Após perda do 'Moskva', Rússia ameaça Kiev e ataca fábrica dos mísseis Neptuno

Pentágono confirmou a versão ucraniana de que o cruzador foi ao fundo após ser atingido num ataque. Moscovo avisou Washington sobre as "consequências imprevisíveis" de enviar armas para a Ucrânia.
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A Rússia ameaçou ontem responder a eventuais ataques contra o seu território com novos bombardeamentos em Kiev, depois de ter atingido a fábrica dos mísseis Neptuno nos arredores da capital. O Pentágono confirmou que dois destes mísseis foram usados para atingir o cruzador Moskva, que acabaria por ir ao fundo. A perda do principal navio da frota do Mar Negro será vingada, acreditam os ucranianos, que ontem viram a Rússia usar pela primeira vez mísseis de longo alcance para atacar Mariupol. Moscovo avisou entretanto Washington para as "consequências imprevisíveis" de enviar mais armas para a Ucrânia.

"O ataque ao cruzador Moskva atingiu não apenas o próprio navio: atingiu as ambições imperiais do inimigo. Temos noção de que não seremos perdoados por isto", disse uma porta-voz da forças militares do sul da Ucrânia. "Temos noção de que os ataques contra nós vão intensificar-se e que o inimigo procurará vingar-se. Nós percebemos isto", acrescentou Natalia Gumeniuk num briefing, referindo-se aos ataques em cidades como Odessa e Mykolaiv. Houve também bombardeamentos em Kharkiv, que terão causado a morte a pelo menos oito pessoas.

"O número e escala de ataques com mísseis em Kiev vai aumentar em resposta a qualquer ataque terrorista ou ato de sabotagem em território russo cometido pelo regime nacionalista de Kiev", indicou o Ministério da Defesa russo. Na véspera Moscovo alegou que os ucranianos atacaram várias aldeias junto à fronteira, mas estes negaram. O comunicado foi emitido depois de a Rússia ter atacado a fábrica da Vizar, próximo do aeroporto internacional de Zhuliany. Esta fábrica produzia, segundo a empresa estatal Ukroboronprom, os mísseis Neptuno, que terão sido usados no ataque ao cruzador Moskva, na quarta-feira à noite. O navio acabaria por afundar na quinta-feira.

A perda do Moskva representa um forte revés para a Rússia e para a moral da sua Marinha. Símbolo do poderio russo no Mar Negro, o navio era o centro de controlo e de comando e fornecia proteção aérea para toda a frota. Com as armas a bordo, incluindo vários tipos de mísseis, o cruzador protegia uma área de 150 km em seu redor. Contudo, estava principalmente equipado para atacar os navios do inimigo, sendo que a frota ucraniana há muito foi destruída - o principal navio, o Hetman Sahaidachny, foi afundado em Mykolaiv para impedir que caísse nas mãos russas. Ainda assim, sem o Moskva, a frota russa ficará mais desprotegida.

"Com a Turquia a bloquear os navios russos nos estreitos do Bósforo e de Dardanelos, será difícil para a Rússia substituir a sua capacidade de defesa aérea" na região, explicou à AFP o especialista do instituto privado Janes. Outros dois cruzadores da classe do Moskva, o Marshal Ustinov e o Varyag, fazem parte da frota do Norte (no Ártico) e do Pacífico. Mas Nick Brown lembrou que a restante frota no Mar Negro "continua a ser uma importante força", dando o exemplo das fragatas mais modernas da classe Almirante Grigorovich, que têm defesas aéreas mais avançadas, apesar de um alcance mais reduzido.

Por outro lado, apesar de a Rússia alegar que todos os marinheiros a bordo foram retirados em segurança, transferidos para outros navios, os ucranianos acreditam que tenha havido baixas entre os cerca de 500 membros da tripulação. Especialmente porque o mau tempo, terá dificultado a aproximação e assistência de outros navios. Moscovo não deu indicações de baixas a bordo. Diplomatas ocidentais e especialistas acreditam que vários oficiais superiores da frota do Mar Negro acabem por perder o emprego por causa da perda do Moskva.

