A emissão especial da CMTV começou às 08.10 de terça-feira e durou aproximadamente oito mil anos. Quando chegou ao fim, impérios tinham caído, continentes afundado, e o episódio em si era uma memória remota, sobrevivendo apenas como nota de rodapé num manual escolar em mandarim, no capítulo intitulado "Excentricidades dos Povos Pré-Coloniais"..O começo foi auspicioso. Uma equipa de profissionais dedicados saiu para o terreno, todos animados pela convicção de que seria possível captar visualmente uma viatura motorizada a sair de um edifício e a entrar noutro. "Essa saída deverá acontecer nos próximos minutos", asseguravam no estúdio, tentando aquietar a excitação dos espectadores..."Vamos agora acompanhar esta saída que acontece aqui deste posto da GNR, isto porque poderá acontecer... será após uma outra... viatura... não há qualquer indicação de que lá dentro seja alguém relacionado com este processo, mas poderia ser..." Após novo falso alarme, a mítica viatura finalmente emergiu. Um esquadrão de Belerofontes montados em Pégasos de duas rodas lançou-se em perseguição. Vinte minutos de tensão e dúvida, até que o estúdio nos informa com pesar de que se trata da viatura errada. "Afinal... há fortes indícios de que Bruno de Carvalho ainda esteja no posto em Alcochete..Foi um contratempo grave, mas o jogo jogava-se em dois tabuleiros e havia outro suspeito para acompanhar. "Dúvidas em Alcochete, certezas no Montijo, não é assim, Pedro?" No entanto, o intrépido repórter no Montijo também tinha sido vítima de manobras de diversão: "Mustafá saiu numa viatura ligeira de cor preta e não, portanto, noutra viatura."."E podem ainda passar por esse local?"."Podem, podem... mas não acredito que passem por este local".."Esta sucessão de derrotas foi resolvida passando a emissão para a porta do tribunal do Barreiro, e para uma sequência de improvisações em verso livre subordinadas ao tema "Aparato Policial". Uma das repórteres inventou a sua própria métrica, escandindo frases a intervalos originalíssimos: "Tendo em conta os últimos acontecimentos de TENSÃO e alguma APREENSÃO... em tudo o que DIZ respeito ao Sporting CLUBE de Portugal e tudo o que à SUA volta GRAVITA...".A repórter sénior, mais calma e experiente, contentou-se em explicar a razão do aparato: "Os elementos policiais mantêm-se em número considerável para evitar confrontos entre os apoiantes que vão chegando e também os curiosos." Só um conhecimento histórico profundo poderia explicar-nos de forma tão lapidar a velha rivalidade territorial entre Apoiantes e Curiosos, que remonta ao Tratado de Vestefália. Quanto às viaturas e ao seu tempo de chegada, mantinha-se o mistério. "... São carrinhas que eventualmente, conforme há pouco dizíamos... vemos agora nestas imagens... carrinhas a chegar... não será expectável que nestas carrinhas venha... portanto... poderão entrar pela garagem, pela porta principal... ou por uma porta lateral... que também aqui existe...".O esforço descritivo e o rodopio entre prolepses começou a desorientar os executantes, que retaliaram com várias medidas agressivas contra advérbios e tempos verbais: "... Ainda não terão chegado aqui a este tribunal e eu digo "terão" no condicional, exactamente porque não se sabe exactamente..." No estúdio, alguma simpatia: "Acaba por ser tudo uma grande incógnita, não é?".Também no estúdio, um convidado comenta a situação. É Carlos Severino, com um casaco sombrio nos ombros e uma expressão de luto no rosto, talvez pelo pequeno marsupial falecido que repousa há vários anos no topo do seu crânio. Fala com a mágoa de quem viu a sua voz independente ser vítima de pressões: "Eu sou uma voz independente... Sofri pressões... Já bloqueei setecentos perfis no Facebook... É a teoria do caos...", esclareceu, antes de concluir: "Vamos esperar que a Justiça diga de sua justiça... E parabéns ao CM pelo trabalho que está a fazer.".Mas esse trabalho enfrentava o mesmo temível adversário: a GNR, com os seus manhosos ardis. BRUNO JÁ ESTÁ NO TRIBUNAL, berrava o rodapé. "Foi uma entrada completamente inesperada, feita em sentido contrário... todas as equipas de reportagem estavam focadas nesta entrada... mas a GNR mais uma vez conseguiu fintar os jornalistas... que aqui estão a tentar fazer o seu trabalho." Temos de nos contentar com uma repetição em câmara