O caso passa-se em Marvila, uma das grandes freguesias da capital, e corre ao longo de 2,5 quilómetros pelo vale de Chelas. Já foi uma zona eminentemente rural e hoje as extensões verdes têm também prédios de habitação social, lojas de bairro, cafés, farmácias, pequenos restaurantes. Em grande destaque, e sempre com gente, há a biblioteca municipal inaugurada há dois anos, onde os moradores se cruzam para várias atividades: música, cinema, teatro, reuniões e, claro, tudo o que se relaciona com livros. "É muito mais do que uma biblioteca", diz sorridente Luís Pereira, 21 anos, servente de jardineiro, que se ligou à associação Serve the City e é facilitador comunitário no bairro dos Alfinetes..Saímos da biblioteca para ir até à linha férrea, à passagem de nível cruzada a pé por quem ali mora ou trabalha - os carros vão dar outra volta, não atravessam. Luís confessa que tem pena de ainda não ter conseguido ver as obras noturnas, mas as visitas organizadas pela Infraestruturas de Portugal (IP) foram sempre em vésperas de trabalho e ele levanta-se às seis da manhã. Estas visitas foram fundamentais para que o ruído da obra não levantasse protestos.."As pessoas foram informadas, sabem que o comboio vai fazer muito menos barulho e que o apeadeiro de Marvila vai ser melhorado", explica Henrique Chaves, 26 anos, sociólogo, homem ativo na associação Rés-do-Chão, ligado à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. "Já se sente a diferença onde há carris novos, não há aquele tantã tantã.".Acontece que nesta tarde não conseguimos conversar porque estamos muito perto da passagem de nível e a campainha não para. É hora de ponta e passam comboios a cada quatro minutos..Coincidem ali as linhas de Cintura, de Sintra, da Azambuja, do Oeste e até a linha que liga Faro a Braga, separando-se em sucessivas agulhas em cada um dos sentidos. Apesar deste tráfego constante, no apeadeiro de Marvila só param comboios de meia em meia hora e aos fins de semana não há um único que o faça..Quando os responsáveis da IP foram à biblioteca explicar a obra, os moradores avançaram com propostas. Cartas para a frente e para trás, hoje sabe-se que o apeadeiro vai ser renovado, pintado por grafiteiros do grupo que a Câmara Municipal de Lisboa já pôs a pintar empenas enormes dos prédios vizinhos e que são uma atração do bairro. Falta ainda obter resposta da CP sobre o aumento de comboios com paragem em Marvila..Que obra é esta?.A obra de renovação total da via - travessas, carris e balastro - é espetacular, feita por mãos seguras que o engenheiro responsável, João Cabral, elogia com convicção: "Parece que a máquina é a extensão das mãos deles." Pertencem à empresa Socicarril, de Ponte de Sor, numa subempreitada feita pela Sacyr Neopul, com sede em Lisboa. É um trabalho de minúcia, de força, de rapidez. A precisão é um ponto-chave, porque "aqui tudo se mede em milímetros", sublinha Susana Abrantes, da IP. Tudo tem de estar rigorosamente encaixado, apertado, calibrado..As palavras usadas no estaleiro não são estas. As chulipas, ou sulipas, chamam-se travessas, perderam aquele bizarro nome que vinha do inglês sleeper. Mas as outras palavras são um jargão técnico que chama "confinantes" aos moradores da vizinhança e dá aos equipamentos nomes misteriosos: tirefonadoras, atacadeiras, rail routes e até um "cristo". Não param quietas nesta noite de verão em que o DN visita a obra..O encontro é à meia-noite, junto ao apeadeiro de Marvila, e Susana fornece-nos logo coletes refletores de um verde-fluorescente, para ficarmos bem visíveis. Tudo começa com a chegada das máquinas, que passam o dia guardadas ou no terminal de Chelas ou na Logística da Bobadela. Surgem, tal como o material, pela linha férrea, apitando se for preciso, ou então pela estrada, como acontece com os rail routes: são máquinas que podem circular em estrada ou adaptar-se aos carris..Esparguete ferroviário.Vemos agora um rail route a fazer essa mudança de rodados. Já em posição e bem agarrado ao solo, ataca com dentes afiados, isto é, remexe as pedras de balastro para facilitar o que vem a seguir. A tirefonadora desaperta os tira-fundos (do francês tire-fonds), e então é possível retirar as travessas de madeira de 80 quilos cada - dois homens encarregam-se desta que é, literalmente, uma pesada tarefa. São colocadas nesse lugar as travessas de betão e regulariza-se a geometria dos carris. Ao mesmo tempo vai-se medindo a distância altimétrica entre a linha férrea e o fio de contacto que conduz a energia. Esta última operação é feita pelo "cristo", uma vara que termina no alto com uma cruz..Instaladas as novas travessas, noutra semana chega a vez dos novos carris e depois ainda haverá a substituição de todo o balastro, as pequenas pedras graníticas que absorvem e facilitam o escoamento das águas da chuva. Cada carril dos novos tem 144 metros