Centro do SEF onde Ihor morreu cobra 100 euros de diária
"O EECIT [o local onde ficam detidos os estrangeiros que chegam ao aeroporto de Lisboa e cuja entrada em território nacional não é admitida] tem capacidade para 60 pessoas e estavam lá mais de 100. As condições eram deploráveis."
A afirmação é de Irina Fonseca, inspetora do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, testemunhando na terceira sessão do julgamento dos três colegas acusados pelo homicídio de Ihor Homeniuk e refere-se à altura, de 10 a 12 de março de 2020 (dia da morte) em que o cidadão ucraniano esteve sob custódia daquela polícia.
As condições deploráveis a que a inspetora se refere e que testemunhas ouvidas pelo DN atestam - parte das pessoas colocadas no Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) estavam a dormir em colchões no chão - não impediam o SEF de cobrar uma diária de hotel de três estrelas: 90 euros mais IVA, a pagar pelas companhias aéreas que as haviam transportado. É isso mesmo que a lei prevê: os estrangeiros chegados ao país por via aérea, cuja entrada não seja admitida em território nacional e que fiquem "colocados" em centros de detenção do SEF, os designados "centros de instalação temporária", à espera ou de voo de repatriamento ou da decisão sobre eventual impugnação da decisão do SEF ou sobre o seu pedido de estatuto de refugiado, têm a sua manutenção a cargo das transportadoras aéreas.
A diária é fixada por portaria. Quando Ihor morreu, era de 90 euros; em agosto de 2020, o valor foi atualizado para 100 euros.
Malgrado cobrar este valor, o SEF deixou o centro de detenção do aeroporto de Lisboa, considerado, por ser aquele onde eram colocadas mais pessoas, o de maior risco nas avaliações da Provedoria de Justiça, no Mecanismo Nacional para a Prevenção da Tortura e da própria Inspeção Geral da Administração Interna (o órgão estatal que tem a função de fiscalizar as polícias), exclusivamente entregue aos funcionários de uma empresa de segurança privada, a Prestibel. Apesar de a orgânica do SEF e o regulamento do EECIT preverem a presença de um coordenador daquela polícia no local, este posto foi deixado vago durante meses por baixa da pessoa que o ocupava, sem haver a preocupação de a substituir.
Assim era a situação em março de 2020, quando Ihor morreu e estavam mais de 100 pessoas naquele espaço - permitindo ao SEF embolsar mais de 10 mil euros por dia.
Quase 10 mil euros foi precisamente a conta que o SEF enviou, em 2018, a uma companhia aérea - e relativa apenas a dois cidadãos. "Eram dois estrangeiros que pediram asilo e ficaram detidos por um período longo - um ficou 41,5 dias e o outro dois meses", explica ao DN um funcionário da dita companhia, que falou sob condição de anonimato.
O valor relativo ao primeiro cidadão era de 3735 euros e o do segundo 5400; a fatura, que não trazia menção de IVA, era de 9919 euros. De acordo com o funcionário, a companhia impugnou o pedido de cobrança, por considerar que a partir do momento em que há pedidos de asilo cessa a sua responsabilidade, já que a decisão pode levar muito tempo e depende das autoridades portuguesas. "O SEF não respondeu mais, pelo que se conclui que aceitou a impugnação. Mas tentam sempre que a transportadora pague."
Este funcionário considera também que nos casos em que a companhia aérea providenciou viagem de regresso dentro das primeiras 48 horas e o cidadão não embarca - como sucedeu com Ihor, que recusou embarcar a 11 de março - a responsabilidade da mesma cessa também.
Mas essa conclusão não é evidente. O artigo 41º (responsabilidade das transportadoras) da lei 23/2007 de 4 de julho, ou lei de estrangeiros, não estabelece prazos: "A transportadora que proceda ao transporte para território português, por via aérea, marítima ou terrestre, de cidadão estrangeiro que não reúna as condições de entrada fica obrigada a promover o seu retorno, no mais curto espaço de tempo possível, para o ponto onde começou a utilizar o meio de transporte, ou, em caso de impossibilidade, para o país onde foi emitido o respetivo documento de viagem ou para qualquer outro local onde a sua admissão seja garantida. (...) Enquanto não se efetuar o reembarque, o passageiro fica a cargo da transportadora, sendo da sua responsabilidade o pagamento da taxa correspondente à estada do passageiro no centro de instalação temporária ou espaço equiparado."