lenta: "Podemos ver o carro preto a entrar na garagem... no sentido que supostamente serve para sair da garagem... os vidros são fumados... pouco se consegue ver... Os jornalistas aqui esperavam que o carro entrasse pelo sentido normal..." Não é preciso muita empatia para imaginar esta imensa frustração: quatro anos a tirar uma licenciatura em Jornalismo para, no que podia ser o pico da carreira profissional, ser enganado por um carro em contramarcha..Entretanto, na SIC Notícias, auscultava-se a Opinião Pública. Uma reformada de Alcobaça ligou para dizer que "esse senhor é uma vergonha" e devia ter "menos protagonismo". Um desempregado de Queluz ligou para dizer que é membro de uma claque há 20 anos e tem o "cadastro limpo". Uma reformada de Queluz ligou para confirmar que, ao contrário do sugerido por um vídeo viral, era mesmo ela quem estava a ligar e não Bruno de Carvalho a disfarçar a voz. Na TVI24, sem subterfúgios, um Especial de Informação intitulado "Bruno de Carvalho" ocupou algumas horas de quarta-feira. Rui Pedro Brás, que costumava explicar quais os laterais-esquerdos do Palmeiras "na órbita" dos três grandes, viu-se subitamente a explorar a ontologia do terrorismo na presença de advogados e juristas. A coisa correu como se poderia esperar:."Mas o que diz o ponto 2 do artigo 300 do Código Penal..."."Já não é essa a base. É a lei 52/2003.".Indómito, Brás voltou à carga:."De todos os crimes tipificados na acusação, é o único que permite a prisão preventiva..."."Não, não é o único.".Aquilo que ele fazia não eram perguntas, mas o que ouvia eram invariavelmente respostas..As melhores respostas da semana podiam ouvir-se na vox pop da RTP3, também à porta do tribunal do Barreiro. "Vou aproveitar para falar com um apoiante, a quem pergunto: vai manter-se por aqui?"."Claro que sim, mas, antes de mais nada, eu costumo dizer que a gratidão é o pai dos sentimentos e o amor nunca morre."."Obrigada... Há também muita gente aqui à volta que não veio apoiar, há muitos curiosos. Vou aproveitar para falar com este senhor, a quem pergunto: passou por acaso?"."Passei, passei por acaso. Moro aqui perto e vim ver só dois minutos isto."."Ou seja, já vai embora?"."Estou quase a ir embora. Quando acabar de falar vou embora."."Obrigada. Obrigada.".Dois dias mais tarde, regresso à CMTV, onde se exibiam novas imagens exclusivas. CÂMARAS CAPTAM TERROR, anunciava o oráculo, ilustrando o cenário hediondo de quatro indivíduos de braços cruzados num parque de estacionamento. Francisco Moita Flores deu voz ao sentimento: "As imagens são violentíssimas, são terríveis" (nesse preciso momento as imagens mostram um dos quatro indivíduos a descruzar os braços e a enfiar as mãos nos bolsos). "Eu estava a olhar para este bando e a recordar-me das tropas de elite de Hitler... as terríveis SS... a lealdade destes tipos é seu líder espiritual... tal como as SS tinham o seu líder espiritual.... o autor do Mein Kampf... e de um dos maiores holocaustos na história da humanidade...".E eis-nos na presença do maior holocausto desde que os pérfidos McCann assassinaram a filha. É uma opinião, como qualquer outra, e portanto a coisa mais natural de ouvir ou ler num regime informativo que nos condicionou a esperar que cada segundo da realidade seja preenchido por "notícias", sobre as quais possamos ouvir opiniões e contrastá-las com as nossas..Algures entre a invenção do telégrafo e a perseguição a O.J. Simpson numa autoestrada de Los Angeles, a "informação" deixou de ser algo a que se pode reagir com respostas físicas, decisões alteradas ou mudanças de planos, e passou a ser algo que se consome passivamente, como o novo episódio de uma história, ao qual a única resposta possível é ter uma opinião..A única coisa que estes episódios de cobertura contínua sem conteúdo fazem é estruturar a maneira como a nossa atenção é distribuída; em troca, protegem fervorosamente o nosso direito a ter e emitir opiniões: sobre quem é herói ou vilão; sobre o que é terrorismo; sobre o que significa autoria moral. Protegem até o direito à opinião de que tudo isto é uma "novela", uma colisão fortuita entre duas "loucuras" que se merecem, e que a atenção "séria" pode espreitar dois minutos e depois ignorar - não aprendendo nada sobre o que se passou, mas não tendo quaisquer dúvidas sobre o que pensa.
