Uma série que era suposto ser entretenimento de comic books e de super-heróis é, afinal, um discurso político sobre esta América racista de Donald Trump. Watchmen, criada por Damon Lindelof, famoso por Lost, subverte as expectativas do que se quer hoje em televisão. Trata-se mais uma vez da HBO a elevar a fasquia..Em Los Angeles, na apresentação à imprensa, Lindelof explicava o seu conceito: "Esta banda desenhada era inicialmente muito política. Quando foi lançada, a questão passava pela crise nuclear entre os EUA e a Rússia. Dessa maneira, se quiséssemos passar para 2019, achei que teríamos de incorporar o tema da raça e do policiamento nos EUA. Quis que tudo fosse feito de forma responsável e também baralhar o espectador sobre o que é história e o que é lenda... Se fosse sobre combater aliens, os bons da fita venciam os aliens e esses voltavam ao seu planeta. Mas aqui abordamos a supremacia branca, algo que nunca poderá ser derrotado. A supremacia branca é um tema intemporal. Achei que poderia apostar nesse conceito.".Um conceito que nos leva até Tulsa numa realidade paralela de 2019, em que a América é liderada pelo ator e realizador Robert Redford (que nunca aparece) e onde uma agente da polícia, Angela (interpretada pela atriz oscarizada Regina King), faz frente a uma poderosa organização de supremacistas brancos que tenta liquidar polícias negros. Uma América com terroristas internos e onde o medo está ao virar de cada esquina através destes vigilantes mascarados e racistas. Se o leitor estiver à espreita de pistas com os super-heróis dos livros de Alan Moore vai ter de respirar fundo. Damon Lindelof dá a volta ao texto e tudo é posto de pernas para o ar. Quem apenas viu o filme Watchmen, de Zack Snyder, ainda mais desconcertado pode ficar...."Estamos a usar ficção científica e história alternativa através de temas reais dos nossos dias. Ninguém vai reconhecer este mundo que criámos. Por outro lado, não é uma série que pretende dizer quem são os vilões e os heróis. Quem vir o primeiro episódio vai pensar que os polícias são os heróis. Mais tarde, vamos perceber que não. Tentámos fazer uma mistura rica sobre tudo o que identifica esta sociedade por intermédio de um exame sobre cultura e política", continua Lindelof, uma das vozes mais respeitadas da ficção televisiva nos EUA, mas que neste encontro com a imprensa diz estar preparado para perceber que os fãs de Alan Moore não achem que esta série seja mesmo uma adaptação de Watchmen..Estes nove episódios da primeira temporada têm um look de retrofuturismo com alguma imponência, efeitos visuais de primeira linha e uma escala de produção digna de um blockbuster potente. Watchmen tem também um elenco que pisca o olho ao cinema, em particular a protagonista Regina King, Don Johnson e um vilão pronto a vencer o Emmy, Jeremy Irons, que logo no primeiro episódio aparece nu e com uma demência assustadora. Nicole Kassel, do filme O Condenado e da série The Killing, é a realizadora. Ela que neste encontro em Los Angeles confessa que o dispositivo de máscaras permitiu criar um visual muito único: "As máscaras que os polícias colocam nesta história permitem algo muito cinematográfico. Joga-se muito com o que é claro e com aquilo que é mais obscuro...Por exemplo, se optarmos por um décor com mais luz não estamos necessariamente a ir para algo mais seguro...".A protagonista Regina King, fresca do seu Óscar em Se Esta Rua Falasse, tem um daqueles papelões que acontecem uma vez na vida. Uma heroína de ação que é também um gesto de afirmação feminina: "Esta mulher é um reflexo das experiências deste mundo. À medida que os episódios vão surgindo os espectadores vão perceber qual a razão para ela ter tantas máscaras. Nunca interpretei ninguém assim, não tive bem uma história prévia sobre a sua vida... Conheci a personagem à medida que íamos rodando, isso foi tão divertido como assustador. Foi também a primeira vez que filmei uma cena de sexo. Os homens vão adorar, algumas mulheres também", conta com um sorriso nada tímido..Tal como no filme, Alan Moore não quis estar associado a esta adaptação. Damon Lindelof percebe a reação desta lenda dos comics: "Ele é um génio, o maior escritor de novelas gráficas e, provavelmente, um dos maiores escritores de sempre, ponto final! Pediu que não usássemos o seu nome para vender a série e respeito isso! Tentei ainda falar com ele para lhe explicar qual a minha ideia nesta adaptação e ele foi muito veemente a dizer que não queria ter conhecimento nenhum sobre este projeto. Enfim, tem esse espírito punk rocker. Quando nos anos 1980 lhe disseram que ele não podia fazer isto ou assado com o Superman ele respondeu que se lixe! De alguma maneira, esta é a minha maneira de dizer ao Alan Moore 'vai-te lixar'!".Lindelof afirma também que este distópico 2019 da série não é muito diferente do 2019 dos nossos dias: "A nossa série ao inventar Robert Redford como protagonista está a refletir sobre o que poderia acontecer aos EUA se durante muitos anos a Casa Branca tivesse uma política ultraliberal..." O resultado é uma história perturbadora e negra sobre a ascensão da supremacia branca na América. A mensagem não é a preto E branco. Watchmen é um quebra-cabeças mais complexo do que poderia pensar-se.