"É altamente provável que a OMS, em abril, levante o Estado de Emergência"

Ao fim de três anos, o vírus SARS-CoV-2 está a permitir uma vivência mais controlada. A OMS já assumiu que esta é a fase em que mais perto estamos do fim da "pandemia". O epidemiologista Manuel Carmo Gomes diz que o contexto atual reúne condições para que seja assim.
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Foi a 30 de janeiro de 2020 que a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou, em Genebra, que o surto do novo coronavírus (SARS-COV-2) constituía uma ameaça mundial, tendo acionado o Estado de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional. Na altura, além da China, onde o vírus foi identificado oficialmente no final de 2019, havia mais 19 países, com transmissão entre humanos, como Alemanha, Itália, Japão, e Estados Unidos da América. Em Portugal, os primeiros casos foram diagnosticados a 2 de março e, a partir daqui, nem nós nem o resto mundo deixou de viver sob a ameaça da doença provocada pelo novo vírus, a covid-19, ainda hoje é assim. No entanto, ao fim de três anos, pode dizer-se que "vivemos num contexto relativamente tranquilo e controlado, mas não livres do vírus", comenta ao DN o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, que liderou desde o início da pandemia a equipa da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa que fez sempre a modelação da evolução da doença. Acrescentando: "Sobre o que vai acontecer, não há certezas absolutas, mas o que se espera que venha a acontecer - atendendo às características das subvariantes da Ómicron que estão a circular, sobretudo no Ocidente, onde a evolução destas tem sido gradual e sempre na tentativa de fugir aos nossos anticorpos e reinfetando-nos - é que haja uma sazonalidade do vírus mais marcada." Neste sentido, argumenta o epidemiologista, "a partir do momento que a comunidade científica começa a ter alguma capacidade de prever o comportamento do vírus, e com alguma segurança, já não se justifica o Estado de Emergência a nível mundial, porque este é um alerta para situações inesperadas, e sem meios para fazer face", que foi o que aconteceu quando decretado.

Manuel Carmo Gomes acredita que, em abril, a OMS levantará o Estado de Emergência. "Não tenho certezas absolutas, ninguém tem, mas se o contexto for o que estamos a observar é altamente provável que deixemos de ter a situação de emergência". E explica porquê: "A chegada dos meses mais quentes vai diminuir a carga da doença na população e nos hospitais, de um modo geral. É o que já se observou, menos em 2021 em que tivemos uma onda preocupante no início do verão um pouco por toda a Europa, porque este coincidiu com o aparecimento de uma nova variante, a Delta, com características muito diferentes da anterior, a Alpha, muito mais patogénica. A partir daqui, tem-se observado que, nos meses quentes, a incidência da doença é mais baixa e perfeitamente controlável, e que no outono-inverno, sobe novamente, mas nesta altura o que há a fazer é proteger os mais vulneráveis, grupos de risco e idosos".

Este percurso da doença faz com que o professor da Faculdade de Ciências, que também integra a Comissão Técnica para a Vacinação contra a Covid-19, considere que estamos a entrar numa situação endémica. "Começamos a entrar numa situação que é endémica, no sentido em que temos alguma capacidade de previsão sobre o que vai acontecer", reforçando: "A partir do momento que a comunidade científica começa a ser capaz de prever o comportamento do vírus, não se justifica o estado de emergência."

O fim do Estado de Emergência já era esperado que fosse anunciado na última reunião da OMS, a 27 de janeiro, mas, a verdade, e talvez pelo que acontecia na China e ainda pelo número de óbitos que o mundo continuava a registar por dia, cerca de 10 mil, segundo dados da própria OMS, tal não aconteceu. O nível de alerta máximo foi mantido e a organização pediu aos países que continuassem vigilantes, adiando esta decisão para a próxima reunião, em abril. Só não será se "aparecer uma nova versão do vírus muito diferente das subvariantes da Ómicron em circulação no mundo", destaca Manuel Carmo Gomes.

