Atendem um número desadequado de utentes, cada vez mais envelhecidos e com várias doenças, e perdem demasiado tempo com burocracias e tecnologias, que lhes roubam a atenção que gostariam de dar aos doentes. Atualmente, há 5668 médicos de família a exercer nos centros de saúde em Portugal. Embora o número de utentes sem médico atribuído tenha vindo a baixar, ainda existem cerca de 750 mil pessoas à espera, de acordo com o bilhete de identidade da reforma dos cuidados de saúde primários..Na véspera do Dia Mundial do Médico de Família, que se celebra neste domingo, damos-lhe a conhecer quatro histórias de profissionais que fazem a diferença no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Trabalham em contextos diferentes e enfrentam desafios distintos, mas têm em comum o amor por uma especialidade que lhes permite ver pessoas doentes e saudáveis, ter um contacto próximo com os utentes e acompanhá-los ao longo da vida..Uma missão para cumprir no interior do país.Ao gabinete de Joana Pessoa chegam todo o tipo de mimos: ovos caseiros, bolos acabados de fazer, arroz-doce ainda quente. Até já lhe colocaram um coelho congelado em cima da secretária. "Foi uma situação muito caricata. A meio da consulta, uma senhora tirou do saco um coelho criado por si para me oferecer." Situações relativamente normais no interior do país, de onde não faz intenções de sair. "Penso que tenho uma missão para cumprir aqui", diz a especialista em medicina geral e familiar, natural da Lousã..Joana Pessoa, de 32 anos, tirou o curso na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e fez o ano comum no Hospital de Santo António, no Porto, mas decidiu voltar à serra da Lousã para fazer o internato médico. Terminou por estes dias e foi desafiada pelo diretor executivo "a dar apoio em alguns sítios mais carenciados" até ao próximo concurso. Durante dois meses, divide-se entre Pedrógão, Castanheira de Pera e Tábua, o que implica viagens de 30 a 40 minutos para cada localidade, "sem trânsito e com vistas maravilhosas"..Não espera voltar a exercer numa cidade grande. "Há muito mais qualidade de vida no interior. Podemos fazer um trabalho mais interessante, porque as pessoas precisam mais de nós." Na sua opinião, nas zonas rurais "é possível fazer mais a diferença", pois é um contexto no qual "existem menos meios, menos recursos". Além disso, como não há um acesso rápido aos hospitais, os médicos de família têm "mais trabalho e lidam com patologias de diferentes gravidades", o que testa a sua "capacidade de desenrasque e de orientação dos doentes"..Para Joana Pessoa, a dificuldade em fixar médicos no interior do país poderia ser ultrapassada se estes "tivessem oportunidade de experimentar". "Infelizmente, as pessoas têm muito medo do desconhecido. Pensam que vão para o interior e não há lá nada." Mas não é assim. "É possível fazer um excelente trabalho nas zonas rurais, sem trânsito e sem a poluição da cidade." Além disso, prossegue, o contacto com as pessoas é mais íntimo. "Mantemos uma relação mais próxima com os utentes, que veem o médico como um grande apoio e uma forma de acesso aos cuidados de saúde.".Foi precisamente o contacto mais próximo com os utentes que a fez escolher medicina geral e familiar em detrimento de cirurgia geral, a outra opção que esteve em cima da mesa. Assim como "o facto de ver pessoas não só doentes mas também saudáveis - como grávidas e crianças - e de as acompanhar ao longo do tempo". Características que fizeram que esta especialidade se apresentasse "como um projeto de trabalho e de vida muito interessante". O que veio a confirmar-se: "Foi a escolha mais acertada. Não estou nada arrependida.".Prolongar a carreira após a aposentação.Para dar resposta à carência de médicos em Portugal, o governo autorizou o SNS a contratar até 400 médicos aposentados em 2018. Com 46 anos de serviço no setor público, António Branco, de 66, está disponível para fazer parte desse grupo e continuar a trabalhar após a aposentação, cujo requerimento será entregue neste mês. "A carga total de horário seria muito pesada, mas, havendo necessidade, estou disposto a aguentar mais algum tempo em part-time", conta o médico de família da Unidade de Saúde Familiar Santa Maria, em Tomar, lembrando a carência de médicos desta especialidade em algumas zonas, nomeadamente na região de Lisboa e Vale do Tejo, o que levou o governo a abrir 398 vagas nesta semana..Ao cansaço soma-se alguma falta de paciência, reconhece António Branco. "Não tem havido prudência na instalação de novos sistemas de informação, que supostamente deviam ser para facilitar a vida aos médicos", critica. Tirou o curso de Medicina numa época em que não havia computadores, mas adaptou-se. Contudo, lamenta, dispõe hoje de "17 plataformas informáticas, das quais sete ou oito são usadas diariamente, mas não falam umas com as outras e vão abaixo. Às vezes são um martírio". Um problema que afeta todas as gerações. "É um grande desafio cumprir tempos de consulta com tanta burocracia e sistemas informáticos", confirma Joana Pessoa..Outro desafio, conta António Branco, é responder às necessidades de uma população cada vez mais envelhecida. "Ter 1600 ou 1700 doentes hoje é diferente do que era há 15 anos." "Cada vez lidamos com situações mais trabalhosas, o que está relacionado com o aumento da esperança média de vida." Mas "o mais louco", assume, são os atuais sistemas de avaliação de desempenho. "Durante 30 anos, a administração pública não quis saber o que eu fazia ou como fazia. Mas nos últimos anos criaram-se centenas de indicadores para medir a atividade até à exaustão.".Ainda assim, António Branco não está "zangado o suficiente para