Essa taxa é fixada, como já referido, em portaria - a mais recente sendo a 204/2020, de 24 de agosto. A lei prevê ainda que a transportadora pague uma outra taxa ao SEF, a correspondente à escolta, por esta polícia, de cidadãos que não queiram regressar de motu próprio (como sucederia com Ihor, que era suposto viajar no dia 12 já com escolta - nesse caso, porém, esta seria providenciada pela companhia aérea), taxa essa que era de 350 euros até agosto de 2020, sendo agora de 380. Pode ainda haver lugar à aplicação de coimas, previstas no artigo 194º. Neste lê-se: "O transporte, para o território português, de cidadão estrangeiro que não possua documento de viagem ou visto válidos, por transportadora ou por qualquer pessoa no exercício de uma atividade profissional, constitui contraordenação punível, por cada cidadão estrangeiro transportado, com coima de (euro) 4000 a (euro) 6000, no caso de pessoas coletivas, e de (euro) 3000 a (euro) 5000, no caso de pessoas singulares."
A questão sobre se a responsabilidade da transportadora pelos estrangeiros não admitidos cessa ou não ao fim de um determinado período de tempo foi abordada no julgamento do homicídio de Ihor pela procuradora Leonor Machado. Esta fez várias perguntas, a inspetores do SEF ouvidos como testemunhas, sobre se era ou não verdade que a dita responsabilidade das transportadoras cessava ao fim de 48 horas (o prazo máximo em que alguém pode, em Portugal, estar detido sem ser presente a um juiz) e que a partir daí era o SEF que tinha de arcar com as despesas - e que por esse motivo haveria orientações para "despachar" os estrangeiros dentro desse período de tempo, implicando que a recusa de embarque de Ihor no dia 11 teria impedido esse desiderato.
Nenhum dos depoentes questionados pela procuradora confirmou ou infirmou a teoria, que aquela parece ter deixado cair depois das primeiras sessões do julgamento, não tendo feito perguntas nesse sentido ao ex-diretor de Fronteiras de Lisboa, que seria a pessoa mais indicada para esclarecer o assunto e que testemunhou no julgamento.
Refira-se porém que se tivesse embarcado na tarde do dia 12, como previsto (morreu quando se preparavam para o levar ao avião), Ihor não chegaria a exceder as 48 horas em custódia, já que o prazo só conta a partir do momento em que é proferida a decisão de recusa de entrada, e apesar de ele ter chegado a Lisboa na manhã de 10 de março, essa decisão data do final da tarde desse dia. Ainda assim, como o DN já noticiou, o SEF enviou um mail ou fax ao tribunal de pequena instância criminal para que fosse autorizada a permanência de Ihor em custódia por mais cinco dias; o juiz de turno deferiu sem ver o detido e baseando-se em informações incompletas e falsas (não lhe foi comunicado que Ihor tinha sido assistido no hospital, que estava a ser medicado e que se recusara a embarcar - foi antes afirmado que a companhia ainda não providenciara transporte).
O DN pediu ao SEF que esclarecesse se existe um período de tempo limite para a responsabilidade das transportadoras, ou seja, se existe um momento a partir do qual a responsabilidade passa para a polícia de estrangeiros. Quisemos também saber qual o valor estimado da manutenção diária dos cidadãos estrangeiros no EECIT, assim como qual o valor mensal da cobrança relativa aos cidadãos "instalados" nesse centro durante o ano de 2019 - ou seja, qual foi o balanço naquele ano relativo à entrada de dinheiro entregue pelas companhias aéreas para pagar as "diárias" dos detidos.
O SEF recusou responder a todas estas perguntas, assim como à relativa à cobrança, ou não, da diária relativa a Ihor e se este recebeu algum cartão de impulsos telefónicos (ou fez chamadas grátis do telefone do EECIT enquanto esteve detido) - a forma como era possibilitada aos detidos a comunicação com o exterior, e se essa comunicação foi possibilitada a Ihor, foi outro assunto que mereceu várias perguntas quer à procuradora quer ao advogado da família de Ihor, que assiste a acusação.
