"Portugueses são dos mais desdentados da Europa e isso afeta o bem-estar"
Foi o primeiro aluno português a ser distinguido pela Universidade de Nova Iorque, em 1995. João Caramês trouxe dos Estados Unidos para Portugal o conhecimento e as novas tecnologias na área da medicina dentária, então como aluno e depois como professor. Em Lisboa, recebe alunos nacionais e estrangeiros na sua clínica, vai à televisão falar de saúde oral, dos cuidados que os portugueses ainda não têm e do desconhecimento de como uma "boca nova" pode mudar tanto o resto do corpo.
Nasceu em Lisboa numa família sem tradição de médicos. É o mais novo de quatro irmãos. Estudou no Colégio Militar e lá diz ter aprendido a querer ir mais além, a ultrapassar desafios e dificuldades. Sempre foi um entusiasta por trabalhos manuais e chegava a construir os seus brinquedos. Frequentou um dos primeiros cursos da antiga Escola de Medicina Dentária, com apenas 16 alunos, numa altura que a área ainda dava os primeiros passos em Portugal. Foi amor à primeira à vista.
Ainda como recém-licenciado abriu um consultório com apenas dois gabinetes na Estefânia, em Lisboa. Mas a sua vontade de crescer era enorme e a ambição levou-o a aterrar nos EUA, no início dos anos 1990, para frequentar uma pós-graduação. Nos primeiros meses em Nova Iorque ficou a dormir num quarto alugado, na casa de uma família em Nova Jérsia. Precisava de apanhar três transportes para chegar à universidade, em Manhattan, onde as aulas começavam às oito da manhã e só ia embora já de noite. Aproveitava todos os momentos para estudar e aprender. Quando voltou para Lisboa, deu o salto que tanto sonhava, com muito esforço, pessoal e financeiramente. Nessa altura, grande parte dos seus pacientes foram atrás, para a "nova casa" na Avenida Columbano Bordalo Pinheiro, a espreitar a Praça de Espanha. É lá que nos encontramos, no quinto andar, o mesmo onde quase tudo começou. Agora, 23 anos depois, o instituto cresceu para os sete andares do edifício envidraçado, as paredes já não têm espaço para tantos diplomas e prémios, e emprega cerca de 180 pessoas. Podíamos reparar primeiro no seu sorriso, mas são também os olhos azuis que espalham empatia. Mostra-se cansado, mas disponível, a umas horas de ir férias. E garante que não vai estar quieto.
É inevitável não olhar para o seu sorriso. Também é a primeira coisa que nota numa pessoa?
A verdade é que olho primeiro para os olhos, é como gosto de conhecer a pessoa. Mas sabemos que um sorriso é, de certa forma, o aspeto mais importante numa primeira impressão. Um sorriso bonito é um cartão-de-visita. Aliás, a imagem e o bem-estar são das coisas mais fundamentais na vida. Não imagina a felicidade das pessoas quando saem daqui com uma intervenção feita.
Como chegou a decisão de seguir Medicina Dentária e de que forma trilhou o seu percurso académico?
Desde muito cedo desenvolvi o gosto pelas ciências médicas, em particular pela área cirúrgica. Ao aprender a reconstruir e a melhorar o sorriso dos pacientes percebi o enorme impacto da saúde oral noutros sistemas do nosso corpo. Hoje não me arrependo de ter tomado esta opção de vida. No início dos anos 1990, a formação pós-graduada nas áreas em que me decidi diferenciar, implantologia e prostodontia, escasseava em Portugal. A ida para os Estados Unidos foi uma das decisões mais importantes no meu percurso e não apenas pela experiência clínica e o conhecimento científico, mas também pela vivência empreendedora transmitida pela sociedade americana.
Nova Iorque é a "cidade que não dorme". Conseguiu não se deslumbrar e não perder o foco?
