Boris Johnson tem algo que Theresa May não tinha: conviveu durante longos anos, de muito perto, com a forma de negociar na União Europeia. Nos bastidores, quase sempre. À última hora, demasiadas vezes. Por isso, não será de estranhar a afirmação que o novo primeiro-ministro britânico fez nesta quarta-feira, em Berlim, na Alemanha, durante a conferência de imprensa conjunta que deu com a chanceler alemã Angela Merkel.."Testemunhei, ao longo da minha vida, muitas negociações europeias e, acreditem em mim, ao princípio parece sempre tudo uma força irresistível e um obstáculo inamovível. O que a experiência me diz é que as pessoas acabam sempre por encontrar um caminho e penso que se abordarmos isto com paciência suficiente e otimismo, como digo, podemos fazer isto. É normalmente na reta final, quando os cavalos mudam de posição, que o acordo vencedor aparece", disse Boris Johnson, que tem reiterado, insistentemente, a necessidade de retirar o ponto do backstop do acordo de retirada do Reino Unido da UE, sublinhando que o país sairá a 31 de outubro, como previsto, com ou sem acordo..Este foi o prazo concedido aos britânicos pela UE 27 quando, no Conselho Europeu de abril, aprovou uma segunda extensão do artigo 50.º do Tratado de Lisboa. Este regula a saída de um país da UE. Nessa cimeira, Merkel surgiu no papel de polícia bom da UE, mostrando abertura para ajudar May com uma nova extensão, tendo até as duas surgido vestidas de azul índigo (várias vezes a ex-primeira-ministra britânica foi criticada por brexiteers radicais por se vestir com a cor da bandeira da UE). Emmanuel Macron, o presidente francês, surgiu como o polícia mau, que exigiu, para não vetar uma nova extensão, que o prazo dessa fosse reduzido. Para que, como se tem visto, os britânicos ficassem de fora de decisão dos novos cargos europeus. Quando chegou ao poder, Boris Johnson esclareceu, desde logo, que Londres não nomeará nenhum comissário para a nova Comissão Europeia, liderada pela alemã Ursula von der Leyen, que entrará em funções a 1 de novembro.."Talvez possamos encontrar uma solução em 30 dias. Porque não?".Na reunião que teve em Berlim, Boris Johnson viu Angela Merkel fazer, de novo, de polícia bom. Mais uma vez vestida de azul índigo, a chanceler alemã lembrou que o backstop é a expressão de um problema sem solução, ou seja, pretende evitar o regresso de uma fronteira física entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte depois do Brexit. Merkel assinalou que esse protocolo sobre a fronteira irlandesa foi desenhado como solução de último recurso e que em princípio foi dado um prazo de dois anos para que se encontrasse uma solução de longo prazo que respeitasse os acordos de Sexta-Feira Santa de 1998. Estes permitiram pôr fim a um conflito sangrento de décadas entre unionistas protestantes que defendem a permanência da Irlanda do Norte no Reino Unido e republicanos católicos que queriam a unificação da ilha da Irlanda. O balanço desse conflito violento, que alguns temem poder reacender-se com um Brexit sem acordo e desregulado, foi de cerca de 3500 mortos..Porém, há sempre um porém, Merkel sugeriu que os europeus estarão disponíveis a dar sensivelmente um mês para que o novo governo britânico, dominado por brexiteers radicais, apresente propostas alternativas ao backstop. "Mas talvez possamos encontrar uma solução em 30 dias. Porque não?", questionou-se a chanceler, perante os jornalistas. "Existe uma ampla margem para um acordo", desde que "o backstop seja eliminado", frisou o líder britânico, acrescentando: "[A chanceler] diz que a responsabilidade recai agora sobre nós, para dar ideias e apresentar soluções, é isso que queremos fazer." Apesar disso, Boris Johnson, que disse entender a preocupação da UE em proteger o seu mercado único, saiu da conferência de imprensa sem dar mais detalhes sobre eventuais propostas alternativas..Mais tarde, em visita à Holanda, a chanceler democrata-cristã retificou um pouco as suas declarações. "Disse [ao primeiro-ministro britânico, Boris Johnson] que o que se pode fazer em dois ou três anos também pode ser feito em 30 dias. Dito de outra maneira, pode ser feito até 31 de outubro", precisou Merkel, citadas pelas agências. A líder alemã quis clarificar assim que não deu propriamente um prazo de "30 dias" a Londres para encontrar uma solução alternativa para o backstop, mas que apenas quis sublinhar que falta pouco tempo para o Brexit..Na quinta-feira, em Paris, Macron, o polícia mau, deu mostras de alguma flexibilidade. Mas não muita. "No espaço de um mês não vamos alcançar um novo acordo de retirada que seja diferente na base. Se houver coisas que, no contexto daquilo que foi negociado por Michel Barnier [negociador chefe da UE para o Brexit], possam ser adaptadas e estejam conforme os objetivos mencionados, a estabilidade da Irlanda e a integridade do mercado