Estudou até ao 12.º ano, começou a trabalhar e tornou-se independente, tinha uma relação amorosa de três anos, gostava da cidade em que escolhera viver. Tudo se desmoronou de um momento para o outro. Ficou sem emprego, sem o quarto, também o namoro terminou. Aliciaram-na para trabalhar no interior do país onde encontraria casa mais barata. Caiu numa rede de tráfico de mulheres para a prostituição..Quis fugir ao fim de uma semana, mas pensava: "Será que tenho culpa? Eu é que me coloquei nesta situação! Só depois, com a psicóloga [no centro de acolhimento] é que percebi que a culpa não era minha. Quando ouvimos falar de violência doméstica, dizemos: "Batem-te e continuas a viver com ele?". Digo isto porque a minha mãe passou por situações de violência doméstica, eu e os meus irmãos tentámos que saísse de casa e ela ficava sempre. Dizia-lhe: "És a vítima e ainda te sentes culpada". Agora, sei que, quando estamos na situação, não dá para ver.".Paula (nome fictício) é considerada vítima de tráfico de seres humanos. Recorda esse percurso com dificuldade em perceber como ali chegou, sonha com isso muitas vezes, tem pesadelos. Voz embargada, silêncios, uma dor que está longe de sarar. Vive num Centro de Acolhimento e Proteção (CAP) para vítimas de tráfico humano, este o CAP Sul, gerido pela APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima). Uma casa cuja localização é mantida em sigilo - quem ali trabalha deixa os carros longe..O processo é recente e está em investigação. A rede com a qual se envolveu tem casas de alterne em Portugal e em Espanha, "conhecem-se todos". Tem medo de ser encontrada, mesmo vivendo longe do sítio onde foi maltratada, o que é uma regra para proteger as vítimas. Nunca referiu o nome do proprietário das casas, embora seja bem conhecido no meio. Repete que não fez queixa, foi a PJ que a encontrou. "Se ele soubesse que o denunciava, não ficava para contar a história", frisou..Os casos de exploração sexual como o de Paula existem em Portugal, mas não são tão frequentemente identificados como em outros países, nomeadamente na Europa. O que é preocupante, diz Joana Menezes, gestora da Rede de Apoio à Vítima Migrante e de Discriminação da APAV. "É uma questão que merece alguma preocupação. As estatísticas a nível mundial indicam percentagens elevadas de tráfico para exploração sexual - o facto de não o detetarmos não significa que não exista. As formas de exploração sexual mudaram e, cada vez mais, passam pela Internet. As pessoas estão em locais fechados, mais difíceis de identificar e para procurarem apoio. Existirão vítimas que não estão a ser identificadas e sem apoio.".Tal reflexão levou a que fosse criado, em março de 2022, o programa "Melhorar os sistemas de prevenção, assistência, proteção e reintegração para vítimas de exploração sexual". Tem a duração de dois anos. É de registar que das oito vítimas confirmadas o ano passado pelas polícias, cinco são adultos e na maioria mulheres para exploração sexual. "Uma vida normal".Paula nasceu há 30 anos na Beira Baixa, migrou para a Área Metropolitana de Lisboa, trabalhou em supermercados e lojas. Alugou um quarto por 210 euros e a senhoria sempre a aumentar a renda, até que a mandou embora, no final do verão de 2022. Pagava 250 euros por mês.."Uma amiga que tinha bares no norte convidou-me para trabalhar com ela. Eu sabia que era de alterne, mas ela garantiu que era só para servir copos". Era para começar logo. "Tinha pago a renda de outubro e queria ficar até ao fim do mês, achei estranha tanta pressa, mas tudo o que dizia parecia fazer sentido: "Vais ter a tua casa, comprar o teu carro".".O destino era uma grande vivenda no interior norte do país, isolada, com restaurante e bar de alterne. Foi viver para um anexo, com câmaras "por todo o lado", pagava 400 euros por mês. A "amiga", percebeu Paula nessa altura, era angariadora de mulheres para se prostituírem e quem as vigiavas. "A verdade é que não a conhecia assim tão bem, conheci-a a través de outra amiga.".As casas eram geridas "pelas mulheres" do proprietário. Naquela, estavam sempre quatro/cinco raparigas, na maioria brasileiras, ficavam uma semana no máximo". Circulavam de bar em bar, o que é comum na área. Continua a Paula: "Penso que não estavam ali obrigadas, eram diferentes de mim, aliás, criticavam a minha forma de vestir, diziam que tinha a mania que era diferente. Eu usava casaco ou blazer, toda tapada, ouvia bocas até dos clientes: "Se não gostas