Centeno precisa de cortar já mais 1500 milhões na despesa para cumprir o Pacto
As contas públicas portuguesas correm o risco de violar o Pacto de Estabilidade, designadamente no chamado "valor de referência da despesa", que está muito acima do admissível à luz das regras europeias, alertou ontem a Comissão Europeia na avaliação ao projeto orçamental de Mário Centeno para 2020.
Tendo em conta os cálculos feitos por Bruxelas, em 2020, o desvio na taxa de crescimento nominal das despesas primárias líquidas (despesas sem juros) equivalerá a cerca de 0,7% do produto interno bruto (PIB).
As últimas projeções de Bruxelas para o PIB português apontam para um valor de 217,7 mil milhões de euros de riqueza anual neste ano, pelo que isto significa que a Comissão Europeia está a pedir ao ministro das Finanças medidas adicionais que reduzam a despesa de forma permanente num valor equivalente a mais de 1500 milhões de euros.
Bruxelas está pouco ou nada satisfeita com o aumento previsto para a despesa primária líquida subjacente à proposta do Orçamento do Estado para 2020 (OE 2020), que diz ter "um desvio significativo" face ao que devia ser (aumento nominal de 1,7%). Mas nem tudo está mal. Por exemplo, relativamente à redução do rácio da dívida, a Comissão Europeia está mais tranquila: em 2020, as metas "devem ser cumpridas".
Na opinião ontem publicada e assinada pelo novo comissário europeu da Economia, o antigo primeiro-ministro italiano Paolo Gentiloni, Bruxelas considera que o projeto de plano orçamental (PPO) atualizado de Portugal para 2020 "está em risco de incumprimento" à luz o Pacto de Estabilidade.
Recorda que, "relativamente a 2020, o Conselho Europeu [de julho de 2019] recomendou a Portugal que atingisse o objetivo orçamental de médio prazo de uma situação orçamental equilibrada em termos estruturais, tendo em conta a margem de tolerância associada a circunstâncias excecionais para as quais é autorizado um desvio temporário". É o caso concreto dos encargos com os grandes incêndios, que continuam a não contar para esta despesa, logo não reduzem o saldo orçamental (ou baixam o excedente que Centeno quer atingir neste ano).
Lisboa devia atingir "uma taxa de crescimento nominal máxima das despesas públicas primárias líquidas de 1,7%, o que corresponde a um ajustamento estrutural anual de 0,4% do PIB em 2020". Mas a Comissão não vê isso no projeto de OE 2020. "Estima-se que o saldo estrutural do projeto de plano orçamental atualizado, recalculado utilizando a metodologia acordada em comum, corresponda a um défice estrutural de 0,2% do PIB em 2020, sendo, por conseguinte, considerado próximo do objetivo orçamental de médio prazo, tendo em conta a margem de tolerância associada a circunstâncias excecionais para as quais é autorizado um desvio temporário."
Assim, existe um risco "de algum desvio em relação ao ajustamento estrutural recomendado em 2020".
Portanto, a Comissão Europeia considera urgente que Portugal corrija este desvio de modo a garantir o cumprimento do Pacto e a sustentabilidade das contas no médio/longo prazo.
Explica que este risco de incumprimento do lado da despesa se reflete num esforço orçamental baixo, que é "negativamente impactado por um crescimento potencial mais baixo" ao nível da economia.
Relembra ainda que Centeno e os seus pares no governo devem seguir as "recomendações" do Conselho de julho de 2019 e nota que as medidas estruturais previstas para 2020 do lado da receita e da despesa quase se anulam.
"Prevê-se que as medidas de natureza estrutural tenham globalmente, em 2020, um impacto quase nulo nas receitas públicas, prevendo-se todavia que aumentem as despesas em cerca de 0,4% do PIB."
Do lado das receitas, diz a Comissão, "o impacto de algumas reduções específicas do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, do imposto sobre o valor acrescentado e das propinas escolares deverá ser aproximadamente compensado pelo impacto de aumentos seletivos do imposto do selo e das medidas destinadas a incentivar a descarbonização".
Do lado das despesas, Bruxelas aponta o dedo às medidas de valorização salarial dos funcionários públicos e aos aumentos das pensões, claro.
"Está programado um aumento global de cerca de 0,5% do PIB relativamente às remunerações dos trabalhadores (tendo em conta o processo de descongelamento gradual em curso das carreiras na administração pública, juntamente com revisões adicionais das carreiras e atualizações salariais) e às prestações sociais (refletindo, nomeadamente, as reformas em curso em matéria de reforma antecipada para carreiras longas, a atualização de alguns benefícios sociais e o programa que prevê a redução dos preços dos transportes públicos)", diz a avaliação.
"Prevê-se que estas despesas sejam parcialmente compensadas por poupanças adicionais a nível da eficiência, no contexto da revisão em curso das despesas públicas."
"Além disso, o saldo nominal em 2020 deve ser afetado por medidas pontuais que implicam globalmente um aumento de cerca de 0,1% do PIB do lado das receitas e de perto de 0,5% do PIB do lado das despesas. Estas medidas incluem, nomeadamente, a recuperação prevista de uma parte da garantia concedida ao Banco Privado Português, por um lado, e injeções de capital adicionais no Novo Banco, assim como uma decisão judicial desfavorável para a Câmara Municipal de Lisboa, por outro."
No entanto, a Comissão Europeia diz que relativamente à parte da eficiência e da revisão da despesa ainda há muito caminho a percorrer, sobretudo nos hospitais e nas empresas públicas.
Bruxelas defende mais controlo e transparência nas empresas públicas e que estas precisam de melhorar a sua sustentabilidade financeira, "assegurando simultaneamente um controlo mais atempado, transparente e exaustivo". Não diz quais são os casos mais problemáticos.
Os hospitais são outro foco de problemas. "Começou a ser executado em 2019 um novo programa abrangente destinado a reforçar a sustentabilidade global do sistema de saúde, tendo sido criada em junho de 2019 uma estrutura formal para avaliar a gestão dos hospitais públicos."
"No entanto, depois de ter diminuído visivelmente em dezembro de 2018, principalmente em resultado de importantes medidas compensatórias ad hoc nesse ano, os pagamentos em atraso no setor hospitalar estão de novo em trajetória claramente ascendente desde julho de 2019", aponta.
Mário Centeno rejeitou as considerações negativas (sobre incumprimento e desvio significativo nas despesas) vindas do executivo europeu, agora presidido por Ursula von der Leyen.
"Portugal sempre cumpriu as metas estabelecidas" pela Comissão Europeia, replicou o ministro. Mais: cumpriu "e superou as previsões da CE nos últimos quatro anos".