Com a morte de dois recrutas dos Comandos já em julgamento e o furto e recuperação de armas em Tancos sob investigação, vem aí um terceiro processo judicial inédito: sentar no banco dos réus um ex-chefe do Estado-Maior da Marinha e o atual comandante naval, por ações praticadas à frente do ramo..No centro do processo, arquivado em primeira instância e como pedido pelo Ministério Público (MP), está a "intencionalidade subjacente na elaboração e publicação" de um direito de resposta da Marinha, "no DN de 22 de outubro de 2016, gravemente ofensiva da honra e consideração" do vice-almirante Cunha Lopes "quer objetiva quer subjetivamente", declarou o Tribunal da Relação..O caso envolve o almirante na reforma Macieira Fragoso, então chefe do Estado-Maior da Marinha, o vice-almirante Gouveia e Melo, chefe de gabinete do primeiro (então no posto de contra-almirante), e o vice-almirante Cunha Lopes, então já na reserva depois de exonerado - sob proposta de Macieira Fragoso - em janeiro de 2015 pelo ministro da Defesa..Num acórdão datado de setembro, a Relação remeteu os autos à 1.ª instância "para pronúncia dos arguidos Luís Macieira Fragoso e Henrique de Gouveia e Melo, pelo crime de difamação agravada" devido aos argumentos com que, no referido direito de resposta, procuraram explicar as razões do pedido de exoneração do então diretor-geral da Autoridade Marítima e comandante-geral da Polícia Marítima, Cunha Lopes..O direito de resposta da Marinha foi usado a propósito de uma notícia publicada na véspera pelo DN, relativa à exoneração por Macieira Fragoso de um segundo vice-almirante, Rocha Carrilho, sem fundamentar as razões da decisão - a exemplo do que sucedera com Cunha Lopes..A Relação entendeu deixar de fora o então porta-voz da Marinha, comandante Paulo Rodrigues Vicente, porque "ficou por se perceber o seu eventual grau de envolvência, comparticipação e intencionalidade" no direito de resposta que assinou. "Nada mais nos autos se indicia acerca de algum interesse pessoal na elaboração do texto e na fabricação do mesmo, senão apenas que teria agido por ordens e instruções [de Macieira Fragoso e Gouveia e Melo] e nada mais", concluiu a Relação.."Entendemos que [Cunha Lopes] tem parcialmente razão, de facto e de direito, na imputação criminal dirigida" contra o então chefe da Marinha e respetivo chefe de gabinete - que seria depois promovido apesar de arguido em processos-crime..As posições da Relação tiveram duas perguntas como ponto de partida: "Os arguidos, em conjugação de esforços, tiveram intenção de difamar [Cunha Lopes] com factos que sabiam ser falsos através da publicação jornalística a 22/10/16 e sob a forma de exercício de 'direito de resposta' a um artigo publicado na edição" do dia anterior? Ou, "ao invés, esses factos eram de boa-fé tidos pelos arguidos como verdadeiros?".A Marinha confirmou na sexta-feira ao DN que foi avisada pelo MP sobre a decisão de pronunciar o comandante naval naquele processo-crime. Mas "não vamos pronunciar-nos", acrescentou o porta-voz do ramo, comandante Pereira da Fonseca..Fica assim por saber, entre outras questões, se a Marinha abriu ou vai abrir algum processo disciplinar ao vice-almirante Gouveia e Melo, dado estar acusado num processo criminal da violação dos seus deveres militares (como responsabilidade e lealdade) no exercício de funções..O que ficou a saber-se é que, por não ter sido reconduzido como chefe da Marinha e depois nomeado chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (cargo agora ocupado pelo seu sucessor), evitou-se a ida a tribunal do principal chefe militar português..Impressões digitais.Cunha Lopes avançou para tribunal após ler o direito de resposta da Marinha em que, de forma oficial, eram usadas justificações citadas quatro meses antes pelo Correio da Manhã - atribuídas a fontes não identificadas da Marinha - em notícias com os títulos "Marinha trava 'conspiração de almirantes'" e "Almirante investigado por negócios suspeitos" (em que Cunha Lopes era um dos visados e mesmo o único no segundo dos artigos)..Em pano de fundo na exoneração de Cunha Lopes, proposto duas vezes no final de 2013 para chefe da Marinha e cujo veto pelo Presidente Cavaco Silva levaria à escolha de Macieira Fragoso, estava a guerra aberta por causa da recusa de Cunha Lopes em aceitar que o ramo naval das Forças Armadas interferisse nas estruturas - civis - da Autoridade Marítima Nacional e da Polícia Marítima..No direito de resposta que fez publicar no DN, a Marinha justificou o pedido de exoneração de Cunha Lopes daqueles cargos "por, entre outros atos ainda sob investigação, se ter deslocado ao Brasil num ato oficial, acompanhado de um empreiteiro que foi apresentado à delegação brasileira como fazendo parte da sua comitiva [e ao qual] foram contratadas obras de alguns milhões de euros, em adjudicação direta, pela estrutura que este vice-almirante dirigia"..Cunha Lopes, perante isto e porque a história da sua ida ao Brasil com o dito empreiteiro já tinha sido publicada no Correio da Manhã, perguntou à Marinha se havia algum processo de investigação contra si, quem decidira instaurá-lo e que entidade a titulava - dado que "nunca foi constituído