Dois homens que resolvem divergências enquanto veem uma partida de futebol é uma ideia tentadora, mas mais cinematográfica do que real se ambos pertencem ao topo da hierarquia da Igreja Católica e as ditas divergências se referem a modos de viver a fé..No filme Os Dois Papas, o realizador brasileiro Fernando Meirelles dá-nos a ver Joseph Ratzinger (Anthony Hopkins) e Jorge Bergoglio (Jonathan Pryce) em diálogo que inclui uns passos de tango, mas, como frisa o padre (jesuíta, como o atual Papa) Hermínio Rico, essa é uma "versão muito romanceada" dos acontecimentos e da relação entre os dois. .Coordenador das obras Fé, Ciência e Cultura: Brotéria - 100 Anos e Padre Manuel Antunes: Interfaces da Cultura Portuguesa e Europeia (aqui em cocoordenação), tem, aos 58 anos, um longo caminho feito de trabalho pastoral e docente. Esteve três anos em Roma (a colaborar com o superior-geral da Companhia de Jesus) e prepara-se para passar o próximo ano em Bruxelas. Em Lisboa, é um colaborador muito ativo da Comunidade de Vida Cristã..Os Papas Bento XVI e Francisco parecem ser homens muito diferentes, mas poder-se-á dizer que, também por isso, marcarão a história da Igreja Católica? É sempre muito arriscado dizê-lo a longo prazo, mas serão com certeza personalidades muito marcantes, efetivamente muito diferentes entre si. Bento XVI é claramente mais introvertido, um académico, enquanto Francisco é um homem de ação, que põe toda a sua energia no contacto com as pessoas. Por outro lado, vêm de mundos muito diferentes. O atual Papa é filho de emigrantes italianos mas viveu toda a vida na Argentina, o seu antecessor teve uma vida fundamentalmente universitária na Alemanha e foi eleito Papa depois de muitos anos a viver e a trabalhar no Vaticano. O Papa Francisco, como ele próprio diz, veio lá do "fim do mundo"..A essas diferenças de personalidade e de vivências correspondem também diferenças fundamentais de pensamento, nomeadamente quanto ao papel da Igreja Católica no mundo de hoje? Pode-se dizer que sim. Joseph Ratzinger passou a sua vida a dialogar intelectualmente com a tradição da Igreja e com os principais movimentos da filosofia contemporânea. Ficou célebre o seu diálogo com Jürgen Habermas sobre as questões da verdade. Bergoglio é muito mais pastoral, está muito mais interessado em responder aos problemas que lhe são apresentados pelo comum cidadão. Ambos são obviamente pessoas muito cultas, de grande profundidade de pensamento, mas com públicos e pontos de partida muito diferentes..Esse caráter mais pastoral corresponde à tradição jesuíta, de índole muito pedagógica e de maior proximidade com as populações? O próprio Papa assume-o. E, de facto, se estivermos atentos verificaremos que os princípios da Companhia de Jesus estão em toda a sua formação intelectual e espiritual, no modo de encarar a sua missão apostólica, embora, nos últimos anos, como arcebispo de Buenos Aires, já estivesse mais afastado dessa origem. Para mim, não deixa de ser um pouco surpreendente que, já depois de Papa, Francisco tenha reivindicado essa identidade de jesuíta. Mas, na verdade, todos somos condicionados pela nossa formação de base, na qual desenvolvemos a linguagem e as gramáticas para olhar o mundo, e a isso há ainda que somar a personalidade própria e a história pessoal de cada um..Já que falamos de história pessoal, Francisco foi recentemente acusado de ter colaborado com a ditadura militar argentina, nomeadamente durante a presidência do general Videla... Foi acusado por alguns e defendido por outros. São situações muito difíceis de gerir, que a posteriori são muito fáceis de criticar. Mas quando se está no meio dos acontecimentos, em que tudo é urgente, em que nada é claro, é muito difícil escolher o caminho. Essa polémica acabou por ser resolvida da melhor maneira, até pela parte de Francisco, que soube esperar pelo tratamento da informação e não alimentou ele próprio a polémica. Creio que hoje é mais ou menos pacífico o