Na verdade, este receio esteve emergente com a explosão de casos na China e quando ainda não se sabia se se tratava de uma nova variante, mas o especialista português afirma ao DN que, "até agora, a informação que tem sido fornecida pelas autoridades chinesas é coincidente com a informação recolhida por outros países, como Japão e Coreia do Sul. Portanto, neste momento, não há razão para acreditar que o que está a acontecer na China representa um perigo para o Ocidente. Temos um conhecimento relativamente robusto de quais são as variantes que estão a circular na China e sabemos que essas não têm hipótese na Europa, porque já cá estiveram e já decaíram. E enquanto não aparecer uma subvariante que seja mais patogénica, que se perceba que pode ser um perigo para a Europa, só temos de estar vigilantes, e não preocupados".

Neste momento, explica o especialista, o contexto atual no mundo Ocidental, é marcado por "três a quatro subvariantes da Ómicron que estão a circular em simultâneo. Não são sempre as mesmas em todos os países, pode haver algumas diferenças de região para região em relação às que são dominantes. Ou seja, temos uma pequenina sopa de subvariantes em cada área geográfica, quando surge um novo pacote de subvariantes, em geral, há uma pequena subida de casos, gerando uma pequena onda, mas, a situação está sob controlo e não se passa a grande onda". Aliás, sublinha, "se tudo continuar assim, não é de esperar que venhamos a ter novamente aquelas ondas assustadoras de covid-19, porque este é o contexto em relação às características do vírus que está a circular agora".

No caso de Portugal, e conforme demonstram os dados do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, o R(t) está agora elevado em todas as regiões, acima do valor 1.0, o que reflete "uma subida no número de casos ao longo do mês de fevereiro, que está a ser acompanhada de uma pequena subida nas hospitalizações e nos óbitos", confirma o epidemiologista. "Estamos com uma média de oito óbitos por dia, quando há 15 dias estávamos com três a quatro óbitos por dia, mas os números globais são bastante baixos, e nada de muito preocupante. Evidentemente, que temos de vigiar". Segundo explicou, este aumento está associado à entrada de duas a três novas subvariantes no país, o importante é que . "estamos conscientes deste pequeno aumento e estamos vigilantes. Não há motivo para grande preocupação".

Mas este contexto que a comunidade científica identifica como "mais tranquilo e controlado" também se deve ao facto de "a população estar extremamente imunizada". No caso português, "a grande maioria das pessoas tem um esquema vacinal já com três a quatro doses, alguns idosos, por exemplo, já têm quatro ou cinco doses, e, muitos também já foram infetados". Em relação à população mais nova, "cerca de 90% já foi infetada, portanto a maioria da população tem um bom grau de proteção contra o vírus e contra a doença grave, o que é bom". No entanto, destaca: "No futuro, é provável que todos nós venhamos a ser reinfetados mais uma, duas ou três vezes, porque o vírus não para de mudar, e cada subvariante que emerge tem capacidade de fugir aos anticorpos que não temos e infeta, embora não cause doença grave".

O infecciologista António Silva Graça concorda, mas é mais cauteloso, considerando que o futuro não é possível de prever e que tudo "pode acontecer". Aliás, refere, não era esperado que "as infeções de covid-19 tivessem tido um retrocesso" neste outono-inverno, mas se foi assim foi porque o vírus da gripe e outros vírus respiratórios ganharam terreno em relação ao SARS-CoV-2. Isto faz com que haja "alguma expectativa relativamente ao que virá após este retrocesso", refere, considerando que "o aumento do R(t) nas últimas semanas pode ser já o adivinhar de um recrudescimento da covid-19".

Quanto ao que fazer no futuro, o médico sustenta que "a nossa atitude não terá de ser muito diferente do que a que temos tido e do que tem sido aconselhado nos últimos meses", reforçando ser "importante que as pessoas mais vulneráveis estejam melhor protegidas em termos vacinal" e até o uso de máscara por todas "as pessoas com preocupações em relação à transmissão dos vírus respiratórios nas situações em que percebem que o risco é maior". E, ao mesmo tempo, "manter a vigilância das estirpes que possam surgir para se perceber se temos que ser mais cautelosos perante a possibilidade de haver uma com características de maior agressividade".

António Silva Graça concorda que, este ano, "estamos a caminhar para a possibilidade desta infeção se tornar endémica, embora com flutuações importantes, nomeadamente de caráter sazonal associado às temperaturas". Mas o desafio agora é tentar perceber se no próximo outono-inverno devemos ter uma atitude com a que temos com a gripe. "Continuamos a fazer raciocínios com fundamentação, mas sem uma certeza absoluta, apesar de haver algum conhecimento que aponta para que a covid-19 se vá tornar uma situação endémica", acreditando que "é o comportamento do vírus durante este ano que nos vai permitir ser mais assertivos e conclusivos em relação à doença e ao fim da pandemia".

