Os Boinas. As modas da Adega do Lelito ganharam asas
As gargantas começaram a ser afinadas logo no aeroporto de Lisboa. Sentados à mesa, enquanto esperavam saber qual a porta de embarque para Praga, cantavam em alto e bom som: "Já cá está o tiro-liro-liro, tiro-liro lé/ Já cá está o tiro-liro-liro, tiro-liro ló/ Já cá está o tiro-liro-liro/ Meu amor, tiro-liro-liro abre a porta... oh branca flor."
Num espaço apinhado de turistas, não faltava quem quisesse gravar o momento no telemóvel e em poucos instantes formou-se uma plateia para escutar e aplaudir Os Boinas, nome deste grupo de cantadores de Ferreira do Alentejo que foi atuar na passada semana à República Checa, a convite do festival Terras sem Sombra.
A ideia de formar um coro nasceu em 2014, ano da elevação do cante alentejano a Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO. Um grupo de amigos que frequentava a Adega do Lelito (hoje museu Casa do Vinho e do Cante, em Ferreira do Alentejo), começou a falar nisso e, definido o nome, pôs o plano a andar. Poucos meses depois chegou o primeiro concerto, a 29 de maio de 2015, na V Feira do Talego e Avental, em Ferreira. Após a estreia, o ensaiador Fernando Candeias foi à página de Facebook do grupo escrever: "Depois de analisar com alguma calma todos os detalhes é muito simples... fomos fantásticos. Tenham presente que a nossa imagem será para muitos a imagem da nossa terra e das nossas gentes."
Esse foi o pontapé de saída para as primeiras participações em feiras e festas populares da zona. Depois, logo em agosto, chegaram à casa dos portugueses através da televisão, quando atuaram em direto no programa Verão Total, da RTP 1, transmitido a partir da Herdade do Vale da Rosa, em Ferreira. A partir daí, apareceram os convites para cantar noutras regiões do país e também outro tipo de desafios como participações especiais em concertos da banda Nuno Barroso & Além Mar ou atuações em empresas como a Delta. Os Boinas estavam a ganhar nome no circuito do cante alentejano.
Contudo, a progressão rápida, num concelho onde existem mais 11 coros de cante, não se fez sem dores de crescimento. "No princípio, a principal dificuldade foi o facto de praticamente ninguém ter algum tipo de formação no cante ou noutro tipo de música. Teve de ser aos poucos. Fomos harmonizando as vozes, ao mesmo tempo em que íamos aprendendo as modas, decorando as letras, o que também levou o seu tempo. Hoje o mais difícil é conseguir juntar o pessoal quer para os ensaios [sempre à sexta-feira, às 21.30] quer para alguns espetáculos porque quase todos temos a nossa profissão e há alturas em que não é possível conjugar as duas coisas", admite o ensaiador Fernando Candeias, profissional de seguros.
Em 2018, o grupo entrou no radar do Terras sem Sombra, festival que tem por objetivo "internacionalizar o Alentejo como destino privilegiado de arte, cultura e natureza", através da realização de concertos de música clássica e erudita por toda a região, além de conferências e visitas guiadas focadas na preservação do património e da biodiversidade - neste ano cumpre a sua 16.ª edição e passará por 13 concelhos do Alentejo. E que melhor maneira de internacionalizar o Alentejo do que levar o cante a outros países? Foi isso que o Terras sem Sombra pensou e, em janeiro de 2019, ano em que os EUA foi o país convidado, levou até Washington o Rancho de Cantadores de Aldeia de São Bento. Depois, em fevereiro, foi a vez de Os Boinas viajarem até Espanha, onde atuaram, por exemplo, no Anfiteatro Romano de Mérida. Agora, o destino foi Praga, capital da República Checa, país convidado desta edição do Terras sem Sombra.
