Três médicos, dois engenheiros e um professor, todos amigos do tempo da faculdade, que se juntam nos tempos livres para fazer umas canções e dar uns concertos. Assim poderiam ser apresentados Os Quatro e Meia, não fosse dar-se o caso de o grupo nascido em Coimbra ter-se tornado um dos maiores fenómenos de popularidade da música portuguesa dos últimos tempos, como o atestam a presença nalguns dos maiores festivais nacionais e os concertos esgotados em salas como o Teatro Tivoli, a Casa da Música ou os sempre simbólicos Coliseus de Lisboa e do Porto..Nada mau para uma banda semiamadora (em que todos os membros mantêm outras profissões) e com apenas um disco editado, Pontos nos Is, lançado em 2018 e com o qual conseguiram destronar nada mais, nada menos do que Salvador Sobral do primeiro lugar da tabela nacional de vendas. Com o grupo assim mais ou menos apresentado, vamos então a quem o compõem. São eles Ricardo Liz Almeida, médico de pediatria, 29 anos (voz e guitarra); Tiago Nogueira, médico interno e cirurgião toráxico, 33 anos (voz e guitarra); Pedro Figueiredo, médico de família, 35 anos (percussão); Mário Ferreira, engenheiro informático, 34 anos (acordeão e piano); João Cristovão, 33 anos, professor de música (violino e bandolim); e ainda Rui Marques, engenheiro civil, 33 anos (baixo e contrabaixo) - a quem se deve o nome Quatro e Meia, devido à baixa estatura, quando a banda ainda era só composta por cinco elementos..Foi a estes rapazes perfeitamente normais que o músico Miguel Araújo dedicou uma das suas habituais crónicas na revista Visão, ironicamente intitulada "Porque não devemos gostar d'Os Quatro e Meia", na qual lembrava que a banda tinha acabado de esgotar o Coliseu do Porto "sem o apoio das rádios, da imprensa e sem pertencer à engrenagem. Apenas com um punhado de canções, de apenas um só álbum, o de estreia, que foram cantadas do princípio ao fim por pessoas de várias idades"..Quando estão prestes a editar um segundo álbum, O Tempo Vai Esperar, com edição marcada para a próxima sexta-feira (25 de setembro), impõe-se uma pergunta, que provoca um sorriso meio envergonhado a todos: qual é o segredo dos Quatro e Meia? Tiago, que funciona como uma espécie de porta-voz da banda, apesar de todos participarem na conversa, começa por agradecer as palavras de Miguel Araújo, "ele próprio uma referência para Os Quatro e Meia" e com quem até já partilharam o palco. "Não culpamos a imprensa nem ninguém por não ter reparado em nós, porque nós também não estávamos à espera de ter tanto sucesso. As coisas mais bonitas surgem de forma inesperada e, nosso caso, foi isso que se passou com a música.".Convém entretanto explicar que o grupo surgiu quase por acaso, quando, em 2013, foram desafiados por alguns amigos comuns para atuarem num sarau de angariação de fundos no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra, organizado pela Academia de Dança do Centro Norton de Matos. Tocaram apenas versões, que iam do pop-rock ao fado, com recurso a instrumentos acústicos como guitarra, contrabaixo, violino, acordeão, bandolim e percussão. As cerca de 500 pessoas presentes gostaram e depressa começaram a chover convites para repetirem. "Todos pertencemos antes a outras bandas, mas já trabalhávamos noutras profissões quando finalmente decidimos fazer uma brincadeira em conjunto", recorda Tiago, sem nunca pensarem em criar uma banda a sério.."No final desse concerto, que nem encarámos como tal, fomos convidados para fazer um segundo, depois um terceiro e, de repente, o público começou a pedir-nos para fazermos temas originais e, eventualmente, um disco. A seguir surgiu uma agência a querer representar-nos, entretanto surgiu a Sony Music e convida-nos para editar o tal disco. Fomos sempre atrás do que nos foi pedido e, quando demos por nós, de forma completamente inusitada, estávamos mesmo a fazer música e a tocar para milhares de pessoas", recordam. E será talvez essa a beleza maior disto tudo, o facto de nunca terem ponderado sequer criar uma banda e, hoje, ao olhar para trás, perceberem que já têm um percurso do qual já nos podemos orgulhar, "nem que seja para contar aos netos que, um dia, um grupo de amigos da faculdade encheu o Coliseu, com milhares de pessoas a cantar as suas músicas", ironiza Tiago. "É natural que a imprensa não estivesse atenta, porque nem nós esperávamos tal coisa.".Mas uma coisa é tocar bem e até fazer música própria, outra é conseguir que as canções resultem, junto de um público cada vez mais bombardeado por novidades. "Ou se nasce com vontade de mostrar o que se faz ou não, e nós sempre tivemos esse bichinho, de criar uma identidade própria, mas mais uma vez tenho de sublinhar que foi um fator externo que nos levou a dar esse passo", sustenta Tiago. "Tudo isso foi muito alimentado pelo público de forma quase orgânica, inicialmente mais em Coimbra, mas depois de tocarmos da Casa da Música ou no Tivoli, nos Coliseus, sempre com as salas cheias, começámos a acreditar", interrompe por sua vez Ricardo, lembrando que muitas bandas, "com tanta ou mais qualidade do que Os Quatro e Meia", nunca chegam a ter uma oportunidade como esta. "Somos uns privilegiados por termos conseguido esse carinho do público, pelo que só nos resta