundador do Partido Democrático, de centro-esquerda, criticou as políticas defendidas por Salvini. Sem nunca mencionar Salvini, disse que "falar sobre o encerramento de fronteiras é pouco responsável, é uma resposta a emoções sentidas ou invocadas. A responsabilidade política exige racionalidade". O siciliano afirmou ainda que a liberdade de movimentos na União Europeia é "irrevogável"..Em setembro, novo puxão de orelhas a Salvini. Com o ministro do Interior a enfrentar uma investigação por detenção ilegal após ter recusado receber mais de cem pessoas salvas no mar, Mattarella declarou, perante os deputados: "Cidadão algum está acima da lei, nem aqueles que estão no desempenho de cargos públicos nem os políticos." O remoque foi aproveitado pelo dirigente nacionalista: "Tem razão. É por isso que eu, em respeito à lei, à Constituição e ao compromisso com o povo italiano, fechei e irei fechar os portos aos traficantes humanos. Investiguem-me e levem-me a julgamento, que eu irei continuar", escreveu no Facebook..O primeiro-ministro.Giuseppe Conte foi durante 14 meses uma marioneta dos vice-primeiros-ministros italianos Luigi Di Maio e Matteo Salvini? A história vai julgar este jurista e professor universitário florentino, mas a avaliar pelos últimos tempos a impressão é a de que foi ganhando autonomia..Em junho, perante o crescente desentendimento entre os dois partidos da coligação, Conte afirmou: "Não estou aqui para andar à deriva. Se eles não assumirem as suas responsabilidades, eu demito-me.".Mas o que era uma crítica imparcial passou para um violento ataque pessoal, na sequência do anúncio, no dia 8, de que a Liga iria pôr termo ao governo. No Senado, após ter trocado um aperto de mão, sorrisos e confidências com Salvini, seguiu-se um discurso e posterior réplica ao ministro do Interior, no qual este foi estraçalhado pela apresentação da moção de censura..Ponto por ponto, começou por chamá-lo "irresponsável" por ter desencadeado a crise. "Pôs em marcha uma operação de progressivo afastamento do governo, a fim de encontrar um pretexto para chegar à crise e ir às urnas." Mais a mais "num momento delicado do diálogo com as instituições da UE" sobre a designação dos comissários. "Eu trabalhei para garantir à Itália um papel central. É evidente que a Itália corre o risco de participar nesta negociação em condições de objetiva fragilidade", disse, sobre um ministro do Interior que "demonstrou perseguir interesses pessoais e partidários"..Depois partiu para a crítica ao ideário de Salvini: "Não precisamos de pessoas com plenos poderes, mas que tenham cultura institucional e sentido de responsabilidade. As crises de governo, no nosso sistema, não são enfrentadas e reguladas nas ruas, mas no Parlamento", disse em referência às ameaças de Salvini de tomar o poder nas ruas, caso não sejam convocadas eleições..Conte desafiou Salvini a explicar-se perante os deputados sobre as acusações de financiamento ilegal do seu partido pelo Kremlin e criticou a "inconsciência religiosa" pela utilização de símbolos religiosos nos comícios, ao que Salvini contrapôs com um beijo num rosário..Por fim, Conte reagiu à retirada da moção de censura acusando o milanês de cobardia. "A crise tem a assinatura de Salvini. Se te falta a coragem, não te preocupes, eu assumo a responsabilidade", e com ela a renúncia ao cargo..O vice-primeiro-ministro rival.Luigi Di Maio, de 33 anos, era o homem que liderava a força política mais popular aquando das eleições. Mas o partido antissistema fundado por Beppe Grillo foi perdendo popularidade para as propostas incendiárias de Salvini. As diferenças programáticas entre os dois partidos levaram a vários desentendimentos, da construção da linha de TGV entre Turim e Lyon à política de gestão de resíduos, apesar de publicamente os líderes dos dois partidos não se enfrentarem. Após ter-se reunido com o presidente, na quinta-feira, Di Maio lamentou que a "lealdade" do governo tinha sido minada por uma cisão "unilateral", referindo-se ao ex-parceiro de coligação..Aproveitou para lançar outra farpa a Salvini, ao dizer que "os cidadãos que votaram em 4 de março de 2018 fizeram-no para mudar a Itália, não o Movimento, e eu acho que a coragem não é daqueles que fogem, mas daqueles que tentam até ao fim para mudar as coisas"..A ex-presidente do Parlamento.Laura Boldrini é um dos ódios de estimação de Salvini. Na altura deputada do pequeno partido Liberi e Uguali, foi presidente da Câmara dos Deputados entre 2013 e 2018. Do seu currículo destaca-se o trabalho no Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e