O ex-governador do Ohio, o republicano John Kasich, foi literal na mensagem de vídeo que enviou para a convenção democrata, filmando-se num cruzamento rural para lembrar precisamente que os EUA estão numa encruzilhada e que é hora de fazer um desvio e votar em Joe Biden..Kasich foi um de quatro antigos políticos republicanos que tiveram direito a tempo de antena na primeira noite do encontro dos democratas, virtual por causa da pandemia do novo coronavírus, e que apelaram ao voto contra o presidente Donald Trump.."Tenho a certeza de que há republicanos e independentes que não conseguem imaginar apoiar um democrata. Têm medo de que o Joe possa virar drasticamente à esquerda e deixá-los para trás. Não acredito nisso porque conheço o seu carácter. Ele é razoável, fiel e respeitador", afirmou o ex-governador, admitindo haver várias áreas nas quais não está de acordo com Biden, que conhece há 30 anos..Alegando que o presidente enviou os EUA "num caminho de divisão, disfuncionalidade, irresponsabilidade", Kasich salientou no seu discurso que continuar a seguir esse caminho trará consequências nefastas para todos e apelou a uma mudança de rota..O ex-governador, que foi o último a desistir da corrida republicana à Casa Branca há quatro anos e já tinha sido candidato em 2000, descreveu-se como um "republicano a vida toda". Mas defendeu que tal fica em segundo lugar diante da sua responsabilidade para com o país.."Joe Biden é um homem para o nosso tempo, tempo que pede que todos nós tiremos o nosso chapéu partidário e ponhamos a nossa nação em primeiro lugar para nós e, obviamente, para os nossos filhos", indicou Kasich, que em 2016 também não votou em Trump - optou por escrever à mão no boletim o nome do senador John McCain (que tinha sido candidato em 2008)..Kasich foi governador do Ohio durante dois mandatos (entre 2011 e 2019), sendo certo que nenhum republicano chegou à Casa Branca sem ganhar neste estado. Em 2016, Trump ganhou com mais de oito pontos percentuais de diferença para Hillary Clinton, com as sondagens mais recentes a apontar para uma corrida apertada com Joe Biden (estão a um ou dois pontos percentuais de diferença)..Três mulheres.Ter um político do partido oposto a discursar numa convenção não é inédito. Mas Biden deu tempo de antena a quatro deles logo na primeira noite da convenção virtual, que é coordenada a partir do Wisconsin e teve como grande estrela a ex-primeira-dama Michelle Obama..Os políticos republicanos discursaram num segmento que também incluiu o testemunho de eleitores republicanos desconhecidos espalhados pelo país que dizem que vão votar no candidato democrata. O objetivo é mostrar que nem todo o Partido Republicano está ao lado de Trump e tentar atrair os eleitores conservadores que estão indecisos..Além de Kasich, cujo vídeo era o mais longo, com quase quatro minutos, a convenção contou com o testemunho de três mulheres que já desempenharam ou aspiraram a desempenhar cargos políticos pelos republicanos: a ex-governadora de Nova Jérsia, Christine Todd Whitman, a antiga candidata a governadora da Califórnia e atual diretora executiva da empresa de conteúdos Quibi, Meg Whitman, e a três vezes congressista por Nova Iorque, Susan Molinari.."Isto não é sobre um republicano ou um democrata", disse a ex-governadora de Nova Jérsia (1994-2001) que fez parte da administração de George W. Bush. "É sobre uma pessoa. Uma pessoa suficientemente decente, suficientemente estável, suficientemente forte para voltar a pôr a nossa economia no caminho certo. Uma pessoa que pode trabalhar com toda a gente, democratas e republicanos, para garantir que as coisas são feitas. Donald Trump não é essa pessoa. Joe Biden é", acrescentou Christine Todd Whitman..Nascida dentro de uma família republicana - a começar pelos avôs, que ajudaram a financiar várias campanhas do partido, até ao marido, que conheceu no baile de tomada de posse de Richard Nixon, em 1969, e era neto de um ex-governador de Nova Iorque -, Whitman já tinha demonstrado a sua rejeição de Trump ao apoiar a candidatura de Hillary Clinton há quatro anos..Já Meg Whitman, uma das mulheres mais ricas da Califórnia, com uma fortuna de 3,8 mil milhões de dólares, enviou uma mensagem focada no setor económico: "Sou uma republicana de longa data e uma CEO de longa data. E deixem-me dizer-vos, Donald Trump não faz ideia de como gerir um negócio, quanto mais uma economia. Joe Biden, pelo contrário, tem um plano que vai fortalecer a nossa economia para os trabalhadores e os proprietários de pequenas empresas. Para mim, a escolha é simples. Estou com o Joe.".Whitman, que fez fortuna enquanto diretora-geral do eBay durante dez anos, gastou quase 150 milhões de dólares da sua fortuna pessoal para concorrer, em 2010, ao cargo de governadora da Califórnia (perdeu para o democrata Jerry Brown). Em 2016, apoiou e financiou a campanha de Hillary Clinton (apesar de ser uma conhecida doadora republicana), comparando na altura Trump a Adolf Hitler e a Benito Mussolini, e dizendo temer as consequências de este ser eleito..Por seu lado, Susan Molinari, que foi congressista por Nova Iorque entre 1990 e 1997 depois do pai, disse conhecer Trump há vários anos. "Tão dececionante e ultimamente tão perturbador", afirmou no vídeo, onde explica que considera Biden um amigo, tendo trabalhado com ele em vários temas relacionados com a violência contra mulheres e as oportunidades de negócios para o sexo feminino. "Ele é um homem excelente e exatamente o que esta nação precisa neste