único, devem ser identificadas no mês que vem", declarou o presidente francês na reunião que teve no palácio do Eliseu com Boris Johnson.."Caso contrário", ressalvou Emmanuel Macron, "o problema será mais profundo, será mais político, um problema político britânico. E, nesse caso, não será a negociação que o resolverá, mas sim uma decisão política que tem de tomar o primeiro-ministro britânico. Isso não nos cabe a nós". O líder francês referia-se ao caos da política britânica, num Parlamento em que os conservadores de Boris Johnson só têm maioria de um deputado e, mesmo assim, incluindo já nela os deputados do Partido Democrático Unionista da Irlanda do Norte (DUP). Nesse mesmo Parlamento, entre críticas, ameaças e conspirações, o acordo do Brexit assinado entre May e a UE 27 foi chumbado três vezes. O que impossibilitou o Brexit na data prevista - 29 de março - obrigando às duas extensões do artigo 50.º entretanto concedidas a Londres..A UE ativou, assim, o modo de escuta, uma estratégia que, no final, impedirá Boris Johnson de dizer que os europeus não quiseram ouvir e considerar as suas propostas alternativas ao backstop. Nesse contexto, o primeiro-ministro britânico vai reunir-se no domingo, à margem da cimeira do G7 em Biarritz, com Donald Tusk, o presidente do Conselho Europeu. Na segunda-feira à noite Boris Johnson fez saber que enviara uma carta ao polaco a pedir a remoção do backstop do acordo de retirada do Reino Unido da União Europeia. Decidida, como é sabido, no referendo de 23 de junho de 2016. Tusk apressou-se a responder pelo Twitter aquele que tem sido o mantra da UE 27, ou seja, o acordo não é renegociável.."O backstop é uma garantia para evitar o regresso de uma fronteira física na ilha da Irlanda a menos que - e até que - uma alternativa seja encontrada. Aqueles que estão contra o backstop não estão a propor alternativas realistas e, na verdade, estão a apoiar o regresso de uma fronteira. Apesar de não admitirem", escreveu o presidente do Conselho Europeu, num tweet. A Comissão Europeia, através de um porta-voz, fez saber que concorda com as declarações de Tusk. "Devem ter visto que o presidente Tusk acabou de tuitar a sua reação à carta, reação que nós partilhamos." O presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker, não irá ao G7, em Biarritz, neste fim de semana, por razões de saúde, e, por isso, não se reunirá com Boris Johnson..Zonas económicas longe da fronteira e unidades móveis de controlo sanitário e fitossanitário?.Antes dos encontros com Merkel e Macron, Boris Johnson referiu-se ao relatório da Comissão sobre Disposições Alternativas como "um excelente relatório". Esta comissão é composta por um grupo não governamental estabelecido no início deste ano, o Prosperity UK, um think tank criado depois do referendo de 2016 para estudar o que poderá ser a futura relação entre o Reino Unido e a UE depois do Brexit. É liderado por Greg Hands e Nicky Morgan, dois deputados do Partido Conservador de Boris Johnson que votaram pelo remain, mas o painel de técnicos e académicos inclui alguns dos mais proeminentes brexiteers da Câmara dos Comuns..O relatório interino dessa comissão propõe uma abordagem por camadas de várias medidas que usariam as tecnologias existentes e as melhores práticas no que toca ao controlo de alfândegas, devendo estar totalmente implementada no espaço de três anos. Entre outras coisas, o relatório propõe a instalação de zonas económicas longe da zona de fronteira, a 30 ou 50 km para cada lado, a contar de Derry (na Irlanda do Norte) e de Donegal (na República da Irlanda). Para leste, entre Newry e Dundalk. As inspeções relacionadas com a segurança alimentar e normas de saúde seriam realizadas por unidades móveis longe da zona de fronteira. O relatório sugere igualmente que se investigue a possibilidade de criar uma zona sanitária e fitossanitária comum para toda a ilha da Irlanda tendo por base as regras da União Europeia para as medidas sanitárias e fitossanitárias..Os empresários da Irlanda do Norte criticaram o relatório, dizendo que muitas questões ficam sem resposta e que as soluções apresentadas acarretam muitas despesas para as empresas e que estas não conseguiriam suportá-las. Tais medidas iriam, segundo os empresários norte-irlandeses, "matar as empresas, prejudicar os consumidores e infligir um nível de vigilância nas comunidades fronteiriças que não foi autorizado pelas mesmas"..No que toca à República da Irlanda, apesar de o governo irlandês não ter reagido oficialmente ao relatório, por não se tratar de um documento oficial do governo britânico, a secretária de Estado dos Assuntos Europeus, Helen McEntee, disse em junho que as propostas nele contidas suscitam sérias questões e sérias dúvidas sobre de que forma conseguiriam produzir um efeito de ausência de fronteiras semelhante ao do backstop. Qualquer alternativa, frisou