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17 AGO 2019
17 agosto 2019 às 00h12

Por que razão o sarampo está a aumentar em vez de ser erradicado?

Há 13 anos que não havia tantos casos no mundo, alerta a OMS: de janeiro até final de junho, 182 países notificaram 364 808 casos. A falta de vacinação, mesmo em países desenvolvidos, é o principal problema.

Graça Henriques

O que entristece Graça Freitas, diretora-geral da Saúde, é que o sarampo reúne os critérios para ser erradicado em todo o mundo e, em vez disso, está a subir e há registo de mortes. As campainhas da Organização Mundial de Saúde (OMS) voltaram a soar no início desta semana: desde 2006 que não havia tantos relatos - de janeiro até final de junho, 182 países notificaram 364 808 casos. O ano ainda só vai a meio e este é apenas um relatório preliminar, pelo que a OMS acredita que serão bastantes mais.

Os critérios de que Graça Freitas fala são dois: o facto de o ser humano ser o único hospedeiro do vírus e existir uma vacina eficaz e segura que permite com elevadas taxas de cobertura a imunidade que chegue ao ponto de impedir a transmissão do vírus. E depois é necessário que durante três anos não haja qualquer caso no planeta, como aconteceu com a varíola nos anos 1980.

Se os critérios científicos estão conseguidos, porque é que o mundo não consegue livrar-se do sarampo? A razão é simples: porque as pessoas não se vacinam. Por opção, por complacência e por acharem que já não é preciso e porque, em alguns países, não há condições que levem à vacinação em massa, ou porque enfrentam crises económicas e sociais ou conflitos armados. Como é sobretudo o caso do continente africano e agora de alguns países da América Latina.

A doença nos países desenvolvidos

Mais estranho é que países desenvolvidos, nomeadamente da União Europeia, como França, Alemanha ou Itália, se vejam a braços com grandes surtos - nos últimos dois anos, segundo Graça Freitas, morreram na Europa alargada aos 53 países da OMS cerca de 40 pessoas vítimas de sarampo, uma doença altamente contagiosa que é aparentemente inócua, mas que é letal.

Todo o continente americano já teve o estatuto de eliminação da doença - Portugal tem desde 2012 - mas os surtos de sarampo voltaram: o Brasil, nomeadamente o estado de São Paulo, debate-se com cerca de mil casos, o que levou as autoridades sanitárias a desenvolver uma campanha de vacinação de bebés dos 6 aos 11 meses e de jovens de 15 a 29 anos. Suspeita-se de que estes últimos não tenham levado a segunda dose da vacina - a VASPR (sarampo, rubéola e papeira) que é ministrada até aos 5 anos. A primeira dose deve ser dada até aos 12 meses.

Paula Palminha, coordenadora do Laboratório Nacional de Referência de Doenças Evitáveis pela Vacinação, do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), explica que o Brasil foi dos primeiros países a erradicar a doença, depois de uma grande campanha de vacinação em massa, mas que deve ter criado várias bolsas suscetíveis. E que a situação pode ter-se agravado por causa da Venezuela, devido ao colapso do sistema de saúde, que começou a exportar a doença para o país vizinho na fronteira a sul.

À não vacinação por razões económicas e políticas a especialista acrescenta os grupos antivacinas (sem grande expressão em Portugal). A decisão de não vacinar leva à existência de países com bolsas suscetíveis que, perante o surgimento de casos importados, acabam por acolher surtos. Para que haja imunidade de grupo, a OMS recomenda a vacinação de 95% da população.

Na Europa, sublinha Paula Palminha, tanto em França como na Roménia, a doença é endémica. A Alemanha é considerada um país de circulação interrompida. O aparecimento de surtos na Europa levou mesmo à obrigatoriedade da vacina em alguns países.

Ainda no continente americano, Nova Iorque viu-se recentemente obrigada a tomar medidas coercivas perante o surto potenciado pela comunidade de judeus ortodoxos de Brooklyn, que não se vacinam. Tornou obrigatória a vacinação de adultos e crianças que vivem nessa área e estipulou multas até mil dólares para quem recuse ser vacinado.