Agência Europeia do Medicamento recomendou a vacinação anual. O infeciologista Silva Graça aceita, mas defende que a investigação sobre vacinas tem de continuar.

Um ano depois do aparecimento da doença, a Europa iniciava a vacinação da população contra a covid-19 com duas vacinas que entraram no mercado em tempo recorde, uma da Pfizer e outra da AstraZeneca, as quais ainda se mantém, embora a primeira já com uma versão adaptada à variante Ómicron. O primeiro país da Europa a iniciar o processo foi o Reino Unido, no início de dezembro de 2020, mas o resto da União Europeia seguiu-lhe o caminho, começando, quase em simultâneo, a vacinação da população a 26 de dezembro, como aconteceu em Portugal, com a inoculação dos profissionais de saúde. Dois anos depois, quase 100% da população tem o esquema vacinal primário e mais de 70% outras doses de reforço.

No ano passado, sobretudo Europa e EUA, avançaram com vários reforços para proteger os mais vulneráveis perante o aparecimento da Ómicron e de "ondas gigantes". A situação de está a fazer mais do que um reforço anual colocou a comunidade científica a debater se esta era a atitude correta. E, na semana passada, a Agência Europeia do Medicamento (EMA, sigla inglesa) veio recomendar a vacinação anual. A justificação foi a de que "a doença representa ainda uma carga significativa" para os sistemas de saúde na Europa, assumindo, no entanto, que, "embora seja verdade que o vírus ainda não se comporte como um vírus respiratório sazonal endémico, como outros coronavírus endémicos, esperamos que as campanhas de vacinação ocorram principalmente uma vez por ano", afirmou o chefe de Estratégia de Ameaças Biológicas para a Saúde e Vacinas do regulador europeu, Marco Cavaleri, citado pela agência noticiosa Efe, propondo ainda que "a melhor altura do ano para a administração da vacina será o início da estação fria", coincidindo com a época para a inoculação de vacinas contra outros vírus respiratórios (como o da gripe).

O infecciologista António Silva Graça defendeu ao DN concordar ser "indesejável que se mantenha uma estratégia de imunizações repetidas. E por uma razão óbvia, porque tal faz com que o número de pessoas que aceitem esta repetição também vá reduzindo. Aliás, percebemos isso quando houve a intenção de um segundo reforço (quarta dose) em que a cobertura foi menor em todos os grupos etários". Portanto, "é desejável que se faça apenas os reforços que forem considerados necessários nos momentos ótimos para o fazer, o que se admite como mais provável em relação à covid-19 seja pouco antes de as temperaturas começarem a descer", reforçando não haver qualquer "vantagem começar-se muito tempo antes, porque a proteção máxima dada pela inoculação é limitada no tempo e já se sabe que o maior grau de proteção vai até aos três meses". No ano passado, foram feitos reforços aos grupos mais vulneráveis no início do verão que voltaram a ser vacinados no outono, só que "estes ajustes não demonstraram justificação, perante as últimas variantes".

A aplicação de um número menor de vacinas não parece levantar dúvidas entre a comunidade científica, a questão que Silva Graça considera agora importante é a de se manter "a investigação nesta área para haver melhores vacinas e mais adaptadas a estirpes diferentes da da Ómicron". O médico diz mesmo: "Foi possível obter vacinas de forma muito célere contra a covid-19, mas, nesta altura, percebemos que são precisas melhores vacinas, que além de protegerem as pessoas da doença grave e da morte, sejam mais protetoras em relação à transmissão. Esta é uma necessidade para o futuro".

O epidemiologista Manuel Carmo Gomes não discorda da decisão da EMA, mas estranha a recomendação. "Não é hábito. Esta decisão tem de ser tomada pelas comissões de vacinação de cada país". No entanto, sustenta, que "esta recomendação está em linha com o contexto atual e com a previsibilidade de que o vírus diminua a sua incidência na população no tempo quente e que volte a subir no outono-inverno, o que justifica então voltar-se a proteger grupos de risco e os mais idosos".

anamafaldainacio@dn.pt

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