O monegasco Alain Ducasse é um dos grandes chefs do mundo, um gigante da alta-cozinha mundial, como já lhe chamou o crítico de comida Fernando Melo, nas páginas do Diário de Notícias. Ou "o mais conceituado cozinheiro da atualidade", nas linhas de Maria de Lourdes Modesto também neste jornal. É "colecionador" de estrelas Michelin - três dos seus restaurantes ostentam as três estrelas, a nota máxima do prestigiado guia vermelho. Tem negócios ligados à gastronomia pelo mundo inteiro, que vão dos típicos bistrôs e brasseries franceses a uma rede de hotéis e restaurantes espalhada pela Europa. Mas não só. Também tem cafetarias artesanais e lojas de chocolates (também artesanais), um negócio em que diz estar a apostar cada vez mais em tempos de pandemia. Um império com o seu nome. Além disso, tem uma divisão internacional de educação em culinária e confeitaria, e que agora se juntou ao grupo internacional Sommet Education, especialistas em formação de elite na área da hotelaria. Por isso mesmo acaba de abrir um novo campus da sua escola fundada em 1999. A 10 quilómetros de Paris, num edifício pensado para o propósito. Com laboratórios dedicados à culinária, pastelaria, panificação, chocolate e gelados. Salas de aula para cursos académicos e ainda uma sala de análise sensorial dedicada à harmonização de alimentos e vinhos. Conta ao DN que as cozinhas da sua nova escola vão beneficiar daquilo que árvores e hortas em redor do campus derem, a pensar na sustentabilidade. No novo espaço há ainda uma área de take away e um restaurante de iniciação aberto ao público. Mas Alain Ducasse, que em conversa via zoom admitiu curiosidade pela cozinha portuguesa, falou também da pandemia e na necessidade de uma visão mais humanista nas cozinhas.. A abertura do novo campus de Paris estava prevista para março mas foi adiada por causa da pandemia. Como está a covid-19 a influenciar o funcionamento da escola, tendo em conta as restrições que existem em França? Abrimos na passada semana com 220 novos alunos para lecionar cozinha com grande qualidade e técnica. O novo campus está muito bem localizado a poucos quilómetros de Paris. Para já sei que perdemos alguns alunos estrangeiros que já não vêm para Paris para iniciar as suas aulas, tudo por causa da pandemia. Contudo, vamos começar o novo curso com 70 por cento da capacidade dos alunos e iremos de continuar com as nossas atividades dentro do possível, apesar da covid. Em França, os restaurantes estão fechados mas a educação não pode parar. Por isso, decidi, juntamente com os meus parceiros, abrir a escola. E já temos os alunos prontos. Os alunos vão ser formados a pensar em cozinhas com estrelas Michelin ou terão outro tipo de aprendizagem? Não. Os alunos vão aprender o básico e conhecer o ADN da cozinha. E isso depois tanto pode ser aplicado em alta cozinha como numa de cariz mais popular. Vão aprender a estar em qualquer tipo de cozinha. E o chef vai dar aulas no novo campus? Vai interagir com os alunos? Não irei dar aulas, quem está como supervisor e será o chef residente é Jacques Maximin, que é meu amigo e um grande cozinheiro francês. Dou sempre as boas vindas aos novos alunos, mas o responsável pela excelência do ensino será ele. Irei contudo dar inputs e tenho pessoas de grande qualidade que trabalham comigo há muito tempo e que vão dar transmitir os seus conhecimentos no campus..É possível alunos portugueses inscreverem-se na sua escola? Sim, e são muito bem-vindos. A escola está pensada também para alunos estrangeiros e por isso as aulas vão ser lecionadas em inglês. É uma escola que ensinará a gastronomia francesa, com a sua visão, ou terá também gastronomia de outras zonas mundo? Como sabe temos sempre chefs convidados nas minhas outras escolas, como por exemplo o chef espanhol Andoni Luis Aduriz, do restaurante Mugaritz, [que há mais de 12 anos está na lista dos 50 melhores do mundo e tem duas estrelas Michelin]. Para o campus de Paris decidimos seguir o mesmo exemplo, para além de grandes cozinheiros franceses, iremos ter chefs estrangeiros que ao passarem pelo campus de Paris, no futuro, vão intervir na escola e com grandes inputs, certamente. Mas temos várias cozinhas, com a espanhola e asiática, por exemplo. Vamos, sim, ensinar as técnicas de cozinha do mundo..Citaçãocitacao"Tenho esperança que daqui a algum tempo nos vamos lembrar deste período como algo muito negativo mas que conseguimos ultrapassar".E como a pandemia afetou os seus restaurantes? O que vai ficar destes tempos difíceis que