Mais uma vez Graça Freitas lamenta que o sarampo esteja a aumentar no mundo, quando se esteve tão perto de o erradicar. "Na Europa e nos Estados Unidos estamos perante casos de cidadãos completamente complacentes, que acham que está tudo resolvido, que o vírus já não se apanha. Mas os últimos anos têm vindo a provar que mesmo nos países ricos nada pode ser dado como adquirido." A globalização, a facilidade moderna de viajar, também abre as portas ao vírus. E sempre que haja bolsas de não vacinados, pode haver surtos.

"É uma doença associada à mobilidade dos cidadãos", que pode desenvolver-se num contexto de cobertura vacinal reduzida ou bolsas suscetíveis, diz, por seu turno, Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública.

"Vacinação é património nacional"

Graça Freitas faz questão de esclarecer que em Portugal - onde não há casos autóctones e daí gozar do estatuto de eliminação - a atitude da população face à vacinação é diferente: no ano passado registou-se a taxa de cobertura vacinal mais alta de sempre, na ordem dos 98%. O que atribui ao sobressalto vivido com as notícias sobre o aumento do sarampo no nosso país - em 2018 registaram-se 162 casos e em 2017 houve a morte de uma jovem de 17 anos que não estava vacinada.

Até mesmo na segunda dose, os portugueses têm registado um comportamento diferente e as taxas de cobertura passaram a ser semelhantes. O que leva a diretora-geral da Saúde a afirmar: "A vacinação é um património nacional."

Vacinas eficazes pelo menos 15 dias antes de viajar

E embora em Portugal o vírus não circule, garante, não significa que não haja casos importados: desde o início do ano, até 14 deste mês, havia registo de nove situações. No top 3 dos países com maior número de casos em 2019 está um europeu - a Ucrânia, um Estado que nos últimos anos se viu a braços com conflitos armados e instabilidade política. Em primeiro lugar está a República Democrática do Congo, seguida de Madagáscar.

Nos países com os principais surtos em curso encontra-se Angola, com o qual Portugal tem fortes laços, e a Tailândia, para onde muitos portugueses viajam de férias. E há o Brasil, a França e a Alemanha, que também proporcionam o trânsito de migrantes de lá para cá. O que leva a que quem não está vacinado com a VASPR fique desprotegido.

Para quem vai viajar, sobretudo para estes destinos, Graça Freitas recomenda a vacinação. Mas deixa um alerta: as vacinas não podem ser ministradas na véspera, só terão efeito se tomadas, pelo menos, 15 dias antes. O apelo estende-se, por exemplo, aos imigrantes brasileiros que, estando cá protegidos pela imunidade de grupo, se regressarem ao seu país ficam vulneráveis.

Vacinação obrigatória fora dos programas políticos

A vacinação obrigatória foi discutida no Parlamento no final do ano passado por causa de uma petição popular, mas os deputados não deram seguimento ao assunto. A vacinação mandatória parece não recolher adeptos em Portugal, nem entre a generalidade dos políticos nem entre cientistas. Por uma questão de liberdade pessoal, argumentam uns, mas também pelo estatuto de erradicação da doença de que o país goza desde 2012 e da taxa de cobertura vacinal que ultrapassa os 95% recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), argumentam outros. No ano passado, contudo, registaram-se 162 casos e em 2017 houve uma morte.

Falar do assunto é agora uma espécie de tabu para os partidos, uma vez que a legislatura se aproxima do fim, com as eleições legislativas de 6 de outubro. Mas uma coisa é certa: os programas eleitorais que já estão disponíveis (PSD, PS e PCP) não mencionam o assunto.

os comunistas tocam ligeiramente no tema, para defender "o reforço do Programa Nacional de Vacinação" e "o desenvolvimento de programas de avaliação e controlo de doenças emergentes e de combate das doenças infecciosas". Não fala na obrigatoriedade.

O mais longe que os partidos foram nesta matéria foi em maio de 2017, quando o CDS apresentou um projeto de resolução que recomendava o impedimento da matrícula aos alunos que não tivessem a vacinação em dia. Só o PSD votou ao lado dos centristas.