de cá estar vai para Lisboa"..As mesmas provocações todas as noites, ser obrigada a "subir com os homens para os quartos". Começou a dizer que "não", que estava cansada, arranjava desculpas. Ameaçaram-na: "Não vais para o bar, tiras já as tuas coisas e ficas na rua. E só nos pagavam na noite do dia seguinte, era uma forma de nos reter, não íamos sair àquela hora. Tiravam o dinheiro do quarto e davam o restante"..Trabalhava das 22.00 às 04.00 horas durante a semana, até às 06.00 aos fins de semana. O que não quer dizer que ficasse dispensada de tarefas diurnas. "Era a única que tinha carta e ela tinha um carro parado, batia à porta para ir com ela ao banco, ali e acolá.".E voltava ao mesmo. Passar a noite sentada no bar, olharem para ela e ter de subir com essa pessoa para o quarto. "Tentava não perceber que estavam a olhar, disfarçava, ia para a casa de banho. Comecei a sentir-me extremamente cansada, chorava todos os dias, pensava: "Porra de sítio, com câmaras por todo o lado, nem sequer posso descansar"..Um dia tive uma grande discussão, deram-me uma folga. Outra vez, disse que tinha uma consulta. A única coisa que queria era ter uma noite para descansar. Trancava a porta, perguntavam se tinha medo que alguém entrasse, sabia que não iam entrar, mas era o barulho, ela [responsável da casa] vivia por cima, estava sempre a ver as câmaras. Eu pedia, "por favor deixem-me dormir", até cheguei a dizer: deixem-me ficar sossegada ou atirem-me da ponte.".Tinha de pagar a casa, as refeições, o tratamento da roupa que era feito numa lavandaria de um familiar da controladora. "Quando dei conta, estavam a sugar-me o dinheiro todo. Ela via uma coisa e pedia-me para lhe oferecer, íamos ao supermercado e metia as coisa com as minhas para eu pagar.".Destaquedestaque8 vítimas confirmadas em 2022, a maioria para a prostituição.Percebia que era explorada, maltratada, mas não que estava a ser vítima de tráfico. "Sou sincera, quando o inspetor falou em tráfico de seres humanos, achei a palavra forte, pesada, depois, percebi o que dizia. Era obrigada a fazer aquele trabalho, vivia numa casa com câmaras por todo o lado, era um meio pequeno onde todos se conheciam, não sabia como sair dali, não tinha solução.".E achava que essas coisas só acontece "aos outros, aos estrangeiros, a quem não tem estudos, nem dinheiro". Aprendeu da pior forma: "Um senhorio pode meter uma pessoa na rua com facilidade, vivi três anos naquele quarto e sempre paguei a renda, perdi o emprego.".Paula até tentou sair daquele "inferno". Um mês e meio depois de ter chegado começou a procurar casa em segredo, já emprego não arriscou. É um meio pequeno e podia chegar aos ouvidos do patrão. "Comecei a ficar mais frustrada, a pensar que não ia conseguir refazer a minha vida, que estava marcada.".O proprietário do estabelecimento era poderoso no negócio, tinha estado preso e conseguiu sair ao fim de pouco tempo, mas continuava a ser investigado. Uma noite, apareceram no bar os inspetores da PJ para convocar as raparigas para um interrogatório no dia seguinte. Tinham sido avisadas e instruídas por uma advogada sobre o que deviam dizer. Paula decidiu desobedecer..Discretamente, revelou a um inspetor a sua situação, este aconselhou-a a contar a verdade, prometeu-lhe que a tiravam dali no mesmo dia da apresentação na polícia..Destaquedestaque129 vítimas não confirmadas."Estava extremamente nervosa ", suspira e sorri ao mesmo tempo. "Não tinha dormido, tinha medo que suspeitassem. Chamaram-me a mim primeiro para o interrogatório. Eu disse o que tinha a dizer e regressei a casa". Arranjou uma desculpa para voltar a sair, meteu os documentos e fotografias num saco. Chamou um táxi para a estação de comboio, onde a PJ a iria apanhar. Perguntaram-lhe se queria voltar à casa para trazer as suas coisas. "Não quis, queria sair de forma tranquila"..Dormiu essa noite num acolhimento de emergência, a Casa Feminina, da Akto (Associação para a Promoção dos Direitos Humanos e Democracia), até ser transferida para o CAP Sul. Onde entrou em dezembro do ano passado, mas continua com pavor. "Os meus pais pensam que vivo no mesmo sítio, a trabalhar, só contei à minha irmã porque tenho medo que lhe aconteça algo.".Sente que há quem não compreenda a sua situação. "Foi pedida a confidencialidade dos meus dados na Segurança Social, atendeu-me um senhor, leu a folha e comentou: "tráfico humano?" Depois, olhou para mim e disse: "Sabe, às vezes metemo-nos em situações complicadas, mas há sempre duas versões da história?" Não consigo deixar de pensar no que disse, sinto que as pessoas me olham de forma diferente. Tirei o 12.