Fernando Candeias, 48 anos, é o líder deste grupo, que lhe permite dar expressão a uma paixão de criança: a música. "O cante faz parte da minha vida desde sempre. Sou natural de Faro do Alentejo, no concelho de Cuba, e essa é uma aldeia onde se canta a toda a hora, nas tabernas, nos cafés, e eu sempre fui cantando desde muito cedo, de forma espontânea", conta ao DN, explicando que Os Boinas, apesar de uma agenda cada vez mais preenchida, continuam "a ser um grupo de amigos, embora hoje já com um pouco mais de responsabilidade". Descreve depois como ganham a vida os elementos do coro: "Temos de tudo um pouco, desde estudantes a reformados, motoristas, um pastor, um pintor, um contabilista, um engenheiro, pessoal que trabalha na agricultura, todos unidos pelo amor ao cante e ao Alentejo."
O grupo junta também cantadores de várias gerações, dos 9 aos 64 anos, garantindo assim uma maior diversidade de timbres de voz. O mais novo é Luca Correia, que nasceu há nove anos na Suíça e veio para Ferreira do Alentejo há dois. Depois de ver o grupo atuar numas festas populares quis juntar-se aos Boinas. "Foi uma escolha dele e eu encorajo-o a fazer aquilo de que gosta", diz mãe, Liliana Correia, que acompanha o benjamim do coro a Praga. E como é que um miúdo consegue fazer ouvir a sua voz no meio de tantos adultos? "Treino em casa", explica Luca, antes de dizer qual a sua moda favorita: Menina Florentina.
Já a caminho da capital checa, os cantadores começam a agitar-se na parte central do avião da TAP, desafiados pelo autarca de Ferreira do Alentejo, Luís Pita Ameixa. Queriam voltar a cantar, mas antes disso precisavam da autorização do comandante do voo. A confirmação chegou através da voz de uma hospedeira e foi comunicada a todos os passageiros: "Temos a bordo um grupo de cante, Património Mundial da Humanidade, que vai cantar uma canção." "Não é canção, é moda", logo foi corrigida. E não foi uma, mas sim duas modas em pleno ar, pois a tripulação pediu um encore para poder gravar um vídeo, o que levou mesmo os cantadores a vestir os seus capotes tradicionais.
Ricardo Santana, 37 anos, de Portalegre, faz o ponto (trecho a solo, a dar o tom) numa das modas. Estudou no Algarve, onde conheceu a futura mulher, também ela alentejana. Ainda viveram em Lisboa, mas o apelo do regresso tornou-se mais forte. "Decidimos que à primeira oportunidade que tivéssemos íamos voltar ao Alentejo, fosse por onde fosse."
Licenciado em Engenharia do Ambiente e diretor de exploração na AGS (companhia especializada em manutenção e gestão dos ciclos da água), Ricardo viu a oportunidade chegar quando a empresa lhe permitiu escolher onde queria ficar sedeado a controlar a operação no Baixo Alentejo. Ferreira, além de ser a terra da mulher, tinha a vantagem geográfica de ficar bem no centro da região. Já instalado na vila do distrito de Beja, foi ver aquela que era a segunda atuação ao vivo de Os Boinas e, duas semanas depois, foi ao encontro do grupo "para um ensaio, para ver se prestava, se me acolhiam". "Foi aí que o cante entrou na minha vida", conta Ricardo, um dos poucos elementos do coro que têm alguma formação musical - 12 anos de Conservatório, tocou violino, viola clássica, fez parte de coros juvenis e de algumas "bandas que nunca deixaram de ser de garagem".
Apesar dessa experiência, reconhece que os primeiros contactos com o cante lhe trouxeram algumas dificuldades: "Lembro-me que, por exemplo, estive muitos meses até decorar e enquadrar completamente a letra da moda do Pregão do Almocreve. Por outro lado, o facto de não existir um instrumento que conduza o ensaio também tornou mais difícil enquadrar os tons e aprender essas músicas só de ouvido."