a restauração vive? A pandemia tem sido uma lição de adaptação para todos. É verdade que os restaurantes em França estão fechados mas também é verdade que temos de continuar a cozinhar e a pensar na cozinha. Acho que inventei um espécie de prêt-à-porter da cozinha. No meu restaurante em Paris, na Plaze Athenée, que é um restaurante de alta cozinha e de grande qualidade, estamos agora a fazer delivery e take away de refeições de uma cozinha naturalista, pouco cara, muito à base de legumes e cereais e com muito pouca proteína animal. Temos de nos adaptar à pandemia. É claro que por todo o mundo há diferenças. Temos os restaurantes abertos em Nova Iorque e no Japão, mas por outro lado Londres e Paris estão fechados. São dificuldades que temos de ultrapassar. Tenho esperança que daqui a algum tempo nos vamos lembrar deste período como algo muito negativo mas que conseguimos ultrapassar. A pandemia está a colocar em causa o conceito dos restaurantes de alta gastronomia? Que conselhos dá aos chefs que estão nesse segmento? Vocês em Portugal têm um território com bons produtos, quer da terra quer do mar, e têm cultura gastronómica. Os vossos restaurantes estão agora abertos mas mesmo que estivessem fechados devem aceitar as mudanças e aceitar propor a vossa cozinha de modo a ser possível fazer em take away e continuar a preservar a ligação entre o cozinheiro, o empresário da restauração e o cliente. Portugal tem produtos fantásticos, é um destino turístico por excelência e com os vossos produtos e a vossa capacidade a covid será apenas um período mau que vão esquecer rapidamente.Citaçãocitacao"Experimentar a cozinha portuguesa é definitivamente algo que gostaria de explorar muito em breve". O que conhece da cozinha portuguesa? Tem tido curiosidade em relação ao que se tem feito em Portugal? Sou curioso por natureza e sempre numa perspetiva de aprender. Por isso experimentar a cozinha portuguesa é definitivamente algo que gostaria de explorar muito em breve. Fico a aguardar conselhos para conhecer os vossos melhores restaurantes quando tiver a oportunidade de visitar o vosso país. A nível pessoal como passou e está a passar pelo confinamento e por estas vagas da pandemia? Durante a primeira fase do confinamento fui para a minha casa de campo na zona do país basco francês. Aproveitei e andei pelos mercados locais e cozinhei todos os dias. Foi muito bom e deu-me um grande prazer. Nesta segunda fase, e com os restaurantes ainda fechados, decidi apostar nas nossas boutiques e lojas de chocolates que continuaram abertas. Temos pensado, refletido e desenvolvido receitas mais baratas e naturais com base em chocolate. E mesmo com os restaurantes fechados refletimos sobre formas de comida mais baratas para chegar a casa das pessoas. Estamos a preparar novidades para a próxima primavera que têm a ver com novas formas de cozinhar, novos ofícios e novas abordagens em relação à alimentação. É uma reflexão que fizemos durante os confinamentos. Estamos muito ativos na questão do chocolate. Até final de ano vamos abrir mais quatro lojas de chocolate em França e no Japão. Criamos o nosso chocolate em Paris, com receitas artesanais e com um estilo muito próprio, com pouco açúcar, com chocolate de origem e torrefação própria e uma linha de praliné particular. Os chocolates chamam-se Chocolat Alain Ducasse e já temos sete lojas no Japão e dez em Paris e no próximo ano estamos a pensar ter um total de 25 lojas em todo o mundo, com um chocolate artesanal e com uma diferente abordagem da que existe.. Nos últimos anos têm-se falado muito na evolução da comida. Comer insetos, produtos criados em laboratórios e, ao mesmo tempo, uma cozinha sustentável que gaste menos energia. Como vê o futuro da comida e da gastronomia no pós-covid? Acho que cada vez vamos ver um crescimento maior no consumo de legumes e de cereais e menos de proteína animal. Os cozinheiros têm de ter maior atenção e uma melhor visão sobre a sustentabilidade. Não precisamos de uma alimentação muito complicada, precisamos sim de uma alimentação mais saudável, quer para as pessoas quer para o ambiente. Temos de ter uma cozinha com mais humanismo, com mais respeito quer para com as pessoas quer pelo ambiente. E temos de ter tanto prazer na alta cozinha como na cozinha mais popular e que comemos nas ruas. No fundo é isso que vamos transmitir aos nossos alunos em Paris. Vamos abordar o ADN da cozinha, a preparação, a redução, etc., mas também transmitir uma visão mais naturalista e humanista da cozinha.