Reguengos de Monsaraz. "Deixaram o vírus entrar no lar e começar a matar quem lá estava"
No cemitério Teresa Pereira, de 46 anos, lava a campa que primeiro foi da avó e que agora acolhe também a mãe. "Parece mentira", desabafa. Nunca imaginou que tão cedo estivesse a fazer à mãe o que, como funcionária da Junta de Freguesia de Reguengos, faz a tantos outros que nem conhece. Maria Rosa Aleixo morreu no dia 29 de julho, pouco mais de um mês depois de ter sido levada do lar da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva (FMIVPS) para o Hospital do Espírito Santo, em Évora, com covid-19.
"Foi das primeiras a saber que estava infetada e a ser transferida", confirma Teresa, apesar de ela "tanto ter pedido a Deus que a protegesse da doença". "Se o arrependimento matasse, já não estava aqui. Só queria o melhor para a minha mãe e pensei que era metê-la no lar", continua. Se alguém tem culpa "não sou eu ou a minha mãe. Eles é que a mataram", afirma de voz embargada. "Deixaram o vírus entrar no lar e começar a matar os que lá estavam", argumenta, abanando a cabeça.
O silêncio marca o fim da manhã na última morada das gentes da terra. O mármore erguido quase que se perde de vista por entre os 30 talhões que ali foram crescendo desde 1865. O último, ao fundo, à direita, acolhe os que ali chegaram mais recentemente e que sucumbiram ao surto da covid-19 no lar, identificado a 18 de junho. "Só uma pessoa foi para São Marcos, os outros vieram para aqui", dizem-nos.
Foi o maior surto do país registado num lar, instituições onde a doença, até junho, e segundo dados do Ministério da Saúde, já tinha infetado mais de 1500 pessoas, num universo de 11 mil utentes. Foi até agora o maior surto no Alentejo, com 162 casos de infeção - 80 utentes do lar, 26 profissionais e 56 da comunidade - e 18 mortes - 16 utentes, uma funcionária, Ludmila, 42 anos, mãe de três filhos, e um homem da comunidade.
O surto apanhou toda uma cidade desprevenida e que agravou os números da região mais poupada à covid-19. Nesta sexta-feira havia 799 casos de infeção e 22 mortos. Ao mesmo tempo, o surto que mais polémica está a gerar na sociedade portuguesa.
A Ordem dos Médicos foi a primeira a instaurar um inquérito, na base estavam as denúncias feitas pelos médicos ali colocados pela Administração Regional de Saúde do Alentejo (ARSA) para dar apoio à instituição. As mesmas denúncias tinham sido antes transmitidas a esta entidade e ao Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) Alentejo Central , que "não atuaram", dizem-nos. E quando "a ordem tomou conhecimento teve de atuar", explica a dirigente que liderou o inquérito, a secretária da Secção Regional do Sul.
Filipa Lança, médica anestesista, conta que chegaram ao lar de Reguengos a 16 de julho, para ouvir a direção técnica do lar e funcionários, antes tinham ouvido médicos e analisado os processos clínicos no hospital. Os funcionários não quiseram falar, as famílias que ainda lá têm pessoas pediram anonimato e as suas declarações não são consideradas no relatório final, explica ainda a médica.
As conclusões da ordem foram divulgadas no dia 8 de agosto e apontam falhas à fundação, incumprimento das regras e orientações emanadas pela Direção-Geral da Saúde (DGS) para o combate à covid-19, mas também às autoridades de saúde, como à ARS do Alentejo. Filipa Lança considera mesmo que "há responsabilidade da direção técnica da instituição, mas também das autoridades de saúde locais e centrais, pois não basta à DGS implementar normas e orientações. Alguém tem de fiscalizar".
Em comunicado, e como reação ao documento a que diz não ter tido acesso, o conselho de administração da FMIVPS garante que cumpriu tudo o que foi recomendado pelas autoridades de saúde e que tudo fez pelos utentes.
A médica que representa a ordem diz que o que foi feito não chegou. "As medidas que tomaram quando já tinham quase todos os doentes infetados deviam ter sido tomadas antes."