na altura, tem de conseguir fazer isso. Nesta quinta-feira, Helen McEntee manifestou-se "disposta a ouvir" quaisquer propostas do lado britânico que possam pôr fim a impasse do backstop, mas sublinhou que, até ao momento, não ouviu nada de credível do lado do Reino Unido..Também o vice-primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros da Irlanda, Simon Coveney, afirmou estar disposto a escutar as propostas britânicas, se as houver, mas realçou, uma vez mais, que o acordo de retirada do Reino Unido da UE não é renegociável. "O governo britânico disse que quer olhar para disposições alternativas que possam fazer o mesmo efeito do que o backstop e claro que nós vamos ouvi-lo. E penso que os outros países europeus farão o mesmo", declarou o número 2 do governo irlandês, sublinhando que o acordo de retirada - que levou tantos meses a negociar - "não vai ser posto de lado só para que se consiga chegar a um acordo" sobre o Brexit..As crises europeia e os acordos de última hora.No rescaldo do chumbo da Constituição Europeia em França e na Holanda, por referendo, em 2005, foi também a Alemanha de Merkel que assumiu as rédeas da situação, numa tentativa de remediá-la. Na presidência rotativa da UE, dois anos depois, a Alemanha declarou um "período de reflexão" sobre o que tinha acontecido. Em março de 2007, por ocasião dos 50 anos do Tratado de Roma, todos os Estados membros da UE adotaram a chamada Declaração de Berlim. Esta diz respeito à intenção de todos os Estados membros chegarem a acordo sobre um novo tratado europeu a tempo das eleições europeias de 2009..Muitas negociações se seguiram, grande parte delas durante a presidência europeia seguinte, que coube a Portugal. No decorrer das mesmas, vários momentos houve em que parecia haver forças irresistíveis e obstáculos inamovíveis, como frisou na quarta-feira Boris Johnson. Exemplo disso foram os protocolos exigidos pelo Reino Unido e pela Polónia, esclarecendo que os direitos dos tribunais europeus não se estenderiam para alterar a lei nacional britânica ou polaca. Chegou-se então ao tratado reformador, que altera tanto o tratado da União Europeia como o tratado que institui a Comunidade Europeia. E uma Conferência Intergovernamental começou a elaborar o novo tratado, sucessor da malograda Constituição Europeia..Antes do Conselho Europeu de 18 e 19 de outubro de 2017, em Lisboa, algumas exigências de última hora ameaçaram fazer descarrilar o processo. A Itália de Romano Prodi chegou à capital portuguesa exigindo ter o mesmo número de deputados no Parlamento Europeu do que o Reino Unido e a França. Para o agradar, acabou por se encontrar uma formulação, que é a que ainda vigora hoje em dia (enquanto não houver Brexit), na qual o Parlamento Europeu tem 750 deputados + 1. Esse 1 é o presidente, cargo atualmente ocupado pelo italiano David Sassoli. Depois foi a vez da Polónia dos irmãos Kaczynski colocar em perigo um acordo sobre o novo tratado nessa cimeira..Já a noite ia longa quando os polacos cederam, depois de lhes ter sido oferecido em troca um mecanismo inspirado no chamado compromisso de Joanina. Esse mecanismo permite que 55% dos Estados membros (75% até 1 de abril de 2017) necessários para constituir uma minoria de bloqueio possam solicitar a reavaliação de uma proposta durante um período de tempo razoável. A par disto, Varsóvia conseguiu mais um advogado-geral no Tribunal Europeu de Justiça, aumentando o número total de advogados-gerais permanentes de oito para 11. Obtido um acordo, seguiu-se o famoso "Porreiro, pá", de José Sócrates para Durão Barroso, na FIL do Parque das Nações. O primeiro era, à altura, primeiro-ministro de Portugal, o segundo presidente da Comissão Europeia..Mais tarde, a assinatura do tratado, que ficou conhecido como Tratado de Lisboa, foi assinado na capital portuguesa, a 13 de dezembro de 2007. Também nesse dia o Reino Unido marcou posição. O então primeiro-ministro britânico, o trabalhista Gordon Brown, não esteve presente na cerimónia de assinatura do tratado, no Mosteiro dos Jerónimos. Em sua representação esteve o ministro dos Negócios Estrangeiros da altura, David Miliband. Brown só chegou depois, a tempo da foto de família. Mas os sobressaltos ainda não tinham acabado. A Irlanda, em referendo, resolveu chumbar o Tratado de Lisboa, a 12 de junho de 2008. Depois de várias negociações, que passaram por garantir que cada Estado membro iria manter sempre o seu direito a um comissário europeu (em vez de ser rotativo, como se chegou a sugerir), os irlandeses lá aprovaram o novo documento num segundo referendo, a 2 de outubro de 2009 (ainda não sonhavam com o resgate da troika que mais tarde seriam obrigados a pedir, tal como Portugal, Grécia e Chipre). Dois meses depois, a 1 de dezembro de 2009, entrava em vigor o novo Tratado de Lisboa. Com direito a festa e tudo, no jardim da Torre de Belém.