"Que culpa tenho eu se as pessoas gostam do Pica do 7? Os meus ideais são os mesmos"

Prestes a lançar um novo álbum, o músico falou com o DN sobre a experiência de gravar com uma orquestra, os discos que lhe mudaram a vida - de Tom Waits a Caetano Veloso, "o melhor cantor da história da música" - e como continua o mesmo, apesar de o público o cantar de cor.
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António Zambujo virou tudo do avesso no novo álbum, lançado na próxima sexta-feira. Neste Do Avesso afastou-se do cante e do fado sem nunca os perder de vista, foi à América de Sergio Leone e à Latina, de Jorge Drexler ou Arnaldo Antunes, convocou três produtores Nuno Rafael, Filipe Melo e João Moreira, e companheiros como Miguel Araújo ou João Monge. Fala (quase) com a mesma graça com que canta.

Do Avesso termina com Moda Antiga, só voz e guitarra, a falar do que se aprende no Alentejo que não serve para a cidade, apenas para se ser quem é. Rua da Emenda acabava com Viver de Ouvido, também mais despido. Parecem uma espécie de recado que nos quer dar no fim.

Não lhe chamaria recado, mas faz algum sentido. É uma coisa meio conclusiva/enigmática, porque na verdade eu não sei o que é que vai acontecer a seguir. Nunca me passou pela cabeça que este disco me levasse para estes caminhos todos. Tem a parte só com orquestra, a parte mais indie, folk, como quiser chamar. Eu como não gosto de etiquetas não sei etiquetá-los. Tudo começa só com a voz e a guitarra, o resto vai-se construindo.

Como se põe no papel por trás de cada canção? É um trabalho que se parece ao de um ator?

É uma interpretação que dou aos poemas. Como não escrevo - não sei se é uma vantagem ou desvantagem - sinto-me muito à vontade em interpretar aquelas personagens. Neste disco há duas em que entro no papel de uma mulher, e há algumas mais autobiográficas, mais fáceis de entrar.

Como é que convoca os autores? Há alguns habituais, como o Miguel Araújo, Pedro Silva Martins ou João Monge.

A música do Miguel foi feita depois de termos feito os coliseus. Eu desafiei-o a irmos tocar à minha terra, porque tínhamos ido ao Porto. Fizemos três concertos em Beja e levei-o a conhecer a rua da minha avó. Catavento da Sé é a visão do Miguel, parte ficcionada parte real, da rua que eu lhe apresentei. A [canção] do Paulo Abreu Lima [Amor de Antigamente] é uma história meio autobiográfica, de saltar a janela para lhe ir tocar uma serenata.

É sua?

Poderia ser. A da Aldina [Duarte] também é muito pessoal, porque o meu pai morreu no ano passado e ela fez uma letra de despedida. Tem muito que ver com as relações entre mim e os autores.

Há canções que já existem e de repente percebe que são feitas para si? Estou a pensar na Lambreta, por exemplo, um dos seus grandes sucessos, e que já existia há muito.

Há músicas que eu sempre quis cantar. Como Amapola. Gosto muito de cinema e o Filipe Melo é cineasta. Amapola é um dos nossos grandes heróis. Há dois momentos musicais no cinema que eu acho gloriosos. Há mais... O Caetano Velosos a cantar Cucurrucucu Paloma, no Habla con Ella, do Almodóvar, e este no Once Upon a Time in America [de Sergio Leone] em que Robert De Niro manda fechar o restaurante mais fancy de Nova Iorque com uma orquestra e vai dançar com a rapariga. Eles tocam Amapola e aquilo é das coisas mais bonitas que já vi, aqueles arranjos do [Ennio] Morricone... Foi difícil gravar porque emociona-me.

É afetado assim quando está a cantar?

Muito. Às vezes rio-me, dou gargalhadas, não consigo parar de rir durante algum tempo. Normalmente quando as coisas me emocionam muito.

Há na sua voz uma segurança como se ela fosse um dom e por isso não falhasse. É verdade?

Eu sou um tipo com muita confiança. Nunca estou nervoso antes de entrar em palco, nunca me sinto inseguro em cima do palco. Mas se calhar é como disse, tem que ver com essa coisa da voz, do dom. Nunca me preparei para ser assim, nasceu comigo. O teatro ajudou-me muito nessa parte da confiança, de encarar um público. Não há ninguém mais canastrão do que eu em cima do palco, então é preciso ter uma grande confiança para subir para um palco e fazer uma peça [de Filipe La Féria]. Era uma coisa fora da minha zona de conforto. Como fiz mais de mil representações se calhar isso deu-me uma coisa meio inata: estou aqui em cima do palco, tenho é de desfrutar. Mas também não falha porque me preparo e à interpretação das letras.

Ainda lhe é estranho ouvir as pessoas cantar de cor as suas canções?

Lembro-me de que uma vez, com uma música menos conhecida, Noite Estrelada, do disco Quinto, no Theatro Circo em Braga, cantei as primeiras palavras e o público começou a aplaudir. E eu: o que é que se passa aqui? Depois lembrei-me: está a dar na novela. É ótimo ver as pessoas a cantar o Pica do 7, é maravilhoso. Hoje em dia há uma coisa que acaba por ser meio preconceituosa: um artista que tem uma música de sucesso deixa de ser um bom artista. Acho isso um bocado estúpido. O artista não deixa de ser o mesmo. Que culpa tenho eu se as pessoas gostam do Pica do 7 ou do Flagrante? Os meus ideais continuam a ser os mesmos. Não mudei nada na minha forma de encarar a música, de tocar, de cantar.