Filipa Lança dá mesmo exemplo de algumas "situações básicas. Os doentes com sintomas e que eram testados não foram postos em isolamento profilático, ficaram junto dos outros utentes até terem o resultado do teste". Algo que poderá ter permitido que o vírus rapidamente se disseminasse pelos utentes e funcionários. "Acredito que tivessem tentado fazer o melhor que podiam, mas quando perceberam que não tinham recursos humanos para dar resposta aos utentes e que não tinham sequer espaço para manter a distância devida entre camas, deviam ter tomado medidas." Isto mesmo consta do relatório que a Ordem dos Médicos entregou ao Ministério Público.
Aliás, esta terá sido a principal falha: "Falta de recursos, a ausência de espaço para cumprir as normas, ausência de circuitos diferenciados. Isto é o básico."
O Ministério Público já instaurou um inquérito para averiguar as mortes. A Ordem dos Advogados está a trabalhar também no sentido de apurar se os direitos destes utentes foram postos em causa ou não. O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social não respondeu ao DN sobre o que iria fazer em relação a esta situação.
A Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS) defendeu a fundação e disse não reconhecer estatuto à ordem para "fazer tais acusações". Tiago Albaroado, presidente da distrital da CNIS do Alentejo, diz: "Temos estado a acompanhar o processo e não temos dúvidas em relação à idoneidade do conselho de administração da fundação e dos seus profissionais, bem como dos cuidados que foram prestados ao longo deste tempo." O mesmo critica a Ordem dos Médicos: "Não basta fazer este tipo de observação é preciso prová-la", mas se tal vier a ser provado pela justiça, "então, alguém que assuma as responsabilidades".
Na terra é o que se espera, que se apure a verdade. "Nunca tínhamos vivido tal coisa. Isto até deu má imagem, as pessoas já não vêm cá. Vamos ver se algum dia se saberá o que se passou ou não", diz quem passa nas ruas agora quase desertas de Reguengos, o que "já não era normal mesmo com calor e durante o mês de agosto".
Teresa conta-nos o que depois é dito e retido no centro da cidade por tantos outros, mesmo sem certezas de verdade. "Foi uma funcionária que levou o vírus. Ela teve cá família de Lisboa, que lhe ligou depois a dizer que fizeram o teste e estavam positivos. Ela ligou para o lar a perguntar se ficava em casa e disseram-lhe que não, não tinha sintomas e tinha de ir trabalhar porque já havia falta de pessoal. Foi assim que o vírus entrou", afirma. "Não era de terem tomado logo precauções?", questiona.
Hoje, já não há receio que a impeça de falar. Aliás, gostava de que todas as famílias de vítimas e que outras pessoas que sabem o que ali se passou "fizessem o mesmo. É um alerta que deixo".
O sobrinho Leonardo Pereira criou um grupo público no Facebook de apoio à justiça aos familiares, funcionários e amigos das vítimas de covid do lar da fundação #juntos somos mais fortes#. "Só queremos que seja feita justiça, não podem tratar assim as pessoas, até para que nada volte a repetir-se", explicou o jovem. Teresa e Leonardo reconhecem que a revolta aumenta na família, tal como a tristeza, à medida que o tempo passa e que vão sabendo coisas que se passavam na instituição. "Agora é que as pessoas vão falando. Se trabalhasse lá, teria denunciado", diz Teresa, acrescentando: "Custa-me muito pensar no que a minha mãe pode ter sofrido."
Ela é uma dos cinco filhos que Maria Rosa Aleixo teve. "Era uma mulher lutadora, bem-disposta e boazinha. Quem a conhecia sabia que era assim", lembra. A família teria celebrado os seus 71 anos no dia 10 de julho, se não estivesse internada no hospital em Évora. "Nem pudemos falar com ela, morreu sozinha. É triste."
Os filhos de Maria Rosa não a viam desde março, "assim que foi dada ordem para não haver visitas nos lares, mas falávamos todos os dias com ela. Muitas vezes, era ela que ligava para nós. Foi ela que nos disse que estava a ficar com dores de garganta e tosse, mesmo antes de sabermos que havia por lá a doença. Telefonei para a fundação, disseram-me que era coisa ligeira e que já estava a ser tratada".