A verdade é que quando fui de Lisboa para Nova Iorque, em 1994, a diferença entre as duas cidades era muito grande. É evidente que aterrava numa cidade que era todo um mundo. Nessa altura havia poucas pessoas a viajar para lá, era muito caro. Havia também muito pouca gente a falar português, numa cidade que funcionava 24 sobre 24 horas. Era uma cidade dura, mas ao mesmo tempo deslumbrante. Aprendi a gostar de Nova Iorque. Ao fim de um tempo, depois de nos habituarmos, nunca mais a esquecemos. E por isso faz parte de uma das minhas paixões, tal como Lisboa. Não tenho dúvida nenhuma de que toda aquela vivência me permitiu aprender muito, mas aquela cidade é também uma lição do mundo. É um abrir horizontes, é pensar grande e isso para mim, como jovem médico a estudar, foi a abertura de uma janela, ou diria até de um portão para o mundo. Foi extremamente importante.
Como recorda a experiência?
Quando cheguei a Nova Iorque, a minha dedicação foi absoluta. Estava lá sozinho e tinha a minha família em Portugal, já com miúdos pequenos. De início não foi fácil, porque os americanos até darem importância a alguém levam algum tempo... Mais tarde, aos poucos, comecei a conseguir ter a consideração dos professores e de outros alunos. Posso dizer que criei muitos amigos e, além de ter aprendido muito, penso que prestigiei o nome de Portugal. A prova disso foi que, por um lado, quando terminei o meu programa tive vários convites, um deles para professor convidado do centro de educação contínua da Universidade de Nova Iorque, ao qual aderi e ainda hoje o sou. Mas também tive a honra de ser homenageado, ganhando o prémio Alumni. Fui o segundo a recebê-lo e o primeiro não -americano. Foi de facto um orgulho muito grande e um ponto alto na minha vida, como o coroar de todo um esforço.
Depois de terminar os estudos em Nova Iorque, trouxe para Portugal o conhecimento e as novas tecnologias da medicina dentária?
Os anos lá vividos foram um grande investimento profissional e pessoal. Se o empenho e o trabalho desenvolvido durante este período significaram distinção, acima de tudo permitiram colher a amizade e o reconhecimento académico que perduram até aos dias de hoje. Após este enriquecimento curricular, a minha maior motivação passou a ser a de trazer know-how para os pacientes em Portugal. Tive o privilégio de assumir, anos mais tarde, a posição de coordenador internacional do departamento de educação contínua na Universidade de Nova Iorque. Temos organizado cursos e programas de educação em todo o mundo. Em Portugal, em parceria com o Carames Advanced Education Centre, passámos a promover a realização de um congresso internacional na área da implantologia e da reabilitação oral. Se por um lado assumi a postura de pioneiro, como a sua pergunta sugere, reconheço também um papel semelhante a outros colegas do país.
Também passou pela Suécia para fazer o seu doutoramento. Mudou muito a sua vida?
O doutoramento foi feito uma parte em Lisboa, outra em Nova Iorque, porque o trabalho de implantologia começou lá, mas também em Gotemburgo. Apesar de ter sido dos primeiros médicos da minha faculdade a doutorar-me, naquela altura não era fácil. Havia poucos apoios. O trabalho de investigação e experimental fi-lo em Gotemburgo, a terra do "pai da implantologia", o Dr. Per-Ingvar Brånemark [1929-2014], e foi claramente um marco na minha profissão. Ainda acreditei que a minha vida iria acalmar, mas claramente não aconteceu. Apareceram mais responsabilidades, mais desafios, e depois os concursos da carreira académica: primeiro como professor auxiliar, depois como professor associado e, finalmente, com a agregação, professor catedrático.
Como é que se dá aulas, recebe alunos do estrangeiro, faz cirurgias, gere uma clínica, dá conferências... e ainda é pai de três filhos? O seu dia tem quantas horas?
Infelizmente, o dia só tem 24 horas [risos]. Tudo o que descreve é apenas possível com um grande espírito de trabalho e, por vezes, sacrifício pessoal. Divido a minha vida entre a Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa, assim como diretor do departamento de cirurgia oral e implantologia e o Instituto de Implantologia que fundei há 23 anos e que dirijo. Não posso deixar de prestar um enorme agradecimento às equipas de trabalho que me rodeiam, assim como à minha família que sempre me apoiou incondicionalmente. A minha mulher ajudou-me sempre muito, foi um grande apoio, e, de certa forma, permitiu-me por vezes estar sossegado. O tempo passa demasiado depressa e a verdade é que não estive sempre com eles, em todos os momentos importantes, mas eles sabem que tiveram um pai presente, ainda que muitas vezes ausente.