arguido em qualquer processo disciplinar ou criminal nem objeto de qualquer notificação para qualquer tipo de procedimento"..Cunha Lopes lembrava ainda, nesse requerimento, que o chefe da Marinha não estava legalmente habilitado a fazer investigações e que o despacho da sua exoneração não indicava "qualquer fundamentação"..As respostas que a Marinha deu ao vice-almirante Cunha Lopes e assinadas pelo então chefe de gabinete de Macieira Fragoso, contra-almirante Gouveia e Melo, diziam que no citado direito de resposta ao DN era "feita uma menção a uma investigação" das Finanças que, num relatório preliminar não apresentado pelos arguidos em tribunal, "concluiu existir uma expressiva concentração" de contratos celebrados "sem concurso [e] por ajuste direto" em 2012-13 ao empreiteiro que tinha acompanhado Cunha Lopes ao Brasil..A citada concentração excessiva de contratos não indicia, à partida, qualquer ilícito criminal porque os ajustes diretos estão previstos no Código da Contratação Pública. Donde a resposta dada pela Marinha a Cunha Lopes deixava de colocar a questão no plano criminal para o situar no foro administrativo..Para a Relação, tudo somado, "há pois evidências fortes em como a exoneração [de Cunha Lopes] dificilmente estaria ligada ao que na notícia [leia-se direito de resposta ao DN] se refere mas sim a outro tipo de divergências internas entre altas patentes dentro da Marinha portuguesa"..Mais, adiantou a Relação, "há ainda sinais fortíssimos de como, mesmo que fosse verdade o imputado [a Cunha Lopes], o mesmo nunca foi ouvido nem achado sobre a gravidade da matéria, numa flagrante violação dos seus direitos de defesa"..Na fase de inquérito na primeira instância, a Marinha informou que a exoneração de Cunha Lopes "não foi precedida de processo de averiguações ou disciplinar"..Cunha Lopes contrapôs perante o tribunal que a alegada investigação das Finanças tinha sido uma mera auditoria de rotina, que o Tribunal de Contas não suscitara quaisquer dúvidas, que todos os processos em causa tinham sido decididos com base em pareceres técnicos e jurídicos - e, ainda por cima, que muitos tinham sido aprovados pelo próprio Macieira Fragoso..Tudo somado, além de serem "redondamente falsos", os argumentos publicados no DN eram "gravemente ofensivos da sua honra, consideração e crédito social", além de o atingirem na sua "isenção, probidade, lealdade, disciplina, zelo e diligência no exercício de funções" enquanto oficial da Marinha, enfatizou Cunha Lopes perante o MP e o tribunal..Estranhamente, sabendo-se que um comunicado oficial ou um direito de resposta de um ramo das Forças Armadas vincula expressamente o seu responsável máximo, o MP e o tribunal de primeira instância entenderam não ter ficado claro de quem era a autoria ou quem escreveu o texto publicado no DN, "se os arguidos o fizeram em conjunto, se o mesmo foi feito com aquela redação por ordem [de Macieira Fragoso] ou por iniciativa" do porta-voz - razões que os arguidos também apresentaram junto da Relação..Mais, para o MP e o tribunal de primeira instância não ficou claro "qual foi a contribuição para o texto ou que intervenção teve" Gouveia e Melo "na sua elaboração e decisão sobre a sua publicação"..Os "superiores interesses da Marinha".O advogado Garcia Pereira, no recurso para o Tribunal da Relação, juntou aos pontos já invocados na primeira instância uma explicação: "Tal conduta [dos arguidos] insere-se num processo e numa estratégia, já prolongados no tempo, de perseguição" a Cunha Lopes - "pelo facto de este defender, contra os fanáticos defensores dos 'superiores interesses da Marinha' e de teorias como as do 'duplo uso', o primado da lei e da Constituição e a não confusão da Autoridade Marítima Nacional com um mero departamento ou setor da Marinha"..Garcia Pereira contrapunha ainda o teor do direito de resposta da Marinha no DN com as explicações dadas dias depois a Cunha Lopes pelo gabinete do chefe da Marinha, ao ser formalmente questionado sobre se havia ou tinha existido algum processo contra ele..A Marinha continuava então a assumir-se simultaneamente como ramo militar e autoridade civil, invocando alguns dos seus responsáveis, entre outros argumentos, que o Tribunal Constitucional nunca declarara a inconstitucionalidade da intervenção dos militares sobre os cidadãos sem terem competências policiais ou poderes de autoridade outorgados pela lei para esse efeito..No outono de 2011, praticamente 30 anos após a revisão constitucional de 1982 que determinou a subordinação dos militares ao poder civil com a inerente proibição de atuarem em território nacional com poderes próprios fora do estado de sítio, a Marinha propôs formalmente ao recém-empossado governo do PSD-CDS que lhe fossem atribuídas todas as competências do Estado no mar e sem invocar uma única vez a existência da Constituição..Cunha Lopes, enquanto diretor-geral da Autoridade Marítima e comandante-geral da Polícia Marítima, rejeitou desde a posse o que entendia como interferência ilegal e ilegítima dos militares da Marinha naquelas estruturas civis e com a qual os sucessivos ministros da Defesa tinham convivido até aí - e apesar de vários deles serem juristas.