papel que ele desempenhou nesse contexto. Ninguém é infalível e o Papa também não. Mas penso que não houve nada de que se possa envergonhar..A coexistência de dois Papas (um emérito e outro em funções), sendo tão invulgar, pode ser um problema para a Igreja? Na história da Igreja houve vários momentos em que coexistiram vários Papas, alguns dos quais proclamados por eles próprios, mas o que vale é sempre só um: o que estiver em funções. Houve Papas e antipapas, todos a reivindicar que tinham legitimidade. O uso do título de Papa por Bento XVI pode ser um bocadinho polémico, o que há é um bispo emérito de Roma, mas penso que é uma questão essencialmente afetiva, um bocadinho à imagem do que acontece nos Estados Unidos, em que os antigos presidentes continuam a ser assim designados, ou em Espanha, com o rei Juan Carlos. Mas Papa há só um e ninguém tem dúvidas em saber qual é....De qualquer forma, Bento XVI tem sido associado a textos que, de algum modo, são contrários a posições tomadas pelo Papa Francisco. Anos depois de ter rompido o silêncio, que prometera ao renunciar, para se pronunciar sobre a questão dos abusos sexuais cometidos por sacerdotes, colaborou num livro coordenado por Robert Sarah para reafirmar a obrigatoriedade do celibato dos padres. Estando, nesse momento, em discussão a proposta de ordenação de homens casados em regiões mais remotas (como a Amazónia), essa tomada de posição foi lida por muitos como uma forma de pressão sobre Francisco... Essa leitura é compreensível mas também me parece evidente que há pessoas a procurar instrumentalizar esses textos em função dos seus próprios interesses. Mas ainda não é claro o modo como são publicados nem tão-pouco a real participação de Bento XVI neles. É claro que estamos a falar de dois homens com posições teológicas diferentes e isso não pode ser negligenciado. Agora, esses textos... penso que correspondem, antes de mais, a tentativas de alimentar polémicas internas na Igreja..Alguns biógrafos dizem que Bento XVI, à medida que os anos passavam, passou de uma visão teológica mais progressista para um carácter cada vez mais conservador. É também a sua opinião? Sim, sem dúvida. Joseph Ratzinger foi um dos chamados "jovens lobos" do Concílio Vaticano II. Pertenceu a um grupo de grandes teólogos, coadjuvante dos cardeais participantes, que era, de facto, quem dava o substrato aos novos documentos que iam sendo produzidos. Alguns deles, no entanto, depois de terem dado esse contributo fundamental para uma maior abertura da Igreja, acabaram por retroceder ao longo dos anos - ou foram-se encostando a uma interpretação do Concílio Vaticano II ligeiramente mais conservadora. Ratzinger não foi dos que recuaram mais, mas, de algum modo, também acabou por fazê-lo. Costuma-se dizer por brincadeira que, em jovens, tendemos a ser revolucionários, mas que os anos acabam por nos moderar. Provavelmente, foi o que aconteceu..O Papa Francisco goza de uma popularidade que Bento XVI nunca conheceu... Eu diria que proporcionalmente o Papa Francisco é tão popular fora da Igreja como dentro dela, o que é um grande elogio ao seu papel, que é também esse: falar para o mundo e não apenas governar os católicos. Ser uma voz que anuncia, que testemunha, mesmo profética, e o Papa Francisco é muito eficaz nisso..É um comunicador de exceção? É um muito bom comunicador em palavras e em gestos, como João Paulo II também era. Todos nos lembramos de como conseguia arrastar multidões onde quer que fosse. Não se trata tanto de trazer mais pessoas à Igreja, como um clube desportivo promove campanhas de angariação de sócios, mas sobretudo de se ser fiel àquilo que se tem de anunciar, de dar testemunho, de alertar, de interpelar....De interpelar não só os católicos? De interpelar as consciências. O Papa deve ser o guia do papel a desempenhar por qualquer cristão no mundo. Fá-lo com grande capacidade e esse um ponto que joga claramente a seu favor. Tornou-se uma voz muito escutada.