Quando começou achava que se o que fizesse fosse muito bom as pessoas iam lá ter?

Não. O processo criativo é sempre muito egoísta. Obviamente que eu sei que se não tiver público não vou conseguir sobreviver a fazer aquilo de que mais gosto. Mas quando estamos a fazer o disco o processo é sempre para nós.

É uma procura?

Permanente. "Ando na vida à procura / De uma noite menos escura / Que traga luar do céu." Há um fado muito bonito que diz isso. A música é do Marceneiro, é o Fado Cravo. Isto [aponta para o disco] já está feito. Ainda não é passado porque meto no carro quando levo o meu filho à escola para decorar as letras.

Como é cantar com uma orquestra, como faz neste disco com a Sinfonietta de Lisboa?

É maravilhoso, dilacerante, fantástico. Há momentos em que nos passa pela cabeça: se eu pudesse congelar este momento e ficar aqui o resto da vida... Estar com a orquestra a gravar o Amapola: eu podia ficar ali o resto da vida.

O que é que a orquestra lhe dá?

Emociona-me imenso, estimula-me, dá-me criatividade, faz-me procurar outros caminhos, reduz-me à minha insignificância, porque a voz é só mais um instrumento.

Este disco é de facto do avesso? Sente-se do avesso?

Sim. Este disco é aquilo de virar do avesso para encontrar outras coisas que já lá estão mas nunca estiveram tão presentes, tão à superfície. Os outros discos andam ali sempre entre a música tradicional, o fado, o Brasil. Este disco traz outras coisas. Há uma série de discos que me influenciaram muito: Cavalo, do Rodrigo Amarante, Sou, do Marcelo Camelo, discos dos Beatles, o White Album, Sgt.Pepper's, muitos do Tom Waits, que é um dos meus grandes heróis. Neste disco estão mais presentes essas influências. Um Caetano assim mais naquela altura do Fina Estampa, daquela trilogia de rock. São discos que mudaram a minha vida.

O que é isso de um disco mudar a vida? Muda tudo?

Completamente. Pensar assim: este cabrão chegou lá primeiro do que eu. E esses então são irritantemente perfeitos. Mais o Chet Baker, o João Gilberto. E eu continuo à procura.

A linguagem musical do Brasil está consolidada em si. Foi a que o António mais teve de construir? Comparando com o cante e o fado, que lhe aconteceram.

Também aconteceu. Imagine que eu em vez de ter encontrado o João Gilberto tinha encontrado um artista qualquer de outro país, poderia ter sido tudo diferente. É um feliz acaso. Depois comecei a procurar tudo: a poesia do Vinicius [de Moraes], o Chico [Buarque], a genialidade do Caetano [Veloso], que deve ser o maior cantor da história da música.

É discreto na sua vida pessoal. Tem curiosidade em saber quem são as pessoas por trás dos seus heróis?

Nada. Felizmente houve um feliz acaso e não fiquei defraudado. Conhecer pessoalmente o Caetano, o Chico, o Milton, a Gal é muito arriscado. Não são terrestres para mim. A arte deles não é uma coisa daqui, é demasiado forte.

Toca muito fora de Portugal, muito em França, por exemplo. O que vai vendo dos emigrantes portugueses?

Os emigrantes só começaram a ir aos meus concertos lá fora quando comecei a ter sucesso em Portugal. Lembro-me de fazer aqui um concerto no Teatro da Trindade e estavam 15 pessoas, eu já tocava na Bélgica, em França, no Théâtre de la Ville [em Paris], em festivais importantes. Depois de Lambreta, Flagrante ou Pica do 7 comecei a ter mais portugueses. E fico muito feliz com isso.

Vi que deixou de sofrer com o Benfica antes dos concertos.

Felizmente. É um desgaste emocional que já não existe. Continuo a ver os jogos, a quer que o Benfica ganhe, mas já não me prende e já não vou para o concerto como se tivesse feito uma maratona.

Deixou-o pelo circo que se montou no futebol à volta do jogo?

O desporto continua a ser maravilhoso, mas aquilo já não é nada. É miserável.

O que aconteceu no Brasil com as eleições que Bolsonaro venceu e no papel que Chico e Caetano tiveram no apoio a Haddad fê-lo pensar no que faria naquela situação?

O que se passa no Brasil é um bocado assustador. Acho muito bem que toda a gente tenha uma posição, mas não me parece que o brasileiro que goste de ouvir o Caetano vote no Haddad só porque ele diz. E o mundo está estranho. Já tenho lido vários comentadores dizer que aquilo é como uma bola de neve, que acontece porque os moderados estão a perder a moderação, e que isto acontece sobretudo por descredibilização da classe politica. Não só no Brasil, mas aqui. Isso assusta-me, e depois as discussões, a forma como se usam as redes sociais... É tudo meio assustador. Acho que as pessoas precisam de andar mais devagar e pensar mais sobre as coisas.

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