O cardeal americano Raymond Burke não esconde o quanto detesta o Papa Francisco: gostava de o ver resignar, duvida da sua capacidade teológica e, agora, ataca uma suposta "agenda homossexual", para melhor pôr em causa o pontificado de Francisco..Numa carta divulgada a menos de 48 horas do início do encontro, que nesta quinta-feira se inicia no Vaticano e que o Papa convocou para discutir os abusos sexuais de menores por padres, religiosos, bispos e cardeais, o americano Raymond Burke e o cardeal alemão Walter Brandmüller voltaram a atacar o bispo de Roma, dirigindo-se aos seus "irmãos, presidentes das conferências episcopais". O pretexto é só um: a abertura de Francisco em questões sexuais e morais - que estes dois cardeais ultraconservadores abominam..Numa passagem da sua carta, preto no branco, Burke e Brandmüller dizem que "o abuso sexual é atribuído ao clericalismo", "mas", advertem logo, "a primeira e principal falha do clero não reside no abuso de poder, mas em se afastar da verdade do Evangelho". Qual a causa? "A negação até mesmo pública, por palavras e por atos, da lei divina e natural, está na raiz do mal que corrompe certos círculos na Igreja.".É a "lei divina e natural" que Francisco colocará em causa, segundo estes cardeais - que são apoiados por movimentos de extrema-direita, como Steven Bannon, o ideólogo de Trump, transformado em globetrotter de extremistas e neonazis europeus e que anunciou que estará em Roma durante estes quatro dias de reunião..A exortação apostólica Amoris Laetitia, publicada em abril de 2016, é a que mais enfurece estes cardeais. Com outros dois cardeais (que morreram ambos em 2017), seis meses depois da publicação do texto papal, Walter Brandmüller, Raymond L. Burke, Joachim Meisner e Carlo Caffarra lançaram cinco dúvidas sobre a exortação de Francisco..No capítulo VIII, o Papa Francisco escreveu sobre os católicos divorciados e recasados: "Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho! (...) Os divorciados que vivem numa nova união, por exemplo, podem encontrar-se em situações muito diferentes, que não devem ser catalogadas ou encerradas em afirmações demasiado rígidas, sem deixar espaço para um adequado discernimento pessoal e pastoral", afirmou Francisco..Este texto mostra uma abertura que eriçou os setores ultraconservadores da Igreja e permitiu interpretações mais ou menos distintas em diferentes partes do mundo. Na Argentina, os bispos admitiram "um eventual acesso aos sacramentos" para divorciados recasados. E, em Portugal, o arcebispo de Braga - seguido pelos bispos de Aveiro e Viseu - admitiu que o processo pode levar o casal (com o acompanhamento de um padre ou diretor espiritual) a decidir-se por regressar aos sacramentos, enquanto em Lisboa acentuou-se o carácter muito excecional dessa opção e apontou-se uma proposta de abstinência sexual..Nos dois casos, não se contraria a doutrina católica tradicional do matrimónio indissolúvel - como o Papa também não o faz -, mas propõem-se caminhos diferentes para resolver os problemas de quem acabou com o casamento desfeito, como Francisco defendeu no seu texto..Foi esta a principal causa de escândalo para os quatro cardeais, que lançaram os dubia ao bispo de Roma - que nunca lhes respondeu formalmente. Mas as dúvidas eram retóricas: para estes cardeais, signatários do "Apelo ao Papa por esclarecimento", a Amoris Laetitia é fonte de erros, não de dúvidas. Para Burke, se o Papa não respondesse, eles deveriam "simplesmente corrigir a situação". Em muitos sites conservadores explica-se que esta exortação abre a porta a que os "adúlteros não arrependidos" recebam a "sagrada comunhão". Lapidar..O bispo que veio do fim do mundo escudou-se no texto dos bispos argentinos para defender que o documento de interpretação à exortação "é muito bom e explica cabalmente o sentido do capítulo VIII de Amoris Laetitia". E concluía Francisco: "Não há outras interpretações.".Sem se referir diretamente à carta dos cardeais, o Papa Francisco apontou o dedo, na audiência geral desta quarta-feira, aqueles que passam a vida a acusar. São amigos e parentes do "diabo". .Dirigindo-se aos fiéis de Benevento, uma diocese italiana, Francisco atirou: "Não se pode viver uma vida inteira a acusar, acusar e acusar a Igreja. De quem é o ofício de acusador? Quem é a Bíblia chama de grande acusador? O diabo! E aqueles que passam a vida a acusar, a acusar, a acusar são - eu não direi filhos, porque o diabo não tem nenhum - mas amigos, primos, parentes do diabo. E não, isso não está bem: devemos apontar os defeitos para os corrigir, mas no momento em que os defeitos são apontados e são denunciados, a Igreja é amada. Sem amor, isso é do diabo.".A agenda social do Papa também atrapalha a ideologia de Burke, muito influenciado pela extrema-direita. Steve Bannon confirmou ao The Daily Beast que estará em Roma e, de acordo com este jornal americano, espera-se que Bannon e Burke usem os bastidores da cimeira como uma oportunidade para protestar contra o que ambos acreditam ser a causa básica dos abusos de menores: padres homossexuais. Com isto, argumenta o jornal, eles pretendem sugerir que a clemência e compaixão já manifestada pelo Papa em relação aos católicos gays de alguma forma capacita os agressores..Francisco também não teve dúvidas de que lado se colocar, logo na primeira viagem apostólica do seu pontificado, com uma visita a Lampedusa, a ilha-prisão para tantos que procuram a Europa e esbarram na fortaleza de um continente que insiste em rejeitar quem procura ajuda e foge de guerras ou da miséria. "Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituámo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa", disse o Papa, em julho de 2013..Já Raymond Burke, numa entrevista a um canal de televisão, falando com o Vaticano de fundo, justificou as tiradas xenófobas de Matteo Salvini, o ministro do Interior italiano. "É compreensível" a sua posição, respondeu Burke à EWTV. E completou a resposta, com uma cartilha pouco evangélica. "A Itália tem recebido imigrantes em número muito superior ao que a nação pode aguentar. Muitos italianos nativos estão em grande sofrimento e grande pobreza e a nação tem de cuidar primeiro dos seus próprios cidadãos e depois examinar cuidadosamente quem são estes imigrantes, se são pessoas que são verdadeiramente refugiados ou são indivíduos que simplesmente vêm para a nação para o seu próprio (como é que posso dizer) interesse - mas isto não pode ser às custas da nação e da sua própria identidade e de tomar conta dos seus cidadãos.".Na carta agora tornada pública, Burke e Brandmüller recusam que as responsabilidades pelos crimes de abusos sexuais de menores sejam imputáveis à Igreja.."A praga da agenda homossexual espalhou-se dentro da Igreja, promovida por redes organizadas e protegida por um clima de cumplicidade e uma conspiração de silêncio." E acrescentam: "O abuso sexual é atribuído ao clericalismo. Mas a primeira e principal falta do clero não reside no abuso de poder, mas em se afastar da verdade do Evangelho. A negação até mesmo pública, por palavras e por atos, da lei divina e natural, está na raiz do mal que corrompe certos círculos na Igreja.".Os dois cardeais questionam se todos ficarão em silêncio, voltando a recordar que Francisco os deixou sem resposta, ignorando os dubia de novembro de 2016, quando na verdade o Papa respondeu.."Estamos entre aqueles que em 2016 apresentaram algumas questões ao Santo Padre, dubia, que dividiam a Igreja no seguimento das conclusões do Sínodo sobre a Família. Hoje, esses dubia não só não tiveram resposta como também fazem parte de uma crise mais geral da fé. Por isso, encorajamo-lo a levantar a sua voz para salvaguardar e proclamar a integridade da doutrina da Igreja.".A integridade proclamada pelos dois cardeais parece beber pouco no espírito do Vaticano II, o concílio em que a Igreja atualizou a sua liturgia, rituais e linguagem. Muitas vezes, Burke celebra a missa de acordo com o antigo rito de Pio X, admitido pela Santa Sé como uma exceção, no qual a missa é dita em latim e o celebrante está de costas para a assembleia. Burke também usa regularmente a capa magna, que se reconhece por uma longa cauda, paramentos faustosos que os tradicionalistas gostam de usar..Na visita do Papa Francisco a Fátima, para a canonização de Jacinta e Francisco, o cardeal americano não subiu ao altar para concelebrar a missa da canonização, ficando no meio da multidão, como contou então o Expresso. No domingo, na missa já presidida por António Marto, bispo de Leiria-Fátima, Burke já concelebrou mas, durante a homilia do agora cardeal português, passou o tempo a rezar o terço..Raymond Burke e Walter Brandmüller rematam a carta pedindo "um ato decisivo" na Igreja, que "agora é urgente e necessário". E citam Mateus (28,20): "E sabei que Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos." Não se sabe que gesto decisivo, urgente e necessário é aquele que anseiam. Mas Burke já disse uma vez que Francisco bem podia resignar, numa indisfarçável vontade de afastar um papa deste tempo. Esta Igreja é humana.