momento", acrescentou..Molinari chegou a ser considerada uma estrela em ascensão do Partido Republicano, tendo feito o discurso-chave da convenção republicana em 1996. Em 1997, trocou a política por uma carreira televisiva e, mais tarde, por uma empresa de lóbis, tendo, contudo, sempre apoiado os candidatos republicanos..Ataques republicanos... e democratas."Os 'republicanos' que os democratas mostraram são apoiantes de Hillary [Clinton, candidata derrotada por Trump em 2016], um má perdedor e uma mulher que ganhou milhões a fazer lóbi por [Vladimir] Putin", escreveu a presidente do Partido Republicano, Ronna McDaniel, no Twitter, referindo-se neste último caso a Molinari, que terá trabalhado numa empresa que trabalhou em nome do presidente russo em Washington.."Eles acham que isso 'ajuda' Joe Biden? Donald Trump ganhou sem os never trumpers [os que diziam Trump nunca] em 2016 e vai ganhar sem eles em 2020", acrescentou..O próprio Trump atacou pessoalmente Kasich no Twitter: "Kasich fez um mau trabalho em Ohio, concorreu a presidente e foi facilmente derrotado, e agora foi para o outro lado desesperado por ter relevância", reiterando que ele é um "perdedor" e partilhando as críticas do ex-governador de Nova Jérsia Chris Christie..Trump também partilhou uma mensagem na qual Kasich chama mentiroso a Biden, num discurso na convenção nacional republicana em 2012..Se os republicanos procuraram desvalorizar as intervenções, também houve democratas a quem não agradou o tempo de antena que foi dado a quem não partilha os mesmos valores do partido. Alguns progressistas lembraram, por exemplo, que Kasich é a favor de restringir o aborto, é contra alargar o acesso universal à saúde e contra mais programas sociais de assistência económica..A decisão de chamar ao palco (mesmo que virtual) alguém do outro partido tem de ser tomada sabendo-se que há o risco de irritar os próprios eleitores, neste caso aqueles que estão mais à esquerda dentro do Partido Democrata..Uma das críticas veio da congressista Alexandria Ocasio-Cortez, a quem só terá sido dado um minuto para poder discursar na convenção na terça-feira à noite (madrugada de quarta em Lisboa). "Acho bem que Kasich tenha acordado e percebido a importância de apoiar a candidatura de Biden e [Kamala] Harris. Espero que chegue aos eleitores republicanos", começa a mensagem no Twitter.."Mas também algo me diz que um republicano que luta contra os direitos das mulheres não tem direito a dizer quem representa ou não o partido democrata", conclui, partilhando uma declaração do ex-governador em que este diz que só por ter destaque não significa que Alexandria represente o partido..Um partido que a chamada esquerda progressista, representada pelo ex-candidato Bernie Sanders, teme que possa acabar por virar à direita com a eleição de Biden - graças aos tais never trumpers de 2016, que em vez de procurarem combater o discurso do presidente dentro do Partido Republicano optam por unir-se ao centro do Partido Democrata para o fazer cair. .Apoios que cruzaram linha partidária.O apoio republicano a um candidato democrata, ou vice-versa, não é algo inédito, havendo alguns exemplos de políticos que, no passado, cruzaram a linha partidária e discursaram na convenção nacional da suposta oposição..Em 2008, o senador Joe Lieberman, que tinha sido candidato a vice-presidente pelos democratas em 2000 e entretanto se tornara independente, apoiou o amigo John McCain para a Casa Branca, discursando na convenção do Partido Republicano. Já Barack Obama contou com dois apoios republicanos menos conhecidos: o ex-congressista Jim Leach e o então presidente da Câmara de Fairbanks, no Alasca, Jim Whitaker..Quatro anos antes, o senador democrata Zen Miller tinha apoiado nesse mesmo evento a reeleição do presidente George W. Bush..Michael Bloomberg, que enquanto republicano tinha sido presidente da Câmara de Nova Iorque mas que desde 2007 era independente, apoiou Hillary Clinton em 2016. Neste ano, foi um dos candidatos à nomeação democrata, gastando quase mil milhões de dólares do seu dinheiro na campanha, mas desistindo por não ter conseguido conquistar muitos delegados..Fora das convenções, há outro grupo de antigos republicanos que se desvincularam do partido que apoiam Biden e que têm vindo a fazer ativamente campanha contra Trump. O chamado Lincoln Project tem conseguido irritar o presidente por causa dos vídeos que tem publicado..Pode resultar?.Segundo um artigo no site da Instituto Brookings, o número de eleitores que na hora de votar cruzam a linha partidária está em queda - a sondagem à boca das urnas da CNN, em 2016, apontava que apenas 8% dos republicanos optaram por votar em Hillary Clinton, a mesma percentagem dos democratas que disseram ter votado em Trump..De acordo com as sondagens citadas, na primeira semana de agosto, a percentagem de republicanos que diziam aprovar a presidência de Trump era de 85% (com a desaprovação a chegar a 15%). O presidente alega que tem a aprovação de 96% dos republicanos, o que não parece ser verdade..Apesar de Biden ter então margem de manobra para roubar mais eleitores republicanos a Trump do que Hillary Clinton conseguiu em 2016, isso não significa que estes se deixem levar pelos argumentos dos quatro republicanos que falaram na convenção democrata..A escolha será entre votar em Biden ou ficar em casa; o artigo do Instituto Brookings defende que fará mais sentido ouvir de democratas moderados que o ex-vice-presidente não fará uma viragem à esquerda se chegar à Casa Branca do que de Kasich.