Mas o quadro começou a agravar-se, "ela ficou com diarreia e a vomitar. Voltei a ligar para o lar, ainda me responderam que não tinha de estar a ligar todos os dias. Quando soube que havia pessoas a irem para Évora, liguei a perguntar pela minha mãe e disseram-me que estava estável. Um familiar de outra pessoa disse-me que eles estavam a mentir, para ligar para o hospital. Liguei e disseram-me que a minha mãe tinha dado entrada há duas horas". Teresa não se conforma: "Isto não se faz."
Abalou com a irmã para Évora, "no hospital disseram-nos que a minha mãe chegou desidratada, com um rim parado e outro quase a parar. Não lhe davam água. Tem de se dizer a verdade", afirma.
Maria Rosa lutou contra o vírus. "Esteve em coma induzido, quando melhorou tiraram-na das máquinas e voltaram a fazer-lhe testes para saber se ainda tinha covid. Chegou a ter três testes negativos, ficámos contentes, mas logo a seguir ligaram-nos a dizer que tinha apanhado uma infeção hospitalar. Disseram-nos que era a despedida, mas ainda resistiu mais uma semana."
Teresa não esquece o fim de tarde em que trouxe a mãe de Évora para a casa mortuária do cemitério. "Só nós, porque a covid não deixa estar mais ninguém, tivemos de fechar a porta e deixá-la sozinha. É muito triste. Quando penso no que a minha mãe passou, sinto revolta." Por isso, "agora falo. Tem de ser feita justiça. É o que peço."
A filha de Maria Rosa não sai do cemitério sem mais uma vez olhar a campa da mãe. Está no intervalo de almoço. Chama a colega que agora trabalha com ela, Alexandrina Galante, de 33 anos, e que foi funcionária do do lar da fundação até maio deste ano. "Estive lá durante dois anos, quando terminou o último contrato tinham de me colocar nos quadros, mas já estávamos na pandemia e vim embora", conta. É mãe solteira e teve de se fazer à vida, a filha tem 6 anos, inscreveu-se no centro de emprego e conseguiu contrato por um ano na junta de freguesia. "Agora, trabalho aqui no cemitério como em outras unidades da junta."
Alexandrina, como tantos outros, tem receios, fala connosco fora do horário de trabalho, admite que houve situações que a surpreenderam quando chegou ao lar, e que até falou delas numa reunião, mas calou-se depois de lhe dizerem: "Só os seus olhos é que veem isso."
Teresa reforça que "deviam ter dito o que se passava. Se trabalhasse lá era o que fazia". Alexandrina justifica-se: "Estava lá há pouco tempo e havia colegas que trabalhavam na fundação há mais de 20 anos, era a minha palavra contra a delas." Fez o seu trabalho, tinha pena dos idosos, a verdade é que precisava dos 637 euros que trazia para casa. Quer continuar a trabalhar, aquilo que sabe outros sabem também, por isso não o quer dizer. Na terra comenta-se que "havia muitas pessoas para poucos funcionários". Maria Catarina, lojista, conta o que viu quando procurou um espaço para colocar a mãe há uns anos: "Fiz uma visita ao lar, entrei por ali dentro e passei por uma série de salas sem encontrar ninguém, nenhum funcionário. Não achei bem, fui visitar depois o da Santa Casa e foi aí que deixei a minha mãe. Já há anos se sabia que havia muita gente para poucos funcionários."
Ao DN quem lá trabalhou também e pede anonimato diz que a mudança de fraldas era, naquela altura, feita de manhã, depois do almoço e ao deitar. Ao fim de semana, não havia enfermagem, eram as empregadas que davam a medicação. "Havia fins de semana que chegavam a estar só três a quatro funcionárias para mais de 80 utentes, alguns acamados. E havia quem só tomasse o pequeno-almoço pelas 10 ou 11 da manhã. O almoço era às 12.30, a essa hora não tinham fome, não comiam, depois às duas da tarde já tinham, mas esperavam pelo lanche. Nesses dias era muito pesado."