Diz que o que encontrou no grupo vai muito para além da música. "Os Boinas entraram na minha vida numa altura em que tinha mudado para um lugar onde não conhecia praticamente ninguém a não ser a minha família. Representam para mim a formação de um grupo de amigos, de irmãos. Foi o que me permitiu realizar um gosto pessoal e, ao mesmo tempo, estar com excelentes pessoas à minha volta quando mudei de cidade."
No dia do concerto sente-se o nervoso miudinho. Afinal, este é talvez o mais importante espetáculo da curta carreira do grupo, para mais realizado num palco histórico e solene como o convento gótico de Santa Inês da Boémia, que faz parte da Galeria Nacional de Praga.
Antes do ensaio são distribuídos copos de água pelos cantadores. Quando sobem ao palco, o ensaiador trata de colocar o grupo em posição: os mais baixos à frente, os mais altos atrás, todos bem juntinhos e de braços cruzados. Cantam uma moda e combinam repetir só a segunda parte, o que começam a fazer de imediato. É então que se ouve tocar brevemente o telemóvel de um cantador. Trocam-se apenas uns olhares, mas a moda segue até ao fim. O ensaio tem de ser curto, pois ainda vão buscar os capotes ao hotel e falta pouco mais de uma hora para o concerto.
A sala está bem composta. José António Falcão, diretor-geral do Terras sem Sombra, apresentou o festival em Praga e de Portugal viajou uma comitiva que juntava autarcas do Alentejo e outras entidades regionais e culturais. O governo checo também se fez representar no espetáculo, pela vice-ministra da Cultura, Petra Smolikova, assim como o Estado português, através do seu novo embaixador na República Checa, Luís de Almeida Sampaio. No momento decisivo tudo corre bem: Os Boinas cantam oito modas, sob um enorme silêncio, e acabam a atuação a ser aplaudidos de pé. Sara Fonseca, diretora executiva do festival, dirige ao grupo palavras de encorajamento: "Estiveram lindamente. Estão cada vez melhores e no bom caminho." O teste foi ultrapassado com distinção.
No público estão também alguns portugueses a residir em Praga, como Sofia Sousa, 31 anos, atriz, assistente cultural e professora de Teatro no Instituto Camões, que conta atualmente com cerca de 140 alunos a aprender português na República Checa. Natural de Lisboa, com formação musical (estudou violoncelo no Instituto Gregoriano), recorda ao DN que em 2014, quando fazia parte do Coro Juvenil do Teatro São Carlos, chegou a participar no festival Terras sem Sombra, num concerto em Sines em que acompanhou a meio-soprano Teresa Berganza.
Hoje, o dia também serviu para matar saudades de casa: "A atuação d'Os Boinas foi incrível! Sentia-se que o público estava fascinado com o que estava a ouvir e a apresentação do grupo coral com os trajes alentejanos dava um grande impacto visual. Fiquei muito emocionada, com saudades e orgulhosa de Portugal. O cante alentejano liga-nos às raízes, ao tradicional. É essencial que continue a ser cantado para que a nossa herança cultural não se perca com o tempo."
Fernando Candeias diz ter consciência das emoções que o cante alentejano desperta no público e que, até por isso, o trabalho de aperfeiçoamento é constante. "Sinto que demos em Praga um passo em frente naquilo que é a nossa qualidade enquanto grupo", garante. O ensaiador lembra ao DN o momento em que percebeu que o projeto estava a tornar-se mais sério: "Acho que foi ao fim de três anos, quando dei por mim e tinha 35 homens a cantar. Vi aquilo e disse assim: 'Ai meu Deus, afinal isto vai mesmo andar para a frente, tem mesmo que andar.'" Os convites sucediam-se e foi preciso fazer ajustamentos, pois o número elevado de cantadores tornara-se um problema: "Era o espaço que era pouco, era a quantidade de comida que tinham de fazer, eram vários fatores que tinham de ponderar quando nos convidavam", assume. Hoje são 24 e normalmente, nos concertos, sobem ao palco 15/16 cantadores (a Praga foram 18).