º ano, tinha uma vida normal, casa, trabalho, encontrei-me nesta situação de repente.".Destaquedestaque329 adultos sinalizados.Só quer o processo judicial concluído. Custaram-lhe as perícias, falar do que aconteceu, repetir tudo.."Os processos judiciais são uma pedra no sapato, o assunto não está fechado, vão ter de ir a tribunal. Esteve aqui uma senhora que fez declarações para memória futura, tudo direitinho e, no decorrer do processo, voltou a ser chamada para fazer algumas clarificações. O nosso trabalho no CAP é que tentem pôr tudo numa gavetinha, não há nada que possamos fazer. Só as aviso da ida ao tribunal no dia anterior, não quando chega a notificação. Ficam ansiosas, não dormem, sofrem por antecipação", conta Filipa Nobre, psicóloga, diretora do CAP Sul..Paula trabalha numa pastelaria, ainda não sabe onde irá viver, não poderá voltar aos mesmos locais. "Estou a juntar dinheiro para alugar um quartito, tentar seguir com a minha vida. Aqui, sentimo-nos seguras, mas preciso do meu canto". Custa-lhe partilhar o quarto, vivia sozinha desde os 18 anos.. O caso de Maria (nome fictício) está a ser investigado pela PSP. Isto porque não foi considerado crime de tráfico de seres humanos mas de lenocínio. Ainda que estivesse fechada numa casa e com os documentos confiscados. Exigiam-lhe o pagamento de uma dívida pelo quarto e clientes com quem se deitava que estava sempre a aumentar. O processo tem seis anos e ainda não foi para julgamento..A jovem inaugurou o CAP para menores, gerido pela Akto, o único que existe no país. Ali terminou o 12.º ano, ganhou competências e confiança, trabalha em casa na área do turismo. Tem um companheiro..Mas é uma nova vida com percalços. E há coisas que apagou da memória. "Nunca se sai da situação. O mês passado tive uma queda e só me passava pela cabeça o que me aconteceu, entrei em pânico, tive de ir ao hospital. Pode amenizar durante algum tempo, mas nunca passa. Se um carro passar por mim e fizer uma marcha atrás mais violenta e rápida, posso assustar-me e ter um ataque de pânico. Não vou a sítios com muita gente, é raro sair. Nunca nos sentimos totalmente seguras.".Maria acabara de fazer 20 anos quando entrou para o CAP. "O nosso centro é para crianças desacompanhadas, à partida menores, mas acolhemos dos 0 aos 21 anos. É um pouco no enquadramento da lei da proteção de crianças e jovens em risco e é mais fácil para essas pessoas estarem enquadradas num núcleo cujo projeto de vida é muito semelhante. As casas de adultos são mais pesadas, pais, filhos, com patologias e situações diferentes. Estes jovens adultos têm projetos semelhantes às nossas crianças e a adaptação é mais fácil", explica Sofia Figueiredo, coordenadora do centro..Destaquedestaque26 menores sinalizados.Abriu em 2018, tem sete vagas que pretendem alargar para nove ou dez, falta o financiamento. A vítima mais nova que ali vive atualmente tem 3 anos, foi sinalizada no aeroporto, como a maioria destas crianças. Estava em trânsito e desconhece-se a que fim se destinava, o que é frequente dado estar de passagem pelo país. A mais velha tem 21, e foi vítima de exploração sexual. "Estas crianças têm vindo de países da CPLP: Angola, São Tomé, Guiné, com quem Portugal tem voos mais regulares e frequentes. Entram muitas vezes com passaportes alheios ou documentação falsa". Tiveram casos de casamentos infantis - forçados e precoces, 14/15 anos - meninas para exploração sexual (apenas um rapaz), para a servidão doméstica, mendicidade, uma menina para o futebol..Maria tem 26 anos, começou a prostituir-se aos 18, quase a fazer 19. "Vinha de uma situação familiar fragilizada. A minha mãe tinha morrido, o meu pai estava internado, tinha uma irmã menor. Procurei emprego no jornal, um anúncio dizia : "Procura-se empregada para snack-bar". Liguei e, quando cheguei, percebi o que era, voltei para trás. A dona insistiu - "Não é o que o que pensas!" -, acabei por regressar. Não fiquei muito tempo, era o típico bar de alterne, os clientes pagam para beber copos com a gente.".Voltou às páginas do jornal. "Procura-se massagista, dá-se formação." "Nunca dizem para o que é", observa Maria. Disseram-lhe que eram massagens de relaxamento..Aceitou, dias depois percebeu que não era assim. Viu "umas coisas um bocado estranhas", mas ficou. Começou a interagir