A emissão especial da CMTV começou às 08.10 de terça-feira e durou aproximadamente oito mil anos. Quando chegou ao fim, impérios tinham caído, continentes afundado, e o episódio em si era uma memória remota, sobrevivendo apenas como nota de rodapé num manual escolar em mandarim, no capítulo intitulado "Excentricidades dos Povos Pré-Coloniais"..O começo foi auspicioso. Uma equipa de profissionais dedicados saiu para o terreno, todos animados pela convicção de que seria possível captar visualmente uma viatura motorizada a sair de um edifício e a entrar noutro. "Essa saída deverá acontecer nos próximos minutos", asseguravam no estúdio, tentando aquietar a excitação dos espectadores..."Vamos agora acompanhar esta saída que acontece aqui deste posto da GNR, isto porque poderá acontecer... será após uma outra... viatura... não há qualquer indicação de que lá dentro seja alguém relacionado com este processo, mas poderia ser..." Após novo falso alarme, a mítica viatura finalmente emergiu. Um esquadrão de Belerofontes montados em Pégasos de duas rodas lançou-se em perseguição. Vinte minutos de tensão e dúvida, até que o estúdio nos informa com pesar de que se trata da viatura errada. "Afinal... há fortes indícios de que Bruno de Carvalho ainda esteja no posto em Alcochete..Foi um contratempo grave, mas o jogo jogava-se em dois tabuleiros e havia outro suspeito para acompanhar. "Dúvidas em Alcochete, certezas no Montijo, não é assim, Pedro?" No entanto, o intrépido repórter no Montijo também tinha sido vítima de manobras de diversão: "Mustafá saiu numa viatura ligeira de cor preta e não, portanto, noutra viatura."."E podem ainda passar por esse local?"."Podem, podem... mas não acredito que passem por este local".."Esta sucessão de derrotas foi resolvida passando a emissão para a porta do tribunal do Barreiro, e para uma sequência de improvisações em verso livre subordinadas ao tema "Aparato Policial". Uma das repórteres inventou a sua própria métrica, escandindo frases a intervalos originalíssimos: "Tendo em conta os últimos acontecimentos de TENSÃO e alguma APREENSÃO... em tudo o que DIZ respeito ao Sporting CLUBE de Portugal e tudo o que à SUA volta GRAVITA...".A repórter sénior, mais calma e experiente, contentou-se em explicar a razão do aparato: "Os elementos policiais mantêm-se em número considerável para evitar confrontos entre os apoiantes que vão chegando e também os curiosos." Só um conhecimento histórico profundo poderia explicar-nos de forma tão lapidar a velha rivalidade territorial entre Apoiantes e Curiosos, que remonta ao Tratado de Vestefália. Quanto às viaturas e ao seu tempo de chegada, mantinha-se o mistério. "... São carrinhas que eventualmente, conforme há pouco dizíamos... vemos agora nestas imagens... carrinhas a chegar... não será expectável que nestas carrinhas venha... portanto... poderão entrar pela garagem, pela porta principal... ou por uma porta lateral... que também aqui existe...".O esforço descritivo e o rodopio entre prolepses começou a desorientar os executantes, que retaliaram com várias medidas agressivas contra advérbios e tempos verbais: "... Ainda não terão chegado aqui a este tribunal e eu digo "terão" no condicional, exactamente porque não se sabe exactamente..." No estúdio, alguma simpatia: "Acaba por ser tudo uma grande incógnita, não é?".Também no estúdio, um convidado comenta a situação. É Carlos Severino, com um casaco sombrio nos ombros e uma expressão de luto no rosto, talvez pelo pequeno marsupial falecido que repousa há vários anos no topo do seu crânio. Fala com a mágoa de quem viu a sua voz independente ser vítima de pressões: "Eu sou uma voz independente... Sofri pressões... Já bloqueei setecentos perfis no Facebook... É a teoria do caos...", esclareceu, antes de concluir: "Vamos esperar que a Justiça diga de sua justiça... E parabéns ao CM pelo trabalho que está a fazer.".Mas esse trabalho enfrentava o mesmo temível adversário: a GNR, com os seus manhosos ardis. BRUNO JÁ ESTÁ NO TRIBUNAL, berrava o rodapé. "Foi uma entrada completamente inesperada, feita em sentido contrário... todas as equipas de reportagem estavam focadas nesta entrada... mas a GNR mais uma vez conseguiu fintar os jornalistas... que aqui estão a tentar fazer o seu trabalho." Temos de nos contentar com uma repetição em câmara