E agora, o que se segue? "Temos a ideia de gravar o nosso trabalho. Para já, o facto de participarmos no Terras de Sombra tem aberto outras portas. Só nos últimos dias recebemos vários contactos. Vamos ver no que vai dar."
O regresso a casa fez-se assim com "orgulho" e uma sensação de "missão cumprida", como também sublinha José Tintim, 45 anos, que ganha a vida como pastor e está no grupo desde a fundação. Já conhecia algumas modas de ouvir o pai cantar, mas só com Os Boinas entrou pela primeira vez num coro. Trabalha todos os dias "pelo menos oito horas", sem folgas ou feriados, a guardar "mais ou menos umas 500 ovelhas". Não se queixa. "Estou acostumado. Até estranho quando não é assim", diz. Para vir a Praga, teve de deixar o rebanho entregue ao patrão. O problema é que este tem mais dificuldade em trabalhar com o Fadista, a Peúga e a Carota, os três cães pastores que ajudam José no dia-a-dia. A ocasião merecia o sacrifício: não é só a primeira vez que o pastor vem a Praga; é também a primeira em que anda de avião. "Até agora está correndo bem", ri-se, já no voo de regresso a casa, olhando pela janela a neve que cobre os Pirenéus.
José levanta-se do seu lugar, já de capote vestido. Era altura de voltar a cantar para os passageiros do avião. O cante de Os Boinas nasceu entre rodadas de tinto na Adega do Lelito, mas entretanto ganhou asas e agora cruza a Europa a mostrar a outros povos pedaços genuínos da cultura alentejana. "O que se está a passar hoje é um sonho que todos partilhávamos. Queríamos levar o nosso Alentejo, a nossa cultura, longe. E estamos a conseguir", conclui o cantador Ricardo Santana.
A programação da 16.ª edição de festival Terras sem Sombra, que neste ano contará com iniciativas gratuitas em 13 concelhos do Alentejo, arranca já hoje na Vidigueira. O primeiro concerto da temporada musical vai realizar-se às 21.30 na Igreja de São Cucufate, em Vila de Frades, e está a cargo do Tiburtina Ensemble, coro feminino da República Checa (país convidado desta edição do festival). Liderado pela soprano e harpista Barbora Kabatkova, o grupo é especializado em canto gregoriano e polifonia medieval e vai interpretar exclusivamente obras de Hildegarda de Bingen, compositora do século XII.
Além da música, a programação gratuita do festival tem sempre iniciativas ligadas à divulgação do património e à promoção da biodiversidade. Para este fim de semana estão previstas visitas guiadas ao Sítio Arqueológico de São Cucufate (sábado, 15.00) e aos laranjais do concelho (domingo, 09.30).
Depois da Vidigueira, o festival segue para Barrancos (1 de fevereiro), Mértola (15 de fevereiro), Arraiolos (29 de fevereiro), Viana do Alentejo (21 de março), Beja (4 de abril), Ferreira do Alentejo (18 de abril, com concerto de Andión Fernández e Alberto Urroz no lagar da Herdade de Marmelo, em Figueira dos Cavaleiros), Castelo de Vide (2 de maio), Sines (16 de maio), Alter do Chão (30 de maio), Santiago do Cacém (27 de junho) e, a fechar, Vila Nova de Milfontes, a 11 de julho, onde atua o ensemble checo Musica Florea. Pelo meio há ainda um concerto-surpresa: a única certeza é que será no dia 13 de junho, estando em segredo o local e o artista convidado.
Do cartaz do festival (que além de checos e portugueses também traz músicos espanhóis, húngaros e belgas) fazem ainda parte nomes como o violoncelista Pedro Bonet, o contratenor José Hernández Pastor, a flautista Monika Streitová e a pianista Ana Telles, o ensemble La Ritirata, o Kállai String Quartet, o grupo vocal Utopia Ensemble, o Clarinet Factory, o Smetana Trio e o ensemble português Cupertinos, que se dedica quase em exclusivo à música portuguesa dos séculos XVI e XVII.
O jornalista viajou a convite do festival Terras sem Sombra.