As manifestações que eclodiram nos Estados Unidos por causa do assassínio de George Floyd e que rapidamente se espalharam um pouco por todo o planeta voltaram a trazer à tona a maka do racismo, não só naquele país, mas, literalmente, em todo o mundo. O presente texto é uma modesta contribuição ao atual debate sobre o assunto..Os que têm dificuldade ou simplesmente não querem, por qualquer motivo, discutir o racismo costumam alegar que "raça" não é um conceito científico. Falso. "Raça" não é, sem dúvida, um conceito biológico, mas é sociológico. Ou seja, é tão científico como qualquer outro conceito proveniente ou formulado por qualquer disciplina ou campo do saber. É isso que explica, como bem observou Isabel do Carmo, em artigo publicado recentemente no jornal Público, por que razão "não há raças, mas o racismo existe"..No momento (na realidade, um momento que persiste desde há milénios), o foco do debate está centrado no racismo antinegro. Porém, como tentarei demonstrar nas linhas seguintes, há outras direções do racismo, tão condenáveis quanto essa..O racismo antinegro costuma ser associado frequentemente ao tráfico de escravos africanos e ao colonialismo europeu. Fê-lo, há dias, a alta-comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, quando falava num debate sobre a violência racial suscitado pelos países africanos. Também o fez o historiador franco-senegalês Tidiane N'Diaye, que, em entrevista ao DN, lembrou que foram os árabes muçulmanos que começaram o tráfico de escravos em grande escala no continente africano. O mesmo durou quase mil anos..A história parece demonstrar, entretanto, que escravatura e racismo nem sempre estiveram associados. De facto, Roma foi a civilização que mais praticou a escravatura, não existindo dados que apontem para qualquer motivação racial. De igual modo, o comércio de escravos africanos, quer o praticado pelos árabes quer o praticado pelos europeus, pelo menos nos séculos iniciais, não precisava de qualquer "justificação" racista, entendida como um discurso ideológico. Era simplesmente um negócio, o que, seja como for, não lhe retira nem a sua natureza profundamente perversa nem os seus efeitos históricos futuros..Um facto que, quanto a mim, demonstra que escravatura e racismo nem sempre estiveram ligados, de um modo geral, foi a há muito comprovada e estudada participação de africanos nesse comércio. Alguns dos escravocratas africanos (negros) são ainda hoje glorificados, como a angolana D. Ana Joaquina..O racismo "científico" é uma invenção do século XVIII. Os intelectuais europeus (brancos) não podem livrar-se dessa responsabilidade histórica: foram eles os seus criadores. Como escrevi atrás, citando Michelle Bachelet, o colonialismo europeu contribuiu para reforçá-lo. Por tudo isso - confesso - incomoda-me o complexo de superioridade moral ainda hoje mantido por muitos intelectuais europeus (ou eurocêntricos), pese embora o volume de conhecimento histórico disponível..Diga-se, então: embora sem serem cronologicamente coincidentes, os três fatores que tornaram o racismo antinegro o principal problema racial da humanidade foram a escravatura, o colonialismo e o racismo "científico". Demonstrando a força das ideologias, esta última explica por que motivo a abolição da escravatura não implicou o fim da discriminação dos negros. O racismo antinegro sequer é racional do ponto de vista capitalista, como se pode exemplificar com o caso do Brasil, onde os negros são maioria, mas, apesar disso, são marginalizados do mercado, devido ao racismo sistémico existente no referido país..A verdade é que, presentemente, os negros são as principais vítimas do racismo em todo o mundo. São-no nas Américas, para onde foram levados como escravos e cujas elites dominantes, de norte a sul, são descendentes de europeus. São-no na Ásia, em países como a China, a Índia e outros, de onde chegam com frequência notícias de manifestações racistas de que os negros são vítimas. São-no na Europa, onde existem importantes diásporas negro-africanas. São-no, por vezes, nos seus próprios países de origem ou mesmo de nacionalidade, onde a incompetência dos governos e a ganância das elites impede a superação dos problemas estruturais herdados da colonização e, por conseguinte, a resolução das carências da esmagadora maioria das populações, podendo, por isso, gerar tensões raciais perfeitamente evitáveis..Tudo o que foi dito não deve impossibilitar-nos, contudo, de reconhecer a existência de outros racismos pelo mundo fora. A atual pandemia da covid-19, por exemplo, tem dado azo a casos de racismo antichinês em vários países. Na Europa, a minoria cigana é alvo de racismo explícito em numerosos países, ao mesmo tempo que os europeus do norte tendem a menorizar os do sul. Na China, minorias étnicas, como os uigures e outras, são perseguidas. Em Myanmar, os rohingyas, uma minoria muçulmana, são vítimas de uma tentativa de genocídio..O continente africano não escapa destas vicissitudes. Na África do norte, as minorias negras são discriminadas pelos árabes ou pelos tuaregues. Na África Subsariana, as minorias brancas e mestiças tendem a ser hostilizadas (em parte, como disse atrás, devido à incapacidade das atuais elites, esmagadoramente negras, de resolverem os problemas da maioria e de superarem as diferenciações criadas pelo colonialismo). Em vários países africanos, os albinos são discriminados. Há conflitos entre nilóticos e bantus, como no Ruanda ou no Burundi..O racismo é, pois, um problema universal. Por isso, e como disse um manifestante negro em Londres, "a luta não é de negros versus brancos, é de todos contra os racistas". Eu seria ainda um pouco mais preciso: é de todos os antirracistas contra todos os racistas..Jornalista e escritor angolano. Diretor da revista África 21.