de comprimento, num aço carbono flexível que permite modelar as curvas do traçado. "As barras antigas que estamos a retirar têm 36 metros e não são soldadas umas às outras, como acontece com as novas", explica João Cabral no meio do barulho que obriga a levantar bastante as vozes. Susana ri-se e diz que os novos carris "parecem esparguete"..Então se os carris são soldados uns aos outros, não há espaços de folga. O que acontece com as variações de temperatura, aquilo de "o calor dilata os corpos"?.Mas uma vez o engenheiro dá a explicação: "Os aparelhos de dilatação existem em zonas mais à frente que permitem absorver as dilatações e as contrações dos carris. Nas zonas de respiração, nas extremidades, a barra pode movimentar-se livremente. Por definição, uma barra longa soldada pode ter um comprimento infinito. Colocamos aparelhos de dilatação, por exemplo, em pontes de grande dimensão, porque o carril tem de permitir o jogo da dilatação da própria obra de arte.".Como é feita a substituição dos carris? Tal como na mudança das travessas, há uma sucessão precisa de ações: os rail routes trocam os "baldes" por pinças que levantam o carril, uma máquina em cada ponta. Depois deixam-no à beira da linha e fazem a operação ao contrário - vão buscar as novas barras e instalam-nas sobre as travessas. Simples, não é?.Tudo é reaproveitado.Todos os dias, ou melhor, todas as noites - menos nas de sábado para domingo -, o trabalho avança. De sexta para sábado o horário é mais longo, vai até às 08.00, o que proporciona um rendimento maior..De vez em quando, aparecem pessoas que caminham pela via, sacos nas mãos. Alguns sem-abrigo, outros que moram em lugares que não têm outro acesso. Trocam-se saudações, o trabalho e a caminhada continua..No final da noite, todo o material retirado é transportado para o Entroncamento, onde a IP tem a Logística. "Temos uma política de ambiente apertadíssima, tudo é reaproveitado", explica João Cabral, a ficar mais cansado à medida que as horas avançam. Tem um filho recém-nascido e as noites não têm sido fáceis..Este jovem formou-se em Engenharia Mecânica em Coimbra e tencionava dedicar-se a estruturas. "A minha ideia era fazer projetos, gestão de projetos, construção de edifícios." Mas entrou para a empresa e acabou por trabalhar sempre em ferrovias, primeiro em Coimbra, depois em Abrantes e desde 2007 em Lisboa..Pouca coisa fica de fora depois de ser dado destino às sobras desta operação. As partes metálicas são triadas logo na obra, colocadas em bidões, e transportadas para depois serem vendidas. As travessas de madeira têm vários destinos: as mais estragadas serão incineradas, normalmente nas cimenteiras do Outão ou de Pataias. Estão impregnadas de produtos químicos, daí a incineração industrial. Muitas estão em boas condições e podem ser reutilizadas em linhas secundárias, com pouco movimento. Mas há uma boa quantidade que não chega a aquecer o lugar nos armazéns, porque há muitos compradores interessados - vamos encontrá-las em jardins, decks ou passadiços pelo país fora..Qual a vantagem das travessas em betão?.Responde João Cabral, com infinita paciência para as sucessivas perguntas: "Durabilidade, acima de tudo. Uma travessa de betão pode durar 50 anos, uma de madeira dura, no máximo, dez. Todos os anos fazíamos o levantamento das travessas em piores condições e íamos substituindo. Não era tudo a eito, era uma substituição pontual. Só assim esta linha pôde ser mantida durante tantos anos desde a última renovação, no início dos anos 1970. Este é o troço que não foi alvo de modernização. No final dos anos 1990 toda a zona foi intervencionada, de Braço de Prata para a frente, para lado da Linha do Norte, do Oriente, e este troço ficou refém, manteve-se em via clássica. Era o troço mais crítico que tínhamos na área suburbana de Lisboa.".A renovação destes 2500 metros de linha foi adjudicada por 2,841 milhões de euros. Somando o preço dos materiais, explica o engenheiro, "é uma empreitada na ordem dos 4 milhões de euros". Tudo se iniciou em 2015, quando o projeto começou a ser desenvolvido pela IP Engenharia. Lançada a empreitada, com visto do Tribunal de Contas, os trabalhos começaram a 18 de maio último. Estavam previstos nove meses de obra, mas o prazo foi reduzido para sete. "Vamos conseguir concluí-la até meados de dezembro, para que as pessoas possam ter um Natal sem confusão.".Avançamos pela noite andando pela linha e aprendemos ainda que a bitola de 1668 milímetros entre os carris, usada em Portugal e Espanha, pode facilmente ser alterada para a europeia, de 1435 milímetros. "Esta via está preparada para isso", diz João Cabral..Às cinco horas desfaz-se o circo: haverá comboios a circular a partir das 05.30, é preciso que tudo esteja pronto e seguro. Os trabalhadores podem descansar, as máquinas vão para casa. Até que chegue a noite de novo.