lenta: "Podemos ver o carro preto a entrar na garagem... no sentido que supostamente serve para sair da garagem... os vidros são fumados... pouco se consegue ver... Os jornalistas aqui esperavam que o carro entrasse pelo sentido normal..." Não é preciso muita empatia para imaginar esta imensa frustração: quatro anos a tirar uma licenciatura em Jornalismo para, no que podia ser o pico da carreira profissional, ser enganado por um carro em contramarcha..Entretanto, na SIC Notícias, auscultava-se a Opinião Pública. Uma reformada de Alcobaça ligou para dizer que "esse senhor é uma vergonha" e devia ter "menos protagonismo". Um desempregado de Queluz ligou para dizer que é membro de uma claque há 20 anos e tem o "cadastro limpo". Uma reformada de Queluz ligou para confirmar que, ao contrário do sugerido por um vídeo viral, era mesmo ela quem estava a ligar e não Bruno de Carvalho a disfarçar a voz. Na TVI24, sem subterfúgios, um Especial de Informação intitulado "Bruno de Carvalho" ocupou algumas horas de quarta-feira. Rui Pedro Brás, que costumava explicar quais os laterais-esquerdos do Palmeiras "na órbita" dos três grandes, viu-se subitamente a explorar a ontologia do terrorismo na presença de advogados e juristas. A coisa correu como se poderia esperar:."Mas o que diz o ponto 2 do artigo 300 do Código Penal..."."Já não é essa a base. É a lei 52/2003.".Indómito, Brás voltou à carga:."De todos os crimes tipificados na acusação, é o único que permite a prisão preventiva..."."Não, não é o único.".Aquilo que ele fazia não eram perguntas, mas o que ouvia eram invariavelmente respostas..As melhores respostas da semana podiam ouvir-se na vox pop da RTP3, também à porta do tribunal do Barreiro. "Vou aproveitar para falar com um apoiante, a quem pergunto: vai manter-se por aqui?"."Claro que sim, mas, antes de mais nada, eu costumo dizer que a gratidão é o pai dos sentimentos e o amor nunca morre."."Obrigada... Há também muita gente aqui à volta que não veio apoiar, há muitos curiosos. Vou aproveitar para falar com este senhor, a quem pergunto: passou por acaso?"."Passei, passei por acaso. Moro aqui perto e vim ver só dois minutos isto."."Ou seja, já vai embora?"."Estou quase a ir embora. Quando acabar de falar vou embora."."Obrigada. Obrigada.".Dois dias mais tarde, regresso à CMTV, onde se exibiam novas imagens exclusivas. CÂMARAS CAPTAM TERROR, anunciava o oráculo, ilustrando o cenário hediondo de quatro indivíduos de braços cruzados num parque de estacionamento. Francisco Moita Flores deu voz ao sentimento: "As imagens são violentíssimas, são terríveis" (nesse preciso momento as imagens mostram um dos quatro indivíduos a descruzar os braços e a enfiar as mãos nos bolsos). "Eu estava a olhar para este bando e a recordar-me das tropas de elite de Hitler... as terríveis SS... a lealdade destes tipos é seu líder espiritual... tal como as SS tinham o seu líder espiritual.... o autor do Mein Kampf... e de um dos maiores holocaustos na história da humanidade...".E eis-nos na presença do maior holocausto desde que os pérfidos McCann assassinaram a filha. É uma opinião, como qualquer outra, e portanto a coisa mais natural de ouvir ou ler num regime informativo que nos condicionou a esperar que cada segundo da realidade seja preenchido por "notícias", sobre as quais possamos ouvir opiniões e contrastá-las com as nossas..Algures entre a invenção do telégrafo e a perseguição a O.J. Simpson numa autoestrada de Los Angeles, a "informação" deixou de ser algo a que se pode reagir com respostas físicas, decisões alteradas ou mudanças de planos, e passou a ser algo que se consome passivamente, como o novo episódio de uma história, ao qual a única resposta possível é ter uma opinião..A única coisa que estes episódios de cobertura contínua sem conteúdo fazem é estruturar a maneira como a nossa atenção é distribuída; em troca, protegem fervorosamente o nosso direito a ter e emitir opiniões: sobre quem é herói ou vilão; sobre o que é terrorismo; sobre o que significa autoria moral. Protegem até o direito à opinião de que tudo isto é uma "novela", uma colisão fortuita entre duas "loucuras" que se merecem, e que a atenção "séria" pode espreitar dois minutos e depois ignorar - não aprendendo nada sobre o que se passou, mas não tendo quaisquer dúvidas sobre o que pensa.