E, antes de terminar a sessão legislativa, o PSD entregou uma resolução semelhante. Que, não tendo sido discutida, caducou. Os sociais-democratas defendiam que no momento da matrícula, se a criança não tivesse boletim de vacinas, a escola devia pedir aos pais que a vacinassem. Se ainda assim optassem por não o fazer, o PSD sugeria que fizessem uma declaração a assumir tratar-se de uma opção consciente e que o centro de saúde deveria ser informado.

"Seria dissuasor da não vacinação", diz o deputado Ricardo Batista Leite que, a título pessoal, defende que devia ir-se mais além.

Deputados médicos concordam

O deputado, que é médico especialista em infecciologia, diz não conseguir entender por que razão as escolas privadas tornam as vacinas obrigatórias e as públicas não.

"Não devia haver dois pesos e duas medidas. Existe a opção de educação no domicílio", afirma, sublinhando que esta devia ser a opção de quem não quer vacinar os filhos e que assim acaba por "colocar os filhos dos outros em risco, fruto da sua decisão pessoal."

Também médico, o deputado socialista António Sales fala a título pessoal para defender a vacinação mandatória. E vai mais longe: preconiza que um programa vacinal obrigatório deve ir ao encontro da frequência das doenças. "O calendário não deve ser estático, veja-se como há recrudescência das patologias - hoje o sarampo, não sabemos como estará amanhã a tuberculose."

Ricardo Mexia contrapõe: "Onde existe a vacinação obrigatória não há evidência que resulte melhor do que onde é recomendada. Mais do que obrigatoriedade, deve assegurar-se o acesso à vacinação num serviço de saúde de qualidade", refere o presidente da Associação dos Médicos de Saúde Pública.

No mesmo sentido vai o Bloco de Esquerda, ao considerar que o plano de adesão voluntária vigente em Portugal tem sido suficiente para que o país tenha uma das melhores taxas de vacinação mundial.

França é um dos países da UE com vacinas mandatórias

O crescimento do sarampo - que neste primeiro semestre atingiu no planeta valores de há 13 anos, segundo a OMS - tem levado países europeus a tornar a vacinação mandatória. A França, onde esta doença contagiosa é endémica, decidiu em maio aumentar de três para 11 o número de vacinas obrigatórias - entre elas está a VASPR, a da hepatite B e a da meningite C. A medida aplica-se a crianças nascidas depois de 1 de janeiro de 2018. Antes, só a difteria, o tétano e a poliomielite eram obrigatórias.

Há outros países da União Europeia onde a vacinação é obrigatória: Itália, República Checa, Polónia, Letónia, Bulgária, Croácia, Hungria. A Grécia tem quatro vacinas obrigatórias, mas a VASPR é apenas recomendada. Na Bélgica só é obrigatória a da poliomielite.

A diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, não vê necessidade de tornar a vacina mandatória: "Só em última análise. Não estamos em risco, nem de longe nem de perto."

Também Paula Palminha, do Instituto Dr. Ricardo Jorge, diz concordar com o esquema português. Mas acrescenta uma condição: que fique registado na escola sempre que os pais se recusem a vacinar os filhos. "Quando não vacinam os filhos, esses pais estão a pôr em risco a saúde de outras crianças." E acrescenta sobre o sarampo: "Não há doença mais infecciosa. É uma doença grave, que pode levar à morte."

Artigo sobre autismo leva aos movimentos contra as vacinas

Muitos apontam a responsabilidade dos movimentos antivacinação ao britânico Andrew Wakefield, o autor de um estudo que associava o autismo à vacina VASPR . O artigo, publicado em 1998 na prestigiada revista científica The Lancet, era assinado por mais dez investigadores, partindo de uma amostra de 12 crianças.

O resultado foi que no Reino Unido a taxa de vacinação baixou para valores na ordem dos 80% e o sarampo acabaria por ser declarado endémico. Menos de uma década passada, investigações jornalísticas e científicas apontavam que Wakefield tinha falsificado o estudo em troca de dinheiro dado pelos advogados de pais de crianças autistas. E que, das 12 crianças, cinco já tinham problemas antes da vacina e outras três nunca tiveram autismo. Em 2010, a The Lancet viu-se obrigada a pedir desculpas e a retirar o artigo.