Diz-se que são os vencedores da guerra quem escreve os manuais de História. No caso da invasão anglo-americana do Iraque, em 2003, a rápida vitória militar e a deposição de Saddam Hussein não esconderam o pecado original da fabricação de um móbil para a ação militar. Além dos abusos das forças ocupantes, como foi exposto no caso da prisão de Abu Ghraib, os motivos da intervenção não foram aceites por parte da população iraquiana. O clérigo xiita Moqtada al-Sadr personificou essa resistência, a qual nos últimos meses passou a receber reforçada ajuda por parte do vizinho Irão..Passados 17 anos da Operação Choque e Pavor, iniciada no dia 20 de março, o otimismo perdeu-se algures entre as intervenções do ministro da Informação de Saddam e a declaração de George W. Bush de que a missão estava cumprida..Os iraquianos vivem hoje entre um movimento de protesto popular contra a classe política e contra os ocupantes, o que inclui norte-americanos e iranianos, iniciado em outubro, e o aumento dos ataques às forças norte-americanas no país por milícias, e agora um potencial desastre sanitário em resultado da pandemia do coronavírus..Terceira guerra mundial.É bom lembrar que o ano começou com meio mundo a deitar as mãos à cabeça com a hipótese de eclodir a Terceira guerra mundial no Iraque. A administração Trump executou o general iraniano Qassem Soleimani e em retaliação os iranianos alvejaram bases com militares norte-americanos, tendo provocado 50 feridos..Foi a escalada de um conflito que subiu de tom no dia 1 de dezembro, quando um rocket matou um tradutor norte-americano no Iraque. As forças dos EUA retaliaram com "ataques defensivos de precisão" que mataram 25 membros da milícia Kataeib Hezbollah. Em resposta, a embaixada norte-americana em Bagdad foi atacada..O Parlamento iraquiano entretanto aprovou uma resolução a exigir a saída dos 5200 militares do país e o Pentágono terá anuído, num primeiro momento, para depois dizer que foi um engano..Há dias, os EUA atacaram instalações onde estavam armas da Kataeb Hezbollah, em resposta ao disparo de cerca de 30 mísseis Katyusha contra a base Al-Taji, ao norte de Bagdad, no que resultou a morte de dois soldados americanos e de uma britânica na semana passada. A mesma base voltou a ser atacada..Na segunda-feira, o Pentágono informou que iria deixar essa base para os iraquianos, bem como a de Kirkuk e a base aérea de Qayara. "Se não quiserem sair vamos fazer que o façam", disse o comandante Abu Ameneh, da Kataeb Hezbollah, à BBC..Não há ainda informações oficiais, mas os soldados devem ser colocados nas outras três bases no Iraque..Segunda opção.Barham Saleh, o presidente do Iraque, designou na terça-feira o ex-governador de Najaf, Adnan al-Zurfi, para formar um novo governo. O anterior primeiro-ministro designado, Mohammed Tawfik Allawi, não conseguiu formar um governo neste mês devido a um impasse no Parlamento..Diplomado em jurisprudência islâmica, Zurfi fez parte do Partido Islâmico Dawa, a histórica oposição xiita a Saddam Hussein. Forçado ao exílio após a revolta de 1991 contra o ditador, exilou-se primeiro na Arábia Saudita e depois nos Estados Unidos, apenas para regressar quando Saddam foi derrubado, em 2003..Natural da sagrada cidade xiita de Najaf, foi então nomeado governador da sua província homónima, em 2004, pelo diplomata norte-americano Paul Bremer, o líder da Autoridade Provisória da Coligação (CPA) das forças de ocupação no Iraque..Um comunicado de imprensa da CPA em 2004 descreveu Zurfi como um "herói desportivo na sua juventude", que foi forçado ao exílio depois de participar na revolta de 1991 contra o então presidente Saddam Hussein. Também o descreveu como um "empenhado e corajoso defensor da democracia, da lei e da ordem"..Governador de Najaf até 2015, deixou boa imagem junto dos cidadãos e dos seus pares pelos seus esforços em melhorar os serviços públicos e manter a segurança. Desde então foi eleito deputado duas vezes e lidera a bancada parlamentar da coligação Nasr, fundada pelo antigo primeiro-ministro Haider al-Abadi..Aos 54 anos, Zurfi, o segundo candidato a tentar formar um governo