Esta sua entrega também passou para os filhos?
O mais velho seguiu os passos do pai, na medicina dentária, também estudando nos EUA e agora trabalha aqui no instituto. O do meio escolheu a engenharia, mas está dedicado à investigação e ao fabrico de biotecnologias que permitem a regeneração óssea, o que é também uma mais-valia. O mais pequeno é um excelente aluno e deverá optar pela área da economia. E muito bem, porque o mundo precisa de bons economistas [risos]. Também tenho um sobrinho a trabalhar comigo e no fundo olho para tudo com muita alegria. Não só por ter desenvolvido esta "obra", mas por estar descansado porque que há seguidores.
Taiwan, Índia, China, Coreia do Sul, EUA, Rússia, Japão, entre muitos outros destinos ao longo da carreira. Já correu mundo para dar formações e palestras. O que é que leva e traz dessas viagens?
É muito enriquecedor o contacto com países e culturas tão diferentes da nossa. Admiro a espontaneidade do povo asiático. Cultivam facilmente o gosto pelo detalhe. São curiosos e minuciosos. Pude estar na Ásia várias vezes no último ano e as visitas surpreenderam-me positivamente. Esperava uma audiência mais fechada em si mesma, mas não. Mesmo sem falarem um inglês fluente, com uma pronúncia nem sempre percetível, não receiam colocar questões. Ao contrário de nós, que facilmente nos inibimos se não sentimos o domínio perfeito da linguagem. Viajar é ver e aprender. Nestas viagens para além do que ensino também aprendo bastante.
Nesta fase da carreira, ainda tem desafios?
Quando era criança, diziam que eu era hiperativo. Agora já não sou tanto [risos]. No entanto, o que me move são os desafios. Como é óbvio há tantos ainda pela frente e portanto não estou parado. Consigo conciliar muitos ao mesmo tempo, desde docente na Universidade de Lisboa à atividade profissional no Instituto de Implantologia. Já é uma grande casa, com mais de 180 pessoas a trabalharem aqui, em todas as especialidades da medicina dentária, com um laboratório, um centro de educação que recebe pessoas de todo o mundo para aprenderem connosco. Enfim, é um grande desafio. Acabo também por estar ligado à Ordem dos Médicos Dentistas, o que muito me orgulha, já que sou presidente da assembleia geral. Uma pessoa nunca se cansa e se me pergunta se "ainda tem desafios", é evidente. Até porque, neste momento da minha vida, tenho dedicado muito à investigação e estou ligado a um centro de desenvolvimento de materiais regenerativos. Acredito vivamente que o futuro é recriar e regenerar anatomia perdida. Esse é o meu azimute, dedicar-me a esta área que também me ocupa algum tempo... Como é óbvio sempre estive dedicado à educação, no ensino pré e pós-graduado. Para mim é importante, já que outrora eu tive de aprender. Hoje podemos partilhar esse ensinamento com os alunos para que não precisem de atravessar o Atlântico. Poder contribuir para que alunos portugueses, e também internacionais, possam fazer um exercício responsável da profissão, para mim é muito gratificante.
Atualmente, como é que avalia o estado da medicina dentária em Portugal?
