O Supremo tabloide

Enquanto se debatem leis contra as <em>fake news</em>, os tribunais portugueses batalham na direção oposta, equivalendo o jornalismo a opinião e considerando que a coberto desta tudo se pode afirmar.
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Há duas semanas, escrevi aqui sobre o repulsivo entendimento de jornalismo plasmado numa decisão do Tribunal Cível de Lisboa, um entendimento segundo o qual, entre outras aleivosias, notícias e títulos de notícias são "opiniões" e como tal "não se prestam a demonstração de veracidade".

Não podia imaginar que três dias depois, a 10 de dezembro, três juízes do Supremo Tribunal de Justiça assinariam um acórdão no qual se estatui algo de semelhante, referindo o direito à expressão de opinião a propósito de uma série de notícias, versando suspeitas sobre o festival de cinema Fantasporto e seus organizadores, publicadas na revista Visão.

A decisão do Supremo dá razão ao recurso do ex-diretor da revista e do autor das notícias, anulando a do Tribunal da Relação, que os obrigava a indemnizar a cooperativa organizadora do Fantasporto e as pessoas de Mário Dorminsky e Beatriz Pacheco Pereira em 150 mil euros. Não se trata aqui de debater a justeza da decisão em relação ao caso concreto, mesmo se, não tendo lido as notícias em causa, o que vejo reproduzido no acórdão não me parece de molde a justificar uma condenação por difamação. O ponto é mesmo a argumentação utilizada.

Da autoria de Ilídio Sacarrão Martins, Nuno Manuel Pinto Oliveira e Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, este acórdão cita aquilo que considera ser o "paradigma jurisprudencial" do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Este, dizem, contraria "o entendimento até há pouco dominante" em Portugal, de que "o direito ao bom nome e reputação se deveria sobrepor ao direito de liberdade de expressão e/ou informação".

De facto, ao rever a jurisprudência do Supremo nestas matérias, damos com decisões que condenam órgãos de comunicação social e jornalistas a indemnização por danos reputacionais argumentando ser "irrelevante que o facto divulgado seja ou não verídico para que se verifique a ilicitude (...), desde que, dada a estrutura e circunstancialismo envolvente, seja susceptível de afetar o crédito ou a reputação do visado".

Foi o caso, em 2007, do acórdão do Supremo que condenou, num processo cível, o Público a pagar 75 mil euros de indemnização ao Sporting por noticiar que o clube tinha dívidas ao fisco. No acórdão lia-se: "Trata-se de um conflito concreto entre o direito à reputação de uma pessoa moral com reconhecimento e utilidade pública e a liberdade de imprensa, que não pode ser resolvido senão em favor do primeiro desse direitos em detrimento do segundo. (...) O caráter ilícito do ato não é afectado pela prova - ou ausência de prova - da verdade."

O TEDH viria, em 2010, a condenar, e bem, o Estado Português por causa desta decisão, no que o acórdão sobre o caso Fantasporto/Visão postula ser o sentido do "paradigma jurisprudencial" de fazer preponderar o direito à liberdade de expressão sobre o direito ao bom nome e honra, sobretudo se "o visado pelas imputações de factos e pelas formulações de juízos de valor desonrosos é uma figura pública e está em causa uma questão de interesse político ou público em geral".

Cabe porém concluir que os tribunais portugueses, no que respeita ao confronto da liberdade de expressão com os direitos de personalidade, não estão vocacionados a manter o equilíbrio. Se há 12 anos era indiferente, para condenar, uma notícia ser ou não verdade, agora parece que o contrário passou a aplicar-se: é indiferente, para absolver, ser ou não mentira. Para tanto, basta que os juízes considerem estar perante "opiniões" e "juízos de valor".

Isso mesmo se constata no acórdão sobre o caso Fantasporto/Visão, no qual se lê: "O direito de expressão consiste no direito de manifestar e divulgar livremente o pensamento, enquanto o direito de informação tem um âmbito normativo mais extenso, englobando opiniões, ideias, pontos de vista ou juízos de valor sobre qualquer assunto ou matéria, quaisquer que sejam as finalidades, não pressupondo um dever de verdade perante os factos."
O direito de informação "não pressupõe um dever de verdade perante os factos"? Sim, é isso mesmo que está escrito. E para escorar este postulado sobre o jornalismo, o acórdão cita outros do mesmo tribunal.