querer ir embora". "Se voltasse ao princípio, voltava a querer ser médico de família", assegura. E o princípio foi aos 15 anos, quando decidiu que queria seguir medicina. Já no internato, descobriu "que não queria tratar só um órgão ou um sistema". Optou por medicina geral e familiar por ser aquela especialidade "em que o médico é mais médico de pessoas, mais completa e mais abrangente". Fazia tudo igual, sublinha, "mas já sabia que ia ter problemas com a informática"..António envolveu-se desde o final do curso em movimentos relacionados com a especialidade, nomeadamente na criação de uma associação de médicos de família, na reforma dos cuidados de saúde primários, na criação das USF. Também passou pela coordenação da sub-região de Santarém e por administrações hospitalares, mas nada lhe deu tanto prazer quanto atender utentes. "Ser médico é que me enche as medidas", refere..Jogador, médico e pai.Se o Benfica perder, Hugo Gaspar já sabe que os seus utentes sportinguistas e portistas não vão perder a oportunidade de fazer uma graçola. "Andam sempre a brincar comigo. Felizmente, os resultados são bons." O médico de família na USF Genesis, na Póvoa de Santo Adrião, é também capitão da equipa de voleibol do SLB e jogador da seleção nacional da mesma modalidade. E também é pai de duas crianças: uma menina com 6 anos e um rapaz de 3. Para conciliar os três papéis, conta, é preciso "muito esforço, sacrifício e preparação". E "compreensão da família", que vê Hugo, 37 anos, disponibilizar "às vezes 50 horas por semana à medicina", quase três horas diárias para treinos e ainda o tempo dos jogos. "São o grande pilar."."Descoberto" a jogar voleibol de praia aos 15 anos, já teve de escolher entre o desporto e a medicina. No terceiro ano da faculdade, foi jogar para Itália, onde foi campeão nacional. Quando lhe ofereceram contrato por vários anos, questionou se podia manter-se fora do país, mas disseram-lhe que poderia perder a vaga na universidade. "Tive medo e abdiquei da carreira internacional." Já no final do curso, deparou-se com uma grande questão: como conciliar a carreira de médico e a de atleta? A medicina geral e familiar permitiu manter as duas..E dá muito jeito ter um médico numa equipa. "Quase todos os meus colegas já foram consultados por mim em algum momento", reconhece. Em caso de lesão, o médico - o único jogador da equipa que não é profissional - é dos primeiros a ajudar. Tal como quando se apercebe que há algum problema nas bancadas. "Também já tive de intervir para ajudar adeptos." Já no consultório, aproveita o facto de ser atleta para dar conselhos sobre atividade física..Um italiano entre utentes de 70 nacionalidades.Não é português nem espanhol, portanto, assumem os utentes, é "médico de leste". Fabrizio Cossutta, 33 anos, vem "efetivamente de leste em relação a Portugal", mas de Itália. "A maioria das pessoas não sabe o meu nome." Mas isso não o chateia. Na USF Almirante (Lisboa), onde exerce medicina geral e familiar, há utentes de 70 nacionalidades, o que "é um desafio, porque alguns não falam inglês" e os serviços de tradução têm de ser agendados - e as situações urgentes não marcam hora..Frabrizio sabe o que é ter problemas com a língua portuguesa. Quando entrou no avião, em 2009, para viajar para Portugal ao abrigo do programa Erasmus, não percebeu nada do que era dito. "E pensei: vai ser engraçado." No primeiro mês, não entendia nada do que ouvia, mas "depois há um clique"..Mas, afinal, o que o trouxe para cá? "A curiosidade", conta. "Em Itália, falava-se que Portugal tinha equipas de futebol muito boas, mas pouco mais. Era um país da Europa pouco falado." Logo no primeiro dia em Portugal, Fabrizio percebeu "que havia qualquer coisa de mágico" e que "ia ficar muito tempo". Voltou a Itália para fazer o sexto ano de Medicina e regressou a Portugal para o ano comum, onde já tinha a atual companheira à sua espera. Seguiu-se o internato em Benfica, que terminou em 2017..Fabrizio não faz intenções de regressar a Itália tão cedo. Diz que "Portugal é um país muito bonito e vive-se bem". Tem um clima melhor do que o norte de Itália, de onde é natural, e as pessoas "são mais calorosas". Mas nem tudo é bom. "As pessoas são muito pessimistas. Para os portugueses, as coisas nunca estão bem e nunca vão estar bem. É uma pena, porque há muitas coisas boas, entre as quais o SNS.".Essa é uma das razões pelas quais há muitos italianos licenciados em Medicina a querer trabalhar em Portugal. Em primeiro lugar, frisa, o sistema de acesso é mais justo. "Na minha altura, não havia um exame de acesso à especialidade em Itália. O sentido de justiça atrai-nos", explica. Além disso, Fabrizio considera que Portugal "está bastante mais adiantado" nos cuidados de saúde primários quando comparado com Itália, "onde tradicionalmente o médico de família trabalha sozinho, como se fosse um médico particular"..Apaixonado "pela Biologia e pelo corpo humano", Frabizio tinha "uma imagem muito romântica do que é ser médico", que chocou com "a exigência, a sobrecarga horária e emocional" a que os profissionais estão sujeitos. Faltam "estruturas que permitam o bem-estar" dos profissionais, que se confrontam "com um número desadequado de utentes". Daí que "se fale tanto em burnout"..Apesar de "gostar muito" do que faz, Fabrizio admite que precisa de "ter muita atenção para não ir abaixo", já que tem "colegas a passar por situações muito complicadas". Para manter o equilíbrio, tenta "aproveitar o pouco tempo livre" para fazer desporto, manter-se ativo na música e para se dedicar à sua horta. "Tento afastar-me da parte da medicina e dedicar-me a áreas que permitam ter equilíbrio e paz de alma."