Quando há 26 anos senti a necessidade de emigrar, a realidade era bem diferente dos dias de hoje. Durante estes anos desenvolveu-se uma importante e experiente "massa crítica" de clínicos que contribuíram para elevar a qualidade da medicina dentária. Exemplo disso é o alargamento de novos colégios de especialidade. No panorama internacional, a área em Portugal é hoje reconhecida pela presença sistemática de colegas, opinion leaders, em congressos ou sociedades científicas. Apesar de os recursos humanos estarem ao nível do que de melhor se faz noutros países da Europa, não nos podemos esquecer de que uma parte significativa da população continua sem acesso aos cuidados primários e secundários de saúde oral. A estimativa da Ordem dos Médicos diz-nos que a percentagem de pacientes desdentados, ou seja, com pelo menos um dente ausente, continua alta e próxima dos 70%. Este e outro indicador colocam-nos ainda mais abaixo da média europeia. Mas o elevado crescimento do número de médicos dentistas em Portugal tem permitido o aparecimento de práticas nem sempre saudáveis, com publicidade enganosa, e à intervenção de grupos empresariais em que a inversão dos princípios do bem-estar em prol do lucro parece estar presente.
E os portugueses conhecem a importância da higiene oral?
Cada vez mais, nomeadamente as gerações mais jovens parecem ter ciente a importância da higiene oral e da necessidade de recorrer a cuidados preventivos. Para revertermos os indicadores atuais, precisamos de que a população tenha maior acesso aos cuidados de saúde oral e vá assumindo uma consciência preventiva. Não apenas perante hábitos de higiene oral, mas também alimentares, diminuindo, por exemplo, o consumo de alimentos ricos em açúcar.
Cuidar dos dentes e da boca tem assim tantos efeitos na saúde do resto do corpo?
Explicando de uma forma resumida, pode dizer-se que a produção de certos mediadores inflamatórios em situações crónicas não tratadas de doença periodontal torna mais difícil o controlo da diabetes e o agravamento de eventos geradores de ateroesclerose. Por um lado, é importante referir que a perda dentária conduz os pacientes a uma diminuição da função mastigatória e a um ajuste na sua dieta. Em alguns casos, resulta em malnutrição, problemas do sistema digestivo, ou até a um pior controlo glicémico em pacientes diabéticos.
Quais são os problemas de saúde relacionados com a boca que merecem mais atenção?
Habitualmente, reconhecemos a cárie dentária e a doença periodontal como as doenças da cavidade oral que mais afetam os portugueses. Se a lesão de cárie é motivo de preocupação e alerta para a generalidade dos pacientes que nos procuram, apercebemo-nos de que a doença periodontal é ainda desconhecida para uma parte importante da população. Esta tem origem bacteriana e caracteriza-se por uma resposta inflamatória ao redor dos tecidos que suportam o dente. Infelizmente, o paciente apenas se apercebe das suas sequelas na fase mais avançada da doença. E faço também referência ao cancro oral que se manifesta sobretudo em grupos de riscos, com hábitos tabágicos e de alcoolismo.
Podemos dizer que o seu trabalho é dar novos sorrisos às pessoas?
A implantologia presta um serviço muito importante. Quando uma pessoa perde os seus dentes isso afeta a qualidade de vida e a autoestima. Altera a forma como comunica com quem a rodeia, as pessoas tendem a isolar-se e há um envelhecimento precoce. Mas há também uma falta de bem-estar, a mastigação torna-se deficiente e com isso há alterações da dieta que resultam em malnutrição. Nós, portugueses, ainda estamos muito abaixo dos indicadores europeus, e todas estas razões fazem que a falta de dentes tenha uma implicação muito grande no bem-estar das populações. Penso que há um combate grande, através da prevenção, mas também com campanhas para a substituição de dentes, e dar a oportunidade de voltarem a ter dentes é um grande desafio. Mudamos as vidas das pessoas. Tenho tido muitos pacientes. Aliás, a maior parte dos meus colegas manda-me casos difíceis. Ou uma pessoa que já não tem estrutura óssea ou casos que correram mal. Enfim, hoje estou mais dedicado aos desafios complexos. Mas é para mim uma alegria muito grande conseguir resolver esses problemas. Por exemplo, pessoas que não têm dentes há 40 anos, e que sofrem há 40 anos, de repente terem um sorriso bonito, autoestima, poderem mastigar e sentirem-se bem consigo próprias. Melhora muito as suas vidas. É aquilo que me faz feliz e satisfeito com todo o esforço profissional realizado ao longo de uma vida. Espero ter saúde para poder continuar a fazê-lo. E quando não puder, tenho a certeza de que ensinei muita gente.