O jantar era às 17.30, quem não tivesse fome ou não gostasse da comida, não comia e tinha de esperar pela ceia. "Não havia falta de comida, mas os idosos não estão habituados às novas comidas e não comiam. Não havia quem lhes desse à boca ou quem fizesse que comessem, e à noite queixavam-se de que tinham fome. Havia uma ceia de bolachas, iogurte, leite ou chá quente", relembra a mesma pessoa.
A água distribuída aos doentes era tirada das torneiras para garrafões de cinco litros para depois se encher as garrafas de cada um. Os quartos tinham mais camas do que deviam, "nem sequer se conseguia passar com a bacia para limpar os idosos". Na fase da pandemia, há quem diga que havia escassez de equipamento individual de proteção, "sobretudo luvas, não dava para mudar de um doente para outro. Eram sempre as mesmas".
O DN confrontou o conselho de administração da FMIVPS com tais informações, que respondeu por escrito, dizendo que eram "uma tremenda injustiça num momento dramático para esta instituição". Em momento algum, refere o CA, "chegou ao nosso conhecimento qualquer reclamação ou informação da direção técnica que evidenciasse alguma dificuldade em termos de recursos humanos".
Mais: "O quadro de pessoal da fundação é composto por mais recursos humanos do que os previstos no acordo de cooperação assinado com a Segurança Social."
Aliás, "à data da eclosão do surto, o quadro de pessoal era composto por mais de 50 trabalhadores, respeitando integralmente os indicadores definidos pelo artigo 12.º da Portaria n.º 67/2012, conforme evidências oficiais em nosso poder; apenas uma exceção: dois ajudantes de cozinha a menos, compensado por dois cozinheiros a mais", defendendo que "se alguma vez algum trabalhador teve essa atuação não foi minimamente do nosso conhecimento e jamais foram essas as instruções ou práticas explicitamente transmitidas por quem dirige esta Instituição".
Filipa Lança disse ao DN que "o lar estava na sua lotação máxima. Tinha 84 utentes. Havia quartos com duas, quatro e seis camas, onde não era possível manter as distâncias regulamentadas".
A médica refere mesmo que "a lei não obriga a ter médicos em permanência nos lares, mas obriga a ter enfermeiros, um para 40 utentes, se estes forem autónomos, ou um para 20 se houver dependentes. O lar tinha dois enfermeiros que prestavam cuidados por algumas horas e uma boa parte dos utentes já eram muito frágeis. O rácio estava no limiar e manifestamente era pouco para os cuidados de que os utentes necessitavam".
O Sindicato dos Enfermeiros Portugueses reuniu-se com a direção técnica do lar, e diz ao DN que a própria assumiu ter tido "duas enfermeiras em permanência há uns tempos, mas que foram trabalhar para o hospital de Évora e agora só faziam umas horas". O SEP nunca conseguiu falar com as colegas.
Quando lá chegou no dia 16 de julho, a ordem falou com a diretora técnica, que tinha assumido o cargo na altura, porque a anterior estava em isolamento, e pediu o plano de contingência, "até para se comparar com o que estavam a fazer. A diretora disse que não o tinha, mas que o iria pedir e nos daria. Mais tarde foi-nos enviado o plano de contingência do pavilhão", da unidade de cuidados continuados, para onde depois foram transferidos os doentes infetados e onde não há registo até agora de casos. "O plano de contingência do próprio lar nunca foi dado a conhecer aos técnicos que ali foram colocados pela ARS para apoiar no tratamento da doença. E mesmo que o plano existisse, não estavam a agir de acordo."
Filipa Lança sublinha que não havia quartos de isolamento e que "não houve separação de utentes nem de equipas". Depois, o problema é que "tiveram muitos funcionários infetados e não conseguiam dar resposta aos utentes, tentaram colmatar as falhas com enfermeiros da unidade de cuidados continuados, mas já era tarde".