A resposta enviada ao jornal pela polícia de estrangeiros limita-se a remeter para a legislação, indicando o facto de estar a decorrer o julgamento como motivo para não "comentar": "As normas e custos relativos à permanência de cidadãos estrangeiros em centros de instalação temporária ou espaços equiparados constam da Lei de Estrangeiros e em portaria própria (...). Relativamente às questões decorrentes dos acontecimentos que envolveram a morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, e que estão agora em fase de julgamento, o Serviço não tem qualquer comentário a prestar."
Naturalmente, o DN não pediu "comentários" ao SEF mas esclarecimentos simples: cobrou a diária relativa a este cidadão, e se sim, qual o valor cobrado? Entregou-lhe um cartão telefónico ou tem registo de que ele usou o telefone do EECIT (de acordo com a informação dada no julgamento, os detidos teriam direito a cinco minutos de chamada grátis no telefone do centro e essa utilização deve ser objeto de registo pelos vigilantes)? Nenhuma dessas questões releva para responsabilidade criminal no julgamento. Decerto também não está ali em apreciação o valor cobrado pelo SEF em 2019 por estrangeiros detidos ou qual o custo efetivo com a manutenção dos mesmos. Trata-se de factos que têm a ver com o funcionamento desta instituição pública e em relação aos quais não parece haver qualquer motivo, ainda mais atendendo ao ocorrido, para não serem públicos.
Também a Transportadora Aérea Nacional declinou responder ao DN sobre os pagamentos efetuados ao SEF relativos a cidadãos estrangeiros "instalados" nos centros de detenção, alegando não ter contas com esse pormenor "A TAP relaciona-se com milhares de entidades, públicas e privadas, e não disponibiliza na apresentação de contas o detalhe da sua relação, nomeadamente de recebimentos e/ou pagamentos, com cada uma das entidades com que se relaciona."
No último Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo (RIFA) do SEF, referente ao ano de 2019 - o qual não indica o número de estrangeiros detidos nos CIT e EECIT - regista-se um aumento de 32,9% no total de recusas de entrada em Portugal "a estrangeiros que não reuniam as condições legalmente previstas para a sua admissão no País", a maioria das quais no aeroporto Humberto Delgado (96,6%) com 4823 recusas. O que, mesmo se nem todos chegam a ficar nos centros de detenção, evidencia a pressão sobre este ponto de fronteira.
E o RIFA mostra que os principais países de origem dos estrangeiros a quem foi recusada a entrada beneficiam, a maior parte, de voos TAP. Cerca de 79,4% das recusas de entrada incidii sobre cidadãos nacionais do Brasil (3.965), sendo as restantes nacionalidades mais relevantes a angolana (202), da Guiné-Bissau (72) e a senegalesa (54).
O relatório mostra ainda que estas recusas dispararam a partir de 2017, quando foram aprovadas alterações à Lei de Estrangeiros, com uma maior abertura à legalização de imigrantes, e que acabou por ter o "efeito chamada" (ou seja, trazer mais estrangeiros ao país na perspetiva de poderem ficar). Efeito esse travado pelo SEF no aeroporto: assim, por exemplo, tendo em conta os dois principais motivos para a recusa, se em 2017 apenas 464 estrangeiros viram recusada a sua entrada por falta de visto, em 2019 essas recusas dispararam para 2618 (cinco vezes mais); também a recusa por "falta de motivo que justifique a entrada" aumentou para quase o triplo, de 664 em 2016 para 1848 em 2019.
Estes dois motivos de recusa somam 4466; de acordo com o Relatório de Segurança Interna de 2019, o SEF terá determinado o regresso (ou seja a saída do território nacional) de 4590 pessoas, sendo que, citando o secretário de Estado Adjunto da Administração Interna Antero Luís numa conferência da IGAI em outubro de 2020, só 305 terão saído efetivamente, das quais 295 com retorno forçado - isto é, sem que o fizessem voluntariamente.