a sua luta pela igualdade de género. Foi a primeira presidente da Câmara dos Deputados a participar na marcha de orgulho gay e levou para o Parlamento (e para o debate público) 1300 mulheres vítimas de violência doméstica..Em discursos ou no Facebook, Salvini insultou-a de quase todas as formas: comparou-a a uma boneca insuflável, chamou-lhe "racista em relação aos italianos". E Boldrini? Agora deputada pelo Partido Democrático (PD), não perde uma ocasião para criticar o nacionalista. "Entre um mojito e outro Salvini cria uma crise no governo e diz para irmos a votos! Depois informam-no de que não é ele quem decide quando votar e reparam que está prestes a perder o seu lugar. Então ele reflete e hoje diz que está disposto a reabrir o diálogo com o 5 Estrelas. Medo, hein?", escreveu no Twitter..Também na rede social, Boldrini defende um projeto de governo entre o PD e o 5 Estrelas, desde que em "claro corte com os danos provocados por Salvini e companhia", tendo como prioridades os temas do emprego, do ambiente e dos direitos..O jornalista que denunciou a máfia.O jornalista e escritor Roberto Saviano, autor de Gomorra, foi uma das vozes que se insurgiram com mais contundência contra Salvini, tendo escrito que temia pelo futuro de Itália devido à guerra aos migrantes..Enquanto ministro do Interior, Salvini ameaçou acabar com a proteção policial que Saviano tem devido a ameaças de morte por parte da máfia. "Temos de falar hoje em Itália, temos de discutir a situação. Mas não com Salvini: ele é um palhaço e falar com palhaços é uma perda de tempo. Salvini quer vencer pela ameaça. Este homem sem escrúpulos, cínico, não deve ser autorizado a armar (literalmente) as forças da intolerância. Aqueles que se calarem agora serão culpados para sempre", respondeu em artigo no The Guardian, no ano passado..A capitã Europa.É Carola Rackete, a capitã do navio Sea Watch 3, mas também podia ser Oscar Camps, o fundador da ONG Open Arms. São os ativistas pelos direitos humanos que têm desafiado a política de encerramento de portos e de perseguição às organizações que têm operado no Mediterrâneo para transportar migrantes e refugiados de África do Norte..A alemã Rackete, "capitã Europa" para a Der Spiegel mas "pirata" e "fora-da-lei", entre outros mimos, para Salvini, esteve detida por ter forçado a entrada no porto de Lampedusa e com isso levou para terra firme 41 migrantes. Mas a justiça não a incriminou (enfrentava um processo no qual podia ser condenada até 15 anos de prisão) e foi ela quem processou Salvini por difamação e instigação à violência nas redes sociais. Mas não se diz inimiga de Salvini: "O seu adversário é a sociedade civil como um todo", disse, porque está em causa "o princípio dos direitos humanos"..O procurador siciliano.Em desafio ao governo italiano, o procurador de Agrigento, Luigi Patronaggio, ordenou a apreensão do navio espanhol Open Arms para se realizar o desembarque dos cerca de cem migrantes a bordo. "A situação no navio é explosiva, de máxima urgência", considerou. A decisão aconteceu no dia em que nove migrantes que seguiam a bordo se lançaram ao mar. Dois dias antes outros migrantes tentaram chegar a nado à ilha de Lampedusa..O presidente francês e o governante espanhol.Consoante a atualidade, Salvini escolhe adversários no estrangeiro. Ora "os verdadeiros inimigos do povo" são o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, e o comissário dos Assuntos Económicos, Pierre Moscovici, ora se atira ao "arrogante" e "péssimo" presidente francês, Emmanuel Macron (acompanhado, neste caso, por Luigi Di Maio). Numa reunião sobre a crise migratória realizada em Paris, em julho, Macron lamentou a ausência de Salvini e disse que não se pode "permitir que os populismos cresçam", um tom mais comedido do que no caso Aquarius, no ano passado, quando falou de "irresponsabilidade e cinismo" por parte do ministro Salvini. Na quarta-feira, mais uma farpa: "A lição italiana é que, quando se faz uma aliança com a extrema-direita, no final a vitória vai sempre para a extrema-direita.".Na crise mais recente, do Open Arms, o governo do socialista espanhol Pedro Sánchez, que mostrou abertura para receber o navio nas ilhas Baleares e receber parte dos migrantes, qualificou a atitude de Salvini como "uma vergonha para a humanidade". "O que Salvini está a fazer em relação ao Open Arms é uma vergonha para a humanidade", denunciou a ministra espanhola da Defesa, Margarita Robles, na segunda-feira, culpando o líder da extrema-direita italiana por agir com "objetivos exclusivamente eleitoralistas".