com colegas, "mais experientes", que aconselharam: "A fazer massagens ganhas isto, se fizeres isto {acompanhante de luxo] ganhas muito mais".."Fui cedendo, cedendo e pronto, acabei como acompanhante de luxo, nunca contei a ninguém." Maria clarifica: "A prostituta faz o ato e o cliente vai-se embora. Uma acompanhante de luxo passa uma noite com o cliente, férias, vai a jantares, têm de ter outra postura, cultura.".Ganhava muito dinheiro, viajava pela Europa com os clientes, deslocava-se por Portugal para trabalhar, não é rentável ficar muito tempo no mesmo sítio. Alugava apartamentos por uma semana ou menos dias para receber pessoas, chamam-lhes "casas 24 horas". Foi apanhada por uma rede de prostituição..Alugou uma casa no norte pela internet , 400 euros a semana. "Supostamente, estaria sozinha, faria o meu trabalho de publicidade, recebia os clientes, não foi o que aconteceu. Ficaram com os documentos, basicamente o BI, não tinha telemóvel. Trancaram a porta. Não saía à rua, nem para comprar comida, passei fome. Recebia os clientes que eles arranjavam. Havia outra mulher na casa que me controlava, não percebi se fazia o mesmo que eu.".Aproveitou uma desatenção de quem a vigiava, agarrou no dinheiro que estava à mão e fugiu. "Penso que ela estava a atender um cliente." Maria foi para Espanha. "Se ficasse em Portugal corria perigo.".Arrendou quarto para aquela noite e, no dia seguinte, procuraria as casas de 24 horas, para "juntar dinheiro e poder desenrascar algum tempo"..Em Espanha, foi reconhecida pelo mesmo grupo, que a contactou por telefone. Voltou a fugir, desta vez para o Algarve. "Era o mais longe possível de onde estivera. Trabalhei um mês, ganhei dinheiro, ganha-se muito dinheiro nesta área. Quanto? Nem sei dizer. Pode-se receber 1000 a 1500 euros por oito horas de trabalho. Voltaram a encontrar-me". Fora reconhecida através dos sites onde publicitava os serviços. Decidiu parar por uns tempos e regressar ao norte. Foi reconhecida numa discoteca, exigiram-lhe o pagamento de uma dívida..Dois homens obrigaram-na a dizer onde vivia, deslocaram-se com ela ao quarto e levaram todo o dinheiro que tinha. "Eram milhares de euros, mas disseram que não chegava, cada semana que passava era mais um X, como se estivesse a receber clientes (o que já não acontecia) e lhes devesse uma percentagem, como se fosse propriedade deles.".Meteram-na num carro, supostamente para a levar para uma nova casa para se prostituir. Aconteceu um daqueles raros momentos de sorte. Havia uma Operação STOP na estrada, os exploradores livraram-se dela. Com ameaças: "Sabemos onde moras, voltamos amanhã para falar contigo.".Maria recorda: "Nesse momento, decidi que não ia continuar a sujeitar-me àquilo e fui até um posto da polícia. Passei a noite na esquadra e, no dia seguinte, encaminharam-me para uma casa de emergência.".Não sabia a matrícula do carro dos agressores, mas a viatura tinha sido parada e a polícia localizou-os. Ela denunciou onde eram as casas, quem eram as pessoas, fez declarações para memória futura. "Quatro declarações, tive uma que foi extremamente humilhante. Imagine, estar numa sala com seis/sete pessoas a fazer perguntas. Sai de lá e fui chorar para a casa de banho. Era suposto ser um sítio sem julgamentos, mas não foi isso que senti. Estava numa situação extremamente frágil, foi muito complicado.".Deram-lhe a hipótese de ir para o CAP para menores, pediu uma semana para decidir. "A minha cabeça andava a mil, estava extremamente confusa, debilitada. O que fazer? Ficar em Portugal ou ir para fora do país onde tenho família. Pensei: Se vou para fora farei o mesmo, tenho de cortar pela raiz.".Viveu no CAP menos de um ano, volta muitas vezes, continua a ser um apoio. "Posso dizer que reconstrui a minha vida, dei uma volta de 180 graus e ainda não fui capaz de contar à minha família, que não é a de sangue, mas a que conquistei.".Deixa um alerta para os clientes da prostituição. "Não sabem o que se passa por detrás, não conhecem os ditos chulos. Deviam ter um bocadinho de atenção: muitas vezes as raparigas passam lá o dia todo, não comem, não têm acesso a higiene. E atenção, não são só os velhos que recorrem a essas casas. Há muitos jovens, casados, das classe sociais altas. Atendi muita gente importante, 150 a 200 euros por uma hora, 1500 euros por uma noite não é para quem ganha pouco." Por isso, defende a legalização da prostituição. "As mulheres fazem descontos, têm proteção.". ceuneves@dn.pt