retribuir.".Quando apareceram, em 2018, foram logo comparados a nomes como Miguel Araújo ou António Zambujo, que também misturam a tradição musical portuguesa com a pop - facto explicado por Ricardo de forma bem prosaica, por não saberem "falar estrangeiro". Já Tiago explica que apesar de cada um dos seis membros ter "gostos diferentes", todos partilham algumas referências, especialmente da música portuguesa. "O Miguel Araújo é uma dessas referências, mas ele próprio bebe muito dessa fonte da tradição portuguesa, tanto na sonoridade como na estrutura. Mesmo em termos melódicos, ele recorre muito a esse inventário natural, que os portugueses estão habituados a ouvir. E nós também fomos formatados para pensar a música dessa forma, sem que isso signifique uma crítica a quem canta em inglês", esclarece Tiago..Entre essas referências comuns destacam-se os nomes de "Zeca Afonso, Amália Rodrigues, Fausto ou Trovante", e é "natural que tudo isso se revele" na música de Os Quatro e Meia. Esse diálogo entre pop e tradição encontra-se, no entanto, mais diluído no novo disco, que caracterizam como "um álbum de novas experiências", no qual trabalharam "com pessoas com bastante experiência". O Tempo Vai Esperar teve produção do João Só e a contribuição de gente como Carlão ou Tatanka (Black Mamba), que segundo Tiago "trouxeram uma outra bagagem" e "conseguiram moderar as dificuldades naturais de uma banda composta por seis pessoas, com cada a um a pensar pela própria cabeça e a querer dar o seu contributo". Mas estiveram todos de acordo na mais que audível viragem à pop das novas canções. "Quisemos explorar novos instrumentos e outras temáticas, de forma a estruturar a música de uma forma mais pop", reconhece Tiago, para quem Os Quatro e Meia "não pertencem nem à folk nem à pop", mas sim a quem os ouve. Para Ricardo, esse lado mais pop deve-se ao facto de terem tido "acesso a outro tipo de instrumentos". Uma mudança natural, como a avalia Pedro, pois "havendo uma guitarra elétrica, um piano ou uma bateria à disposição, fica-se com vontade de experimentar". E, garante, fizeram-no "sem qualquer complexo". Para Rui, o mais importante era que, no final, tudo soasse bem. "A identidade continua lá, embora a sonoridade tenha sofrido algumas alterações, mas isso faz parte do processo de evolução natural de qualquer banda.".No meio de tanto sucesso, a parte mais difícil de gerir é mesmo o equilíbrio entre as duas vidas que têm, uma dentro e outra fora de Os Quatro e Meia. "Todos temos outras profissões e não nos conseguimos juntar com a regularidade que eventualmente deveríamos. Mas, por outro lado, também estamos muitas vezes ausentes devido à música. Temos tido sorte, porque tanto a nossa agência, como os nossos chefes fora da música, como a família, como os amigos percebem esta limitação e todos eles vestem a camisola connosco", salienta Tiago. O tempo - ou a falta dele - acaba assim por ser um fator muito importante no percurso da banda e até um tema recorrente nas músicas, como se percebe pelo nome do novo álbum, O Tempo Vai Esperar. "Oxalá esperasse mais um bocadinho [risos], mas não nos podemos queixar, porque até agora temos conseguido conciliar as coisas da melhor forma", acrescenta Tiago, que até já teve uma paciente a pedir-lhe para adiar uma cirurgia porque queria ir a um concerto. "Só depois é que me confessou ter ido ver os Quatro e Meia, sem fazer ideia de que eu fazia parte da banda", conta Tiago. Todos têm alguma história do género para contar, como Rui, que até já assinou um CD "de capacete e botas de biqueira de aço, em plena obra", ou João, que já ganhou alguns alunos para as suas aulas de violino, depois de o terem visto em palco.."Lidamos com isso de forma surpreendente, mas ao mesmo tempo muito natural", assegura Pedro, que enquanto médico de família mantém uma relação muito próxima com os seus pacientes. No final das consultas, naquele momento a que, com graça, chama de "já agora" - "Já agora, doutor, pode-me passar uma receita" - por mais do que uma vez lhe entraram pessoas pelo consultório adentro, com o CD dos Quatro e Meia nas mãos, para pedir um autógrafo. "É muito engraçado e vejo isso com muito carinho, porque estamos numa situação mais formal e as barreiras acabam por desaparecer. Temos de lidar com isso com naturalidade, porque a música também é a nossa profissão e não há nenhuma barreira entre as duas coisas, bem pelo contrário, ficamos muito satisfeitos com esse carinho.".O mesmo carinho que irão sentir esta terça-feira (22 de setembro), no concerto de apresentação do disco, marcado para o Concento de São Francisco, em Coimbra, já há muito esgotado. Para o final do mês tinham também marcado aquele que seria, até à data, o maior espetáculo da banda, no Pavilhão Rosa Mota, no Porto, entretanto adiado devido à pandemia, para 30 de abril do próximo ano. "Enquanto médico, acredito que é possível, mas se a situação piorar entretanto, voltaremos a remarcar para outra data. Acima de tudo pensamos que também devemos de passar uma mensagem de esperança. As coisas têm estado relativamente controladas, portanto, oxalá. O mais importante é que tudo se resolva o mais rapidamente possível, para todos nos voltarmos a abraçar sem receios", conclui Tiago.