Funerárias. Trabalhar em "cenário de guerra"

Em mais de 30 anos à frente de uma agência funerária, em Lisboa, Carlos Almeida nunca tinha vivido tempos como os que viveu em janeiro, com um pico de mortes pela covid-19. Apesar do muito trabalho, o setor das funerárias registou uma quebra na faturação e sentiu-se desamparado.
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Faz agora um ano que morreu em Portugal a primeira vítima de covid-19. O país já vai no segundo confinamento para conter a pandemia, mas os operadores funerários, apesar de mais necessários que nunca, sempre se sentiram desamparados e viram-se obrigados a serem autodidatas para poderem continuar a funcionar com o mínimo de risco e mantendo a dignidade das cerimónias fúnebres. O último janeiro quase atirou o setor para a rutura, com um pico de mais de 5500 vítimas do SARS-CoV-2, uma média de 179 óbitos por dia.

"Eu em 30 e muitos anos que já estou nesta [atividade] nunca vi um pico deste género, nunca houve um volume de cadáveres, nunca foi necessário... Eu acho que só em algum momento de guerra poderia haver. E era preciso haver muitos mortos ao mesmo tempo", compara Carlos Almeida, proprietário de uma funerária em Lisboa, que no primeiro mês deste ano fez o triplo dos funerais que costuma realizar, 102. É também presidente da Associação Nacional das Empresas Lutuosas (ANEL) e é nessa qualidade que garante que os operadores funerários conseguiram sempre responder às solicitações e que se queixa do atraso ou mesmo ausência de apoio por parte das autoridades de saúde, a começar nas normas para a realização de funerais e a terminar na identificação dos grupos prioritários para as vacinas.

"Nunca fomos considerados na cadeia principal. Estamos na cadeia sanitária principal mas nunca fomos considerados como tal", critica Carlos Almeida, lamentando que os cerca de 5000 trabalhadores do setor não sejam candidatos à vacina. "99,9% do setor são pequenas e médias empresas familiares e basta afetar um para que todos os conviventes ou colegas trabalhadores sejam também afetados, se não doentes pelo menos profilaticamente. E portanto houve empresas fechadas sem possibilidade de prestar serviço. Porque não somos imunes", alerta, apesar de já só ter esperança de levar a vacina quando chegar a sua vez enquanto cidadão.

DestaquedestaqueHouve mais funerais, mas como foram limitados outros serviços, como por exemplo a realização de velórios, o setor acabou por sofrer uma quebra na faturação.

No último ano fez coisas que nunca imaginou fazer. "Cheguei a filmar o funeral de uma pessoa para que a filha pudesse ver no hospital", conta. E deparou-se com "um avolumar de cadáveres nos hospitais" que, lá está, só imaginava possível numa guerra. "Tudo o que era frio estava esgotado. Até o frio residente dos próprios hospitais. Dou um exemplo, o hospital de Santa Maria é capaz de ter cerca de 40 câmaras de frio e tinha cinco contentores à porta. Habitualmente em Santa Maria poderão ocorrer 10 óbitos por dia. Portanto, 40 câmaras será mais que suficiente para a necessidade ordinária do hospital. Agora em pandemia nada disto é razoável", descreve.

Os cadáveres acumularam-se à espera de serem sepultados ou cremados. Na região de Lisboa a espera para um funeral chegou a ser de dez dias. "E se estivessemos à espera do Instituto dos Registos e Notariado para fazer os funerais então era melhor esquecer... só com 15 dias ou então tinham de pôr meios humanos a trabalhar noite e dia", diz. O avolumar de cadáveres em espera trouxe à tona, segundo o presidente da ANEL, "muitas deficiências" relacionadas com uma "gestão romântica" dos cemitérios "que não se coaduna com aquilo que estamos hoje a viver".

"Se fosse necessário um cemitério ter 30 covas para inumação urgente não tinha. Só se o fizesse fora do muro. A visão romântica que se tem é que deixam emparcelar o cemitério. Ou seja, todas as famílias compram dois metros quadrados de terreno, realizam lá o funeral, ornamentam e aquilo fica para a vida. Perpetuamente. O cemitério fica todo emparcelado e não temos covas para atender alguém numa pandemia", expõe, salientando a dificuldade de resolver o problema por se tratar de "uma questão sensível às populações".

Mais funerais, cujo preço médio oscila entre os 1600 e os 2200 euros, não foi sinónimo de maior faturação, garante Carlos Almeida, uma vez que as funerárias se viram impedidas de oferecer alguns serviços, nomeadamente ao nível da preparação do cadáver ou ligados à realização do velório, que é proibido. "Então houve uma quebra do volume de faturação bruta de cerca de 20 a 30%", afirma.

Para as famílias, além da perda, fica a despesa. E num tempo de aperto, nota-se a dificuldade para pagar as custas de um funeral. "Sempre se notou. A precariedade não é de agora, já existia, agora foi acentuada. E quando acontece mais do que um falecimento, logo a seguir estão os problemas. Aliás, foi público que a medicina legal nunca teve tantos cadáveres não reclamados", alerta Carlos Almeida, que continua a perseguir o objetivo de conseguir que seja criado um financiamento específico para cerimónias fúnebres. "Isto não é uma escolha de consumo que possamos adiar, é algo que necessitamos para o imediato", realça. Enquanto não ganha essa luta, existe o funeral solidário, igual em todas as agências e que custa atualmente 412 euros, mais a taxa de cemitério. Um mecanismo que, "de certeza", aumentou com a pandemia.

O que também registou um aumento foi a venda de urnas ecológicas e com visor, que já existiam mas que em tempos de pandemia trouxeram tranquilidade aos familiares que, assim, puderam ver os cadáveres. "Tenho o máximo respeito pelas pessoas e elas poderem visualizar o seu ente querido e de colocarem em questão se era ou não o ente querido que lá estava - porque houve três ou quatro casos de trocas", diz Carlos Almeida, realçando que graças ao empreendedorismo empresarial já existe um sudário com visor, que além de mais ecológico se revelará mais económico, uma vez que evita a utilização de dois ou três. "Estou à espera que se adote esse modelo de sudário e que seja a resposta para cumprirmos a norma" da Direção Geral de Saúde para a realização de funerais.

Passado o pico, fica toda a burocracia que se acumulou e que também é necessário tratar. "É bastante trabalhosa mas é invísivel. Não se vê mas é sentida por cada família... Agora nós também não conseguimos responder na mesma rapidez que as pessoas já estavam habituadas. Para ter uma ideia, iniciávamos o processo do funeral e normalmente em dez, 12 dias teríamos todas as etapas concluídas. Agora é um pouco mais, pode chegar mesmo a um mês", avisa Carlos Almeida.

sofia.fonseca@vdigital.pt

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