Uma semana depois, no dia 26 de junho, já 80 utentes do lar e 26 funcionários estavam positivos. O surto foi identificado a 18 de junho, três dias depois a ARSA estava a ordenar a colocação de médicos de hospitais da região em Reguengos. Ali chegaram quatro médicos hospitalares, médicos militares e enfermeiros.
De acordo com o relatório da Ordem, os profissionais depararam-se com situações de idosos desidratados e descompensados, por não lhes terem sido prestados os cuidados devidos, como a toma da medicação diária para as patologias de que sofriam. Fontes próximas de alguns destes médicos dizem que ainda hoje "os colegas não dormem a pensar nas situações que viram". Por isso, "preferem não falar publicamente, já falaram no inquérito da ordem e depois falarão na justiça", explicam-nos.
Só no dia 10 de agosto, quase dois meses depois do surto, é que este foi dado como controlado pela autoridade de saúde. O DN pediu autorização à ARSA para falar com o delegado de saúde, mas não obteve resposta. Contactou a Câmara de Reguengos para falar com o presidente, José Calixto, mas foi-nos dito, que "o surto estava terminado e que o presidente não dará mais entrevistas".
As explicações ou comentários pretendidos teriam de ser solicitados à fundação. Assim fizemos. Na fundação, o vogal do conselho de administração, João Silva, pediu-nos que enviássemos um e-mail com questões, mas ao cuidado do presidente do conselho de administração, que é o presidente da câmara. Apesar de este, e quando o encontrámos nas ruas de Reguengos durante a nossa reportagem, reafirmar que não prestaria declarações. Ao telefone tinha o Presidente da República que lhe deu uma palavra de consolo pela situação e até conselhos. Agora, "é preciso ter calma".
Nas respostas ao DN, e no caso específico dos doentes desidratados, o conselho de administração da fundação refere que "os utentes estavam, nessa altura, quando foram transferidos, acompanhados em permanência por equipas médicas e de enfermagem (civis e militares), pelo que temos a firme convicção de que esses profissionais nunca deixariam que isso acontecesse". O relato dos profissionais reportava às situações detetadas assim que ali chegaram.
A fundação admite: "Recuando ao momento inicial do surto, a partir do dia 18 de junho, deve ser recordado que a instituição perdeu a esmagadora maioria dos seus trabalhadores. O lar deixou de ser lar e de poder ser gerido pelos recursos humanos da fundação, até porque passou a ser um 'alojamento sanitário' onde os utentes, positivos à covid-19, passaram a ter cuidados de equipas médicas e de enfermagem e pessoal auxiliar contratado pela Segurança Social (através da Cruz Vermelha Portuguesa), pela Proteção Civil Municipal e militares das Forças Armadas Portuguesas, logo a partir de dia 21 de junho."
Ou seja, "dos mais de 50 trabalhadores da fundação continuavam ao serviço não mais de uma dezena, fundamentalmente na lavandaria e na cozinha. A fundação acredita que estes profissionais tudo fizeram para tratar os utentes deste 'alojamento sanitário' com todos os cuidados de saúde de que eles necessitavam". Uma convicção que, dizem, "é fundada no facto de as certidões dos óbitos não referirem essas patologias como a causa da morte".
Sobre a versão que corre na terra de como o vírus entrou no lar, afirma: "Desconhecemos por completo e as autoridades competentes não nos transmitiram esses supostos factos. Uma vez mais, é de extrema importância conhecermos as evidências dessa informação. Temos mantido contactos diários com a Autoridade de Saúde Pública e se a investigação epidemiológica apontasse nesse sentido, presumimos que da mesma teria sido dado conhecimento a esta instituição para atuação de forma imediata e preventiva."
A fundação reitera ainda que "cumpriu todas as orientações das autoridades públicas" e de acordo "com o seu plano de contingência e plano de operacionalização de visitas, os quais foram produzidos, enviados à autoridade competente e devidamente aprovados pela mesma". Mas no futuro "irá reforçar e implementar as seguintes medidas: planeamento, armazenamento e gestão de stocks de EPI, para o período outono/inverno, delineamento de fluxograma de procedimento e comunicação entre entidades em matéria de saúde", que irá redefinir, "de acordo com as atuais circunstancias, o plano de ação para higiene, desinfeção e gestão de resíduos e o reforço das medidas de distanciamento dos utentes".
