Estefânia tratou 110 casos graves. "Na criança sistema imunitário reage mais"
No início da epidemia, disse-se que as crianças tinham menor tendência quer para transmitir o vírus quer para se infetarem. Agora, com base num estudo elaborado por investigadores dos hospitais central e pediátrico do estado americano do Massachusetts e divulgado nesta quinta-feira, adverte-se que têm mais carga viral e, portanto, mais capacidade infecciosa, mesmo se - ou porque - de um modo geral são portadoras assintomáticas.
"As crianças são o principal vetor de contágio na gripe", lembra ao DN o pneumologista Filipe Froes. "Estes dados alertam para que pode suceder que também na covid isso se dê. Com o confinamento, porém, não foi possível validar essa hipótese."
Sendo o estudo de Massachusetts baseado na análise de apenas 49 crianças infetadas e estando por esse motivo a ser encarado com reserva, um outro estudo publicado também nesta semana na revista científica Lancet frisa, precisamente, ser ainda cedo para tirar conclusões sobre o comportamento do vírus nas crianças e nos adolescentes. Referindo que as percentagens de testes positivos em crianças variam geralmente, de acordo com os dados da Ásia, da Europa e da América do Norte, entre 2,1% e 7,8% do total (indicando os últimos números dos EUA, que se reportam a 13 de agosto, que os infetados crianças e adolescentes diagnosticados são já 9,1%, correspondendo a 538 casos por cem mil crianças), considera que está ainda por provar ou contrariar qualquer teoria sobre a "taxa de ataque" do vírus nesta faixa etária.
"Por causa das infeções assintomáticas", lê-se no sumário deste estudo, "e do subdiagnóstico nos casos sem gravidade, que tipicamente ocorrem em pessoas mais novas, e da disponibilidade, validade e critérios de testagem, ainda existe incerteza sobre qual a verdadeira incidência da doença em crianças e adolescentes. Embora as manifestações da doença sejam geralmente muito mais suaves em crianças do que em adultos, uma pequena proporção de crianças requer hospitalização e cuidados intensivos."
Maria João Brito, diretora do serviço de infecciologia do hospital lisboeta de D. Estefânia, unidade de referência nacional para a covid pediátrica por onde passaram quase 300 casos, inclui-se nos médicos com reservas em relação à interpretação avançada pelo estudo do hospital de Massachusetts - de que a faixa etária mais jovem tem mais alta carga viral. "As crianças contactam com o vírus de forma semelhante à dos adultos. A grande diferença é que na criança o sistema imunitário reage mais."
Em alguns casos, a reação do sistema imunológico é tão extrema que causa uma síndrome conhecida por MIS ou PMIS (paediatric multisystem inflammatory syndrome - doença inflamatória sistémica). Trata-se, explica a médica, "de uma complicação grave da covid que sucede só a crianças e jovens. Tanto acontece a um adolescente de 13 anos como a uma criança de quatro. O que acontece nestes doentes é que a sua imunidade é tão alta que o seu sistema imunitário acaba por atacar vários órgãos". Entre os mais atingidos está o aparelho gastrointestinal e o coração, através do miocárdio, existindo também a possibilidade de pneumonia grave. "É uma desregulação imunológica, e trata-se com imunomoduladores. Damos corticoides também. O importante é perceber-se que há tratamento e os médicos sabem como se trata. É uma situação muito rara, mas qualquer criança que tenha o MIS fica rapidamente muito doente. Tivemos aqui cinco com MIS e não nos morreu nenhuma."
Os sintomas, segundo a literatura, incluem dor abdominal, vómitos e diarreia, manchas vermelhas na pele, lábios gretados, olhos vermelhos, febre alta, inchaço nos gânglios do pescoço e também nas mãos ou nos pés.
Já nas crianças abaixo de um ano, prossegue Maria João Brito, "o quadro clínico das complicações da covid é um pouco diferente: pode ocorrer uma sépsis viral, e também podem ter pneumonia. Tivemos casos graves em crianças dessas idades, mas muito menos do que nos adultos. Os nossos casos são semelhantes ao que tem sido descrito na literatura médica desde o início da pandemia".
Os dois primeiros casos de covid pediátrica surgiram na Estefânia a 9 de março (dez dias antes da declaração do estado de emergência), e até agora só foi considerado necessário internar 110, ficando os outros a ser seguidos em casa. O caso mais novo tinha 11 dias (e sobreviveu), o mais velho, 18. Nem todas as crianças e adolescentes com covid e sintomas graves tinham porém fatores de risco - entre os quais a especialista aponta a obesidade. Algumas, garante a clínica, eram saudáveis. "O risco não é zero, mesmo para as crianças saudáveis. O que temos de dizer aos pais é a verdade: a probabilidade de haver complicações é muito menor do que na idade adulta. Outra coisa: os pediatras conhecem as complicações e sabem lidar com elas."
Importante é também frisar que "as pessoas que estão doentes não devem pôr as crianças no infantário, mesmo que estas estejam assintomáticas". Mas Maria João Brito quer deixar claro que defende que "as crianças vão para a escola, porque estão numa altura muito importante do seu desenvolvimento. Têm é de se cumprir as regras. E o certo, conclui, é que "abrimos infantários e não tivemos aumento da covid na idade pediátrica".