A Berlinale começa com Salinger mas há também a estreia de Catarina Vasconcelos

Começa amanhã a 70.ª edição do Festival de Cinema de Berlim. Com nova direção e uma seleção com diversas incógnitas, o festival cria uma nova secção, o Encounters, na qual há cinema português, <em>A Metamorfose dos Pássaros</em>, com a estreante Catarina Vasconcelos.
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Está estranha esta seleção do mais popular dos festivais de cinema da Europa, o de Berlim. Por um lado, filmes com apelo comercial e com estrelas, por outro, a habitual volta aos temas políticos e sociais que fazem parte da Berlinale. Mas só quando a seleção oficial começar é que se percebe se a nova direção de Carlo Chatrian, um italiano que veio do Festival de Locarno, é capaz de um verdadeiro restart de um festival que perdeu créditos nos últimos anos.

Um festival que se aburguesou e que viveu dos restos de Sundance e Cannes. Agora, tudo pode mudar mas há que dar um salto de fé e acreditar em descobertas, mesmo quando a competição tem nomes como Abel Ferrara, Sally Potter ou Kelly Reichardt.

Nas ruas de Berlim, um dia antes das hostilidades começarem, há também fatores estranhos: este ano não há frio. Berlinale sem gelo e neve não parece a mesma coisa. E há também menos asiáticos. A praga do Coronavírus parece que fez com que tenham surgido muitas desistências, sobretudo a nível de participantes nos European Film Market, o mercado que dá sempre um alvoroço significativo ao festival. A própria direção do festival já informou num comunicado que tem planos de vigilância quanto ao vírus e que os convidados asiáticos serão acompanhados à chegada do aeroporto.

Curiosamente, em vésperas do festival, a associação cultural de portugueses de Berlim, a Berlinda, também celebra o cinema e tem uma noite dedicada à paixão cinéfila. Centenas de jovens portugueses vão estar esta noite a antecipar o festival numa conversa aberta sobre os filmes da Berlinale no 7 Mares, restaurante português icónico da capital alemã. Tudo isto num ano em que o cinema português tem apenas uma obra, a estreia nas longas de Catarina Vasconcelos, A Metamorfose dos Pássaros, mistura de docudrama com cinema experimental pronta a deslumbrar na nova secção criada neste ano, Encounters, uma seleção competitiva com um cinema mais de risco e de "nota artística".

A Metamorfose dos Pássaros é daqueles filmes que se sai sem se perceber por que razão ficamos apaixonados. Que raio! O que fazer quando ficamos apaixonados por um filme que nos entra pelas veias adentro e que repensa o lugar do espectador?! O melhor será deixarmo-nos ir e acreditar que esta cineasta estreante é capaz de repensar os limites da afinidade cinéfila (muitos olás se dizem aqui a Manoel de Oliveira) e da mais pura adesão romântica. Crónica de pais, filhos e netos ao longo dos tempos. Uma família portuguesa que é a família da realizadora.

Sempre em formato de poesia visual e em regime de narração lírica, é um objeto raríssimo. A base torna-se precisamente a morte de duas mães e o impacto de luto que têm em Catarina e no seu pai, Jacinto. A ausência de uma mãe e de uma avó em quadros de memórias que são adornados com palavras que nada devem à grande literatura. "Os mortos é uma questão dos vivos" é dito a determinada altura sem aquele tique irritante de filme de arte na qual a lógica experimental coloca a palavra a ilustrar a imagem. No cinema de Vasconcelos, não há nada disso, apenas uma abertura à experiência da melancolia e da delicadeza do bom gosto feminino. Berlim 2020 só no final da sua edição vai experimentar esta metamorfose, mas dá para apostar que será um dos casos do festival. Para além e por além de Oliveira...

Da competição é esperar pela história de paternidade de Sally Potter, The Roads Not Taken, onde há Elle Fanning, Salma Hayek e um Javier Bardem a fazer de patriarca com perturbações mentais. Potter, cineasta livre que aqui parece ter um regresso ambicioso. E o que dizer de Siberia, de Abel Ferrara, projeto que o próprio cineasta já confessou ao DN ser a sua maior loucura? Na corrida pelo Urso de Ouro também está a americana Kelly Reichardt com First Cow, mais um western com um olhar "exterior", possivelmente a desenvolver novas noções do tema da "fronteira". Da França há que esperar mundos e fundos de Philippe Garrel e do seu Le Sel des Armes, já adquirido para Portugal, enquanto da Alemanha há um favorito logo à partida, Undine, do muito aclamado Christian Petzold. Palavra ainda para o Brasil com o esperado Todos os Mortos, de Caetano Gotardo e Marco Dutra, um olhar sobre a escravatura.

O festival abre amanhã com Philippe Falardeau e o seu My Salinger Year, com a jovem revelação de Era Uma Vez em... Hollywood, Margaret Qualley. Obra com estatuto fora de competição e que examina um período na América onde J.D. Salinger reinava no património do culto da literatura.

Também fora de competição vamos ter já neste fim de semana Bora Lá, uma das obras mais arriscadas de sempre da Disney Pixar. Num ano sem grandes vedetas de Hollywood, é bem possível que Chris Pratt e Tom Holland cheguem para causar comoção na passadeira vermelha. São eles os atores que dão voz à versão original desta história sobre elfos num subúrbio de fantasia.

Como sempre, a Berlinale aposta no Shooting Stars, iniciativa da European Film Promotion cujo objetivo é promover os novos talentos da representação na Europa. Finalmente, depois de vários anos de ausência, Portugal conseguiu selecionar uma atriz: Joana Ribeiro, cada vez mais "quente" depois de protagonizar O Homem Que Matou D. Quixote, de Terry Gilliam, que há pouco recebeu data para estrear em Portugal: 9 de julho.

Esta edição número 70 do festival das multidões já não vive da fama dos filmes com apelo ao Óscar mas tem como presidente do júri um premiado da Academia, Jeremy Irons. O DN estará em Berlim a dar conta de uma eventual metamorfose radical de um festival que é imperioso reabilitar.

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