Assumindo que "face à dimensão do surto que eclodiu no lar desta instituição irá igualmente assegurar-se de que a direção técnica cumpre o reforço das medidas gerais para profissionais, reforço e vigilância da higienização dos utentes e controlo ambiental dos espaços, deteção de novos pontos críticos", comprometendo-se à "criação de planos de intervenção/circuitos próprios (lavandaria, cozinha, entre outros), manutenção das zonas de isolamento já existentes, distintas, para casos suspeitos ou positivos, bem como à avaliação de todas as necessidades adicionais que sejam indicadas pela entidade tutelar". Vai mesmo intensificar "a formação contínua aos recursos humanos".
O futuro já está aí. O passado conta com 18 mortos. E sobre o apoio aos familiares, a fundação afirma que "todos foram individualmente contactados pela estrutura técnica, imediatamente após os óbitos ou logo que o Hospital do Espírito Santo os informava".
Foi ainda "assegurado o apoio psicológico em caso de necessidade, bem como o apoio ao nível dos processos administrativos dos funerais". Sobre a funcionária que faleceu, "foi prestado todo o apoio na preparação das cerimónias fúnebres e a fundação assegurará todo o pagamento dos valores não comparticipados pela Segurança Social".
Adrian, marido de Ludmila, de 42 anos, funcionária do lar, mãe de três filhos, David, de 18, Daniel, de 15, e Erica de 5 anos, diz ao DN que nada compensa a perda de Mila, como era tratada pelos amigos e vizinhos. "Não é fácil", afirma. Foram dois meses em que tudo mudou numa família moldava que "queria fazer a vida aqui, comprar casa aqui, os filhos queriam ficar aqui e agora acontece isto". Ludmila foi das primeiras a ter sintomas.
Adrian conta que começou a sentir-se muito cansada a 16 de junho e que já não conseguiu ir trabalhar. "Teve medo porque há mais de uma semana que dizia que havia idosos com febre. No dia 17, começou com tosse e um pouco de febre. Mas só lhe fizeram teste à covid no dia 18. Deu positivo, mas mandaram-na ficar em casa e controlar os sintomas. Ela piorava e ninguém a mandava para o hospital. No dia 23, sentiu-se tão mal que ligou para os bombeiros, mandaram ligar para a linha SNS24, ligou e veio uma ambulância buscá-la."
No dia 25 já estava ligada à máquina no hospital de Évora, morreu no dia 1 de julho. Desde que entrou na ambulância que a família nunca mais falou com Ludmila. Todos testaram positivos à doença e estavam em isolamento em casa. "A filha agarrava no telemóvel para falar com a mãe. Eu dizia que ela estava a lutar contra o vírus, levei uma semana para lhe contar que tinha ido para o céu."
Adrian foi o primeiro da família a chegar a Portugal. Há mais de nove anos. Começou por trabalhar no matadouro, agora dedica-se ao trabalho com máquinas agrícolas no campo. Na vizinhança, todos conheciam o casal. "São boas pessoas, trabalhadoras e respeitadoras", dizem-nos. Ludmila era funcionária efetiva no lar. "Se perguntar, todos gostavam dela", mas Adrian quer ver agora se tal é reconhecido e se o ajudam a cuidar do futuro dos filhos. "Ela tinha um seguro, foi infetada no lar, quero saber se tenho direitos. É só isso que quero saber." E que "a fundação responda na justiça pelo que aconteceu".
O vírus marcou a cidade alentejana e as marcas tão depressa não desaparecerão. Há quem queira explicações e justiça, há quem queira que tudo passe o mais depressa possível, "é mau para a terra. O negócio está mau, já não há turistas. As próprias pessoas da terra têm medo de sair à rua", explica Manuel Fernando, lojista. O medo do vírus impera, o medo das palavras também, e até o de ser identificado. "Aqui não nos podemos queixar, é um meio muito pequeno e há pouco trabalho", chegaram a argumentar.