Numa breve revista aos principais jornais do Brasil, temos acesso no mesmo dia à opinião sobre a atualidade do governo de Fernando Gabeira, às últimas da economia por Solange Srour e ao que se passa no mundo do futebol através de Juca Kfouri. Um quarto colunista cita Antônio Houaiss, dos mais importantes enciclopedistas da língua portuguesa..No noticiário, fala-se de Salim Mattar, o secretário de Estado em debandada do Governo de Jair Bolsonaro. Há intervenções nas edições digitais dos jornais de Espiridião Amin, que pertenceu ao partido que sustentou o regime militar, o Arena, de Tasso Jereissati, senador pelo partido de centro-direita PSDB, de Wadih Damous, pelo PT, de centro-esquerda, e da comunista Jandira Feghali, do PCdoB..Em comum, Gabeira, Srour, Kfouri, Houaiss, Mattar, Amin, Jereissati, Damous e Feghali têm a ascendência libanesa. No Brasil, de acordo com dados dos governos dos dois países e um estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2008, há perto de oito milhões de cidadãos com ligações ao país árabe. No Líbano, segundo a ONU, a população não chega a sete milhões..Dessa forma, a explosão de dia 4 no porto de Beirute que abalou a cidade, literalmente, e o resto do mundo, metaforicamente, foi sobretudo sentida no Brasil, a 10 500 quilómetros de distância..Por isso, não espantam outras notícias na tal breve revista aos jornais: o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, adormeceu com as cores da bandeira do Líbano, a imensa comunidade libanesa de São Paulo arrecadou fundos para ajudar os compatriotas e o presidente Jair Bolsonaro enviou uma missão brasileira a Beirute com seis toneladas de alimentos, remédios e outras matérias-primas..A liderá-la, Michel Temer, antecessor de Bolsonaro no Palácio do Planalto e filho dos libaneses Nakhoul Elias Temer Lulia e March Barbar Lulia, que deixaram Betabura, distrito de Koura, no norte do Grande Líbano, em 1925. Registe-se que Temer, por responder a sete processos por corrupção e outros crimes no Brasil, só pôde sair do país depois de autorizado pela justiça..Entretanto, para suceder ao primeiro libanês-brasileiro a envergar a faixa presidencial, concorreram às últimas eleições Geraldo Alckmin, do PSDB, Guilherme Boulos, do esquerdista PSOL, e Fernando Haddad, do PT, segundo classificado no sufrágio, todos também descendentes de libaneses e parte do enorme contingente de políticos brasileiros com ligação ao pequeno país do Médio Oriente.."Porquê? Talvez porque muitos dos imigrantes libaneses se envolveram com o comércio, com a indústria, com profissões liberais, o que favorece a atuação comunitária", disse, em entrevista ao DN, Fernando Haddad..Aliás, segundo Roberto Khatlab, da Universidade Saint-Esprit, de Kaslik, 6% dos congressistas brasileiros têm origem libanesa; em 2014 eram 10%..Ainda de acordo com o académico libanês-brasileiro, "a primeira profissão liberal a que a comunidade se dedicou foi a de médico" - o Hospital Sírio Libanês, onde se trataram Temer, mas também Lula da Silva e Dilma Rousseff, é um dos mais importantes centros médicos da América Latina desde a sua fundação, em 1921, na cidade de São Paulo.."É sobretudo uma segunda geração, mais adaptada à sociedade brasileira e querendo mudanças, que começa a estudar Direito e, então, a entrar na política", continua Khatlab..Mas também no mundo dos negócios, da indústria e do comércio é frequente encontrar apelidos libaneses. Em visita recente a São Paulo, o sociólogo e escritor Amin Maalouf disse em palestra com compatriotas num clube de imigrantes que o Brasil foi "a materialização do sonho libanês"..Os primórdios.Embora já houvesse relatos de árabes no país durante o período da colonização portuguesa, os primeiros registos oficiais no Brasil de "turcos" - assim chamados por terem passaportes do Império Otomano que controlava a região - são de 1871. No entanto, reza a história que a imigração em massa surgiu um pouco depois, por iniciativa do imperador brasileiro Pedro II, na sequência de uma visita sua ao Líbano, em 1876 - atracou, precisamente, no porto de Beirute, foco da explosão..Os libaneses queriam fugir da dominação otomana e da falta de oportunidades de subsistência; o gigante sul-americano, em fase de acelerada industrialização, desesperava por mão de obra nos campos e nas cidades; o charme intelectual do imperador, que dominava o árabe e até lia hieróglifos, fez o resto. "Pedro II veio a turismo, por sua própria conta, e fez doações, também do seu próprio bolso, particularmente a crianças, estudantes, órfãos, depositando somas no Banco Otomano de Beirute", revela Khatlab, autor do livro As Viagens de Dom Pedro II ao Médio Oriente e África do Norte..Por causa de acordos das autoridades brasileiras com os governos de Itália, Alemanha e Japão, as hordas de imigrantes destes países já tinham empