Para não falar da identidade portuguesa

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No livro vem o nome dos reis.
Mas foram os reis que transportaram as pedras?

(Brecht, Perguntas de Um Operário Letrado)

Quando nos lembramos de nós próprios meninos, sabemos ao certo que é nossa a lembrança ou ela vem-nos das histórias que ouvimos da boca dos outros sobre o nosso passado? Da mesma forma que da memória da nossa infância vamos sabendo por narrativas alheias, também a imagem que temos de nós mesmos como membros de um coletivo (os seres humanos; os europeus; os portugueses) é construída por narrativas míticas e científicas, por ficções e verdades, opiniões e conhecimentos, sonhos e experiências. Por isso todas as elaborações sobre as nossas identidades nunca podem ser reduzidas a um efeito de verdade, pois elas trazem em si mesmo as suas próprias lendas.

As lendas que tecemos sobre nós próprios são-nos ao mesmo tempo necessárias e nocivas: necessárias porque não temos outra forma de nos construirmos e imaginarmos; nocivas porque nos reduzem e nos cortam do maior ou menor universo de possíveis que encerramos. Assim também as lendas nacionais.

Esta conversa veio a propósito de identidades: já repararam que, quando majestosamente nos autoqualificamos como um povo de heroicos aventureiros sempre prontos a expatriar-nos para longe de nós próprios, estamos a olhar no nosso espelho mítico uma plêiade formidável de bem ataviados navegadores e descobridores, esquecendo os miseráveis que enchiam as caravelas mais por vontade de sobrevivência contra um destino de miséria e fome do que por espírito cavalheiresco de aventura e conquista? Mais do que a glória de mandar e a vil cobiça não terá sido motor de tantas glórias a pura e simples vontade de subsistência?

Sim, os portugueses tiveram de expatriar-se durante todos estes séculos. Fizeram-no, fosse a traficar escravos ou a negociar pimenta, a escavar ouro ou a carregar fardos nos portos, a fazer pão ou a empilhar tijolos, fizeram-no sempre para conquistar uma vida que a terra pátria, mãe pobre de gente pobre (Carlos de Oliveira), não lhes dava. Eram piedosos e ao mesmo tempo cruéis, apaixonados e ao mesmo tempo mesquinhos, arrebatados e ao mesmo tempo manhosos - eram seres humanos como nós.

Por isso talvez devêssemos dedicar mais atenção, nesse exercício mitográfico de amor-próprio em que tanto nos comprazemos, aos nossos compatriotas que tiveram de procurar lá fora o trabalho e a dignidade que aqui não encontraram. Pois porquê enfeitarmo-nos ainda (essas manias não passam) com plumas de conquistadores quinhentistas e não focarmos esse nosso irreprimível amor próprio nos trabalhadores portugueses emigrantes (não tenhamos medo da palavra), na gente da diáspora (sim, a diáspora não ficou restrita a nenhum povo eleito), nos cinco milhões de compatriotas nossos que compõem as comunidades portuguesas no estrangeiro, esses que nós todos tanto ganharíamos em conhecer melhor?

Começámos a pensar em identidades e logo as realidades nos apareceram com toda a sua solidez e exigência. Cinco milhões de portugueses a viver fora de Portugal merecem de nós mais do que esta quieta satisfação com a imagem mítica de nós próprios com que sabemos viver. Eles são afinal a nossa mais forte marca no mundo.

À memória de Eduardo Lourenço.

Escritor e diplomata

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