A Ucrânia reivindicou o ataque contra o navio, mas a Rússia alegou que foi um incêndio que causou a explosão das munições a bordo. Quando estava a ser rebocado, e por causa de danos no casco e do mar tempestuoso, o cruzador acabaria por afundar. Inicialmente o Pentágono disse que não podia confirmar ou negar que os ucranianos tinham sido os responsáveis. Mas ontem, confirmaram que o "grande revés" para Moscovo tinha sido causado pelas forças de Kiev. "Estimamos que tenham acertado com dois Neptuno", disse um oficial aos jornalistas, sob anonimato. Alegadamente foram usados drones como distração na operação.

A versão russa de que houve um incêndio a bordo também parece cair por terra tendo em conta que, horas depois de o Moskva afundar, os russos bombardearam a fábrica nos arredores de Kiev onde alegadamente os mísseis são fabricados - foi o primeiro grande ataque russo na região da capital ucraniana em mais de duas semanas. A confirmar-se que o navio foi ao fundo como resultado das ações ucranianas, será o maior navio que a Rússia perde em combate desde 1941. Nesse ano, bombardeiros nazis lançaram duas bombas de mil quilos que destruíram o couraçado Marat, no porto de Kronstadt.

A ameaça de novos bombardeamentos em Kiev surge numa altura em que a situação tem estado mais calma na capital. De tal maneira que, segundo as autoridades, todos os dias, 50 mil residentes estão a regressar. O presidente da câmara, Vitali Klitschko, avisa que ainda é muito cedo para isso, não só por causa da ameaça dos ataques russos, mas também porque terão sido espalhadas minas no território que esteve sob controlo russo.

Na região de Kiev, e desde a retirada russa, a polícia diz que foram descobertos os corpos de mais de 900 civis. Destes, mais de 350 terão morrido em Bucha - 95% deles baleados. "Durante a ocupação, as pessoas foram baleadas nas ruas. É impossível esconder este tipo de crime no século XXI. Não só há testemunhas, mas também foi registado em vídeo", indicou o chefe da polícia da região de Kiev, Andrii Nebitov, citado pela agência AP.

Além de ameaçar voltar a bombardear Kiev, a Rússia terá usado pela primeira vez mísseis de longo alcance para atingir Mariupol. Nesta cidade portuária, junto ao mar de Azov, ainda haverá combates na zona da siderurgia. A Rússia alega contudo que já assumiu o controlo deste espaço de 11 quilómetros quadrados. Há quem acuse as forças russas de terem usado armas químicas para obrigar os ucranianos a sair, mas os separatistas pró-russos negam que estas estejam a ser usadas. Mariupol é um dos principais objetivos russos, já que a sua conquista permite formar um corredor terrestre entre a região de Donbass, no leste, e a península da Crimeia, que a Rússia anexou em 2014.

A Rússia alertou esta semana os EUA, através de uma nota diplomática formal a que o The Washington Post teve acesso, que o envio de mais armamento "sensível" por parte de Washington e dos aliados da NATO para a Ucrânia seria "juntar combustível" ao conflito e poderá ter "consequências imprevisíveis". A nota foi enviada após o presidente norte-americano, Joe Biden, ter aprovado o envio de um pacote de mais 800 milhões de dólares em armas para a Ucrânia. Os primeiros carregamentos devem chegar dentro de dias.

Entretanto o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, disse à CNN que todo o mundo devia estar preocupado com a possibilidade de a Rússia usar armas nucleares. O diretor da CIA, William Burns, alegou que a possibilidade de a invasão falhar pode levar Moscovo a usar esse tipo de armas. "Para eles, a vida das pessoas não significa nada. Não vamos ter medo, vamos estar prontos", disse Zelensky.

susana.f.salvador@dn.pt

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