Desde 2003, quando começaram as estatísticas oficiais, mil mulheres foram mortas pelos companheiros ou ex-companheiros em Espanha. O El País chama-lhe a "conta pendente" da violência machista, ou não fosse este um balanço difícil de encerrar e um problema social por resolver. Em Portugal, e desde 2004, quando começaram as estatísticas não oficiais - a contagem das vítimas é feita pela UMAR e a partir das notícias -, já morreram 503* mulheres vítimas de violência doméstica. Se compararmos a população dos dois países (dez milhões de portugueses e mais de 46 milhões de espanhóis), percebe-se que Portugal registou o dobro de mulheres mortas em contexto de violência de género..Elisabete Brasil, a trabalhar com vítimas de violência doméstica desde 1997 na UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta, aponta aquilo que está a ser bem feito no país vizinho e assume que a estatística negra portuguesa é a consequência de Portugal estar a partir com mais de uma década de atraso na adoção de medidas que há muito estão a ser implementadas em Espanha..Como é que explica estes números: o dobro de mulheres que morreram vítimas de violência de género em Portugal comparando com os números oficiais espanhóis?.Desde que Espanha aprovou a lei da violência de género [em 2004] e adotou políticas públicas que protegem as vítimas deste género de violência que realmente se nota uma alteração na incidência da violência de género [naquele país]. Em Portugal, os nossos estudos indicam que temos uma constância - os números têm-se mantido iguais..[Em 2003 foi criada, em Espanha, uma estatística oficial que concentra num único lugar a recolha e o tratamento de dados relacionados com este tipo de violência. Um ano depois, o país aprovou a lei contra a violência de género, que distingue a violência exercida sobre as mulheres de outros tipos de violência exercida no âmbito doméstico. Na mesma altura, foram criados tribunais específicos para julgar a violência sobre a mulher.].O que Portugal tem estado a fazer nesta área ainda não alcançou resultados que se reflitam nos números?.Nos últimos anos - e neste ano em particular - tem existido um maior cuidado com estas questões [da violência de género]. Porquê? No ano passado o nosso relatório [do Observatório de Mulheres Assassinadas em 2018] teve mais impacto, mas também porque o grupo de peritos que acompanha a implementação da Convenção de Istambul obriga o Estado português a cumprir uma série de medidas e porque houve toda esta mortandade logo desde o início do ano. É verdade que avançámos, mas é preciso fazer mais. Está prestes a sair o relatório da comissão coordenada pelo procurador Rui do Carmo e que nos vai dizer o que é preciso fazer..O que é que Portugal pode aprender com o exemplo de Espanha?.Ter uma legislação especifica para a violência de género, tribunais com competências especializadas e juízes formados nesta área. A violência doméstica - que em Portugal sabemos que é uma violência de género, exercida sobre mulheres e na sua intimidade - é a segunda criminalidade mais representada no país (a primeira são as ofensas à integridade física, e muitas destas queixas estão relacionadas com violência doméstica, mas por ter sido uma situação menos grave, por exemplo, não foram englobadas no crime de violência doméstica). Precisamos de uma legislação mais concreta para este tipo de vitimação..O dobro das vítimas mortais. É uma estatística que envergonha Portugal?.Não resolvemos as coisas com vergonha, mas com ação. As políticas públicas [portuguesas] ainda não estão ajustadas. Não se pode tratar tudo por igual. É preciso criar o crime de violência de género e, tal como em Espanha, é preciso criar tribunais especializados. Acima de tudo temos de aplicar a lei que já existe - como a de ser decretada uma medida de coação [ao agressor] em 48 horas, o que não acontece. Precisamos de práticas judiciais e sociais que vão no sentido do apoio concreto às vítimas e de repressão dos opressores. O que percebemos é que a violência doméstica compensa. Aqui em Portugal a vítima apresenta queixa e fica muitas vezes numa situação de ainda maior vulnerabilidade e perigo. A lei prevê ainda o julgamento em processo sumário [mais rápido] e também não é utilizado ou muito raramente. Temos mecanismos legais que não estão a ser utilizados..Estão na lei, mas não são acionados. É uma questão de mentalidade?.Sim, é mesmo uma questão de mentalidade, de não agilização de práticas, certamente também poderá existir fragilidade de recursos humanos, mas este ano tem havido um grande debate sobre o assunto e foram inaugurados os gabinetes de apoio à vítima nos DIAP que estavam previstos desde 2009. Aquilo que estamos agora a começar a implementar já está na lei há dez anos. Nós não podemos é ter uma lei que demora dez anos a ser implementada..Era importante ter, como em Espanha, julgados especializados em violência de género?.Sim. Precisamos da especialização em violência de género em Portugal por parte das magistraturas. É pouco aquilo que temos, as questões da violência de género não estão a ser estudadas nas faculdades e as pessoas que vão para magistrados são alunos de Direito e o CEJ [Centro de Estudos Judiciários] tem sessões de informação e sensibilização para este problema mas no âmbito da formação contínua - não é obrigatório. A formação em violência de género para magistrados e advogados devia ser obrigatória. Precisamos de pessoas que estejam a apoiar as vítimas de forma transversal mas sabendo o que estão a fazer..[Em setembro de 2017, todos os grupos parlamentares espanhóis (à exceção do Podemos, que considerou o texto insuficiente) aprovaram o Pacto de Estado contra a Violência de Género, no qual se inclui a violência doméstica. Uma das medidas concretas incluídas nesse pacto é a criação do primeiro curso obrigatório sobre género para juízes, uma das reformas na lei orgânica do poder judicial espanhol, que faz que seja necessário que os magistrados frequentem o curso para acederem a qualquer especialidade da carreira judicial.].* Dados até 2018