Depois de dois anos de luta inglória contra um linfoma e de quatro operações fracassadas, Vamberto de Castro, 64 anos, morador de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, só sobrevivia às dores graças a doses generosas de morfina. Tarefas comuns, como comer ou andar, tornavam-se terríveis obstáculos. Os suores noturnos e outros sintomas da doença atacavam-no sem piedade..Mesmo a esperança criada após o filho Pedro Augusto tomar conhecimento da existência de uma técnica inovadora testada nos Estados Unidos capaz de salvar a vida do pai resultou em desilusão dado o custo proibitivo do tratamento..Uma pesquisa mais minuciosa, porém, levou-os a Ribeirão Preto, no estado de São Paulo, cidade a 513 km de distância de Belo Horizonte, onde uma equipa da Universidade de São Paulo ligada ao Hospital das Clínicas realizava pesquisas sobre essa técnica, chamada CAR T-Cell..Foi aí que o senhor Vamberto (que entretanto morreu devido a um acidente doméstico), funcionário público reformado, encontrou Renato Cunha, diretor técnico do Centro de Transplante de Medula Óssea do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e pôde sujeitar-se ao tratamento. Como a técnica ainda não tinha o protocolo de pesquisa definido, o paciente só conseguiu ser submetido a ela por se tratar da sua última hipótese.."Realizou-se o chamado 'tratamento compassivo' - a palavra vem de compaixão -, ou seja, a última possibilidade de um paciente", contou o médico de 42 anos ao DN..Por outro lado, como o Hospital das Clínicas resolveu desenvolver a própria tecnologia, o preço do tratamento no Brasil é cerca de 10% do valor exigido nos Estados Unidos - onde custa mais de 500 mil dólares (cerca de 450 mil euros).."A maioria dos países que conseguem fazer o tratamento compram o produto de parceiros americanos, porque nos EUA essa tecnologia de tratamento do cancro começou há já cerca de dez anos, mas nós, para que o produto não fosse tão caro, optámos por desenvolver aqui a tecnologia", explicou Renato Cunha, que é investigador associado do Centro de Terapia Celular da Universidade de São Paulo e coordenador do Laboratório de Transplante Experimental e Imunologia do Hemocentro de Ribeirão Preto..Tratamento custa 45 mil euros."Ou seja, um país pobre consegue desenvolver um produto acessível apenas em países ricos - visto também por essa perspetiva, o caso do senhor Vamberto foi um marco muito importante", continuou Renato Cunha, que acredita poder levar o tratamento para o SUS, o Sistema Nacional de Saúde brasileiro, num futuro não muito longínquo..Como reunia as condições clínicas (o hospital já tinha investigado a técnica), burocráticas (por causa da modalidade do tratamento compassivo) e financeiras (uma vez que o valor rondava uns não tão proibitivos 50 mil dólares, 45 mil euros), Vamberto conseguiu iniciar então mais uma aventura rumo à cura do linfoma submetendo-se ao revolucionário tratamento CAR T-Cell.."A CAR T-Cell funciona como um sistema de chave e fechadura. Imagine que os tumores têm fechaduras, para cada fechadura há uma chave. Conhecendo a fechadura dos pacientes com linfomas e leucemias, desenhamos a chave correta e colocamo-la na célula T, que é o linfócito, a célula do nosso sistema de defesa capaz de destruir células do cancro", adiantou o médico, nascido em Uberlândia, no estado de Minas Gerais mas não muito longe de Ribeirão Preto, onde exerce.."Nas pessoas que desenvolvem cancro, essas células T perdem a capacidade de destruir a célula do cancro. O que nós fazemos, portanto, é ajudar essa célula. Tiramo-la do sangue do paciente, levamo-la para o laboratório e, como sabemos qual é a fechadura do cancro, colocamos nela uma chave capaz de reconhecer essa fechadura", afirma Cunha, que, dias depois de receber o DN, foi premiado em São Paulo com o prémio de Homem do Ano atribuído pela revista Isto É.."Essa é a alteração genética que nós fazemos: dotar essa célula de uma chave para aquela fechadura. Quando volta para o sangue do paciente, ela vai achar as fechaduras dos tumores, conectar e matar", conclui o médico..Graças ao tratamento, inédito em toda a América Latina, o senhor Vamberto estava em remissão. "A palavra 'cura' só se usa com o tempo, costuma falar-se no mundo da medicina no número mágico de cinco anos, mas linfomas muito agressivos às vezes voltam em um ano, às vezes voltam em dois, ele já esteve aqui mais duas vezes depois do tratamento para avaliação e está a evoluir muito bem, estamos muito felizes"..Entrou em remissão ao fim de 30 dias."É difícil apontar um número exato, mas ele, por sofrer uma doença claramente avançada, progressiva e debilitante a ponto de começar a não tolerar mais a dor, teria talvez uns seis meses de vida. A partir do momento em que recebeu o CAR T, o processo foi revertido e em 30 dias não havia mais sinais de doença, foi um sucesso, de facto, enorme.".No caso do senhor Vamberto, o tratamento foi a última possibilidade - no futuro, a técnica CAR T-Cell pode ser usada como primeira opção? "Não sabemos se o tratamento vai ser utilizado como primeira opção terapêutica. Como ele é novo, até nos EUA, vem sendo usado como terceira ou quarta, por enquanto. Porém, como os resultados são bons e começamos a ter uma base de dados de segurança importante, podemos acreditar que possa ser um dia segunda opção, quem sabe, a primeira"..Cada um desses "dados de segurança" equivale a uma comovente história de remissão e cura. "Nos EUA já foram tratados cerca de 1300 pacientes, nalguns casos, como o de uma criança de 5 anos que não tinha solução, ela tornou-se hoje uma adolescente curada.".É cedo, porém, para se afirmar que a CAR T-Cell pode ser uma esperança para uma das notícias mais aguardadas da humanidade - a cura do cancro. "Cada tipo de cancro tem a sua especificidade, os do pulmão, do intestino, da pele, do cérebro, são todos diferentes, e a CAR T-Cell não se adapta a todos", advertiu Cunha.."Nós sabemos quais as chaves, os tratamentos, para estas fechaduras, para este tipo de tumores, mas não para outros. Não só nós, aqui em Ribeirão Preto ou no Brasil em geral, mas o mundo todo ainda não sabe. No entanto, se um dia soubermos quais as chaves para os outros tumores, poderemos fazer, teoricamente, o mesmo procedimento. Falta pesquisa, muita pesquisa, para encontrar essas fechaduras"..Mas o prognóstico é mais animador para a maioria dos cancros relacionados com o sangue, como leucemias e linfomas: "Como para mais de 90% dos casos de leucemias e linfomas temos essa chave, nesse caso, podemos dizer que, sim, a cura para a leucemia está, digamos assim, bem encaminhada.".Regressou às rotinas e morreu em acidente doméstico.De volta para casa, em Belo Horizonte, o senhor Vamberto retomou aos poucos a rotina que tinha antes de ser atacado pela doença, dormindo, caminhando e comendo com muito mais conforto. Religioso, atribuiu o sucesso extraordinário do seu tratamento não apenas à medicina mas também a Deus, em entrevista à edição da capital de Minas Gerais do jornal Metro. "O aspeto religioso é muito importante, a fé das pessoas, a fé do próprio doente. Então, a minha sensação é que houve um misto de ciência e uma crença religiosa muito marcante nesse tratamento.".Semanas depois desta entrevista, entretanto, a família do paciente e a equipa do Hospital das Clínicas receberam em choque a notícia da morte do senhor Vamberto num acidente doméstico..Em nota, o hospital falou de consternação. "A direção do Centro de Terapia Celular, consternada, lamenta o acidente que levou à morte do senhor Vamberto Luiz de Castro, que passou por tratamento de linfoma não Hodgkin, recentemente, no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, de onde saiu com a doença em remissão.."O centro continua com a pesquisa, cujos resultados iniciais encheram de esperança milhares de pessoas em todo o país. Temos a certeza de que novos e ótimos resultados vão continuar surgindo para que outros pacientes possam beneficiar-se de um tratamento novo e revolucionário."