no Iraque neste ano, é considerado um "rosto novo" que pode despertar o entusiasmo dos apoiantes da mudança, por não ter desempenhado cargos no governo. No entanto, o bloco pró-iraniano não se mostrou entusiasmado com a nomeação..Não ajuda o facto de também ter cidadania norte-americana e a sua mulher e sete filhos viverem nos Estados Unidos, o que causa desconfiança nalguns setores. Tal como ter sido durante muito tempo o principal inimigo do exército dos Mahdi, a poderosa milícia de Moqtada al-Sadr, com quem se reconciliou desde então..E hoje ele está na mira da Coligação Fatah, pró-iraniana, o segundo maior grupo parlamentar, que a descreveu como uma atitude "provocadora" de presidente Saleh. Outro deputado da Fatah, Hassan Salim, classificou o pretendente a primeiro-ministro de "palhaço americano"..A milícia As'aib Ahl al-Haq, apoiada pelo Irão, também se mostrou contra. "Nós dissemo-lo antes e dizemo-lo hoje. Ninguém aprovará um primeiro-ministro contra a vontade do povo", disse o porta-voz..Xiita moderado.Mas a nomeação de Zurfi também recebeu elogios. "É uma voz xiita moderada que defende a manutenção dos laços com o Ocidente" e que "mantém boas relações com curdos e sunitas", sublinhou o deputado curdo da oposição Sarkawt Chemseddine, à AFP. Uma característica essencial num país com uma história recente de líderes sectários..A sua nomeação foi bem recebida pela representante especial das Nações Unidas para o Iraque. "Saudamos a nomeação de um candidato a primeiro-ministro para formar o governo, diante de crises de segurança, políticas, económicas e sanitárias sem precedentes", disse Jeanine Hennis-Plasschaert, em comunicado.."É um rosto novo e certamente é mais uma vantagem do que uma desvantagem diante de uma revolta que há quase seis meses exige uma renovação dos políticos e de uma classe política envelhecida", disse Sajad Jiyad, especialista em temas iraquianos..Antes de convencer uma população descrente em relação à classe política, Zurfi tem de convencer os movimentos pró-iranianos e restantes partidos com assento parlamentar. Para já parte com vantagem em relação aos dois anteriores primeiros-ministros indigitados, que eram independentes. O ex-governador tem agora 30 dias para apresentar um executivo e receber um voto de confiança do Parlamento..Para Sajad Jiyad, o fracasso de Allawi é uma lição para Zurfi. "Devemos obter acordos entre blocos e envolvê-los na formação do governo." Que conclui: "É preciso alguém com experiência, vontade e força para conter as partes em conflito. E alguém que compreenda a importância de ter os Estados Unidos do seu lado.".Saúde e petróleo.Zurfi enfrenta um contexto político que torna a sua tarefa ainda mais difícil. No que respeita às questões internas, o Parlamento está suspenso, pelo que o Orçamento está por aprovar. A pandemia do novo coronavírus começou a matar no Iraque, um país com escassez de medicamentos, profissionais de saúde e hospitais..O Crescente Vermelho iraquiano estima que cerca de 50% dos médicos de clínica geral e 70% dos especialistas saíram do país, a que se soma a degradação dos estabelecimentos de saúde após anos e anos de guerra e violência..É o Crescente Vermelho que, em colaboração com a Organização Mundial da Saúde, trabalha para mitigar a propagação do covid-19, o que inclui o fornecimento de testes do vírus ao Ministério da Saúde iraquiano. As medidas para tentar conter a propagação do coronavírus chocam também com uma economia de rastos..O governo iraquiano fechou as fronteiras e suspendeu os voos com o Irão, um dos países mais afetados pelo surto. Bagdad perde receitas de milhões de peregrinos iranianos que cruzam a fronteira para visitar as cidades sagradas xiitas. Também não é opção para os iraquianos tentarem procurar cuidados de saúde na teocracia: além das fronteiras, os hospitais iranianos estão assoberbados com doentes..Em termos económicos, o país continua dependente da produção petrolífera. A recente disputa entre russos e sauditas no âmbito da OPEP e a consequente baixa dos preços, a que se junta a quebra da procura da China, são motivos adicionais de preocupação.