Por exemplo este, de 6 de setembro de 2016: "(...) o dever que incide sobre o jornalista de relatar com verdade e rigor não tem por que se cumprir sempre ou necessariamente mediante uma comprovação absoluta dos factos (o que a mais das vezes seria até impossível de concretizar), senão que a informação há-de possuir uma base factual objetiva razoavelmente credível, não sendo de excluir que o próprio jornalista extraia as suas conclusões ou ilações e as apresente como quase factos."

É evidente que a "comprovação absoluta dos factos" dificilmente se consegue, mas se o jornalista tem o dever, que o tribunal reconhece, de relatar com verdade e rigor, como poderá ao mesmo tempo apresentar conclusões e ilações como "quase factos"? Como pode misturar factos ou a narração da factualidade com a sua opinião sobre eles? Não será tal contraditório, além de deontologicamente proibido?

Acresce que é citado outro acórdão do Supremo, este de 13 de julho de 2017, no qual se estatui que a falsidade ou a inexatidão das "notícias" não implica dever de indemnizar: "Não geram ilicitude, traduzida em violação ilegítima dos direitos de personalidade, geradora de responsabilidade civil, as notícias, enquadradas em crónica social, em que se referem aspectos factuais que se apurou serem inverídicos ou inexactos - e envolvendo nessa medida violação de regras deontológicas do jornalismo - num caso em que pela natureza dos factos em questão, tal divulgação não é objetivamente susceptível de afrontar o direito à honra e consideração pessoal do visado."

Tratava-se aqui do processo que Santana Lopes instaurou a publicações do Grupo Impala por noticiarem aspetos da sua vida privada que reputava de falsos. O Supremo anulou a condenação do grupo editorial a pagar ao ex-primeiro-ministro 395 mil euros de indemnização e chega mesmo a dizer que Santana não se podia queixar: "As peças jornalísticas, situadas no âmbito da chamada imprensa cor de rosa, que referenciam e comentam aspetos da vida pessoal e relacionamentos do visado, situadas fora do perímetro da sua atividade política, não envolvem violação do direito à reserva da vida privada quando - como decorre da matéria de facto - o Autor [Santana Lopes] sempre tornou públicos aspectos da sua vida privada e familiar, participando abertamente em eventos sociais, concedendo entrevistas, participando em iniciativas e autorizando a publicação de imagens em revistas ditas cor de rosa."

Parece pois que para o Supremo o direito básico de personalidade de cada um, a cada momento, decidir o que quer ou não revelar sobre a sua vida privada não se aplica; se um dia "abriu a porta", nunca mais a pode fechar: tem de se conformar. Sobretudo se se tratar de um político - aí, como se conclui do acórdão sobre o caso Fantasporto (Dorminsky fazia parte, à época da publicação das notícias da Visão, da lista de Luís Filipe Menezes na candidatura à Câmara de Gaia), vale praticamente tudo.

"É hoje pacífico", diz o acórdão nas conclusões, "que os jornalistas não têm apenas uma ampla latitude na formulação de juízos de valor sobre os políticos, como também na escolha do código linguístico empregado. Admite-se que possam recorrer a uma linguagem forte, dura, veemente, provocatória, polémica, metafórica, irónica, cáustica, sarcástica, imoderada e desagradável."

E andamos nós a discutir como combater as fake news no Facebook. Afinal, diz-nos o Supremo Tribunal, o jornalismo não é uma profissão com regras, as notícias não têm de ser verdadeiras nem separadas das opiniões. E as opiniões, bem, desde que tenham políticos como objeto é fogo à vontade. Só uma pergunta: como este é um artigo de opinião e sou jornalista, posso dizer que estes acórdãos são criminosos, ou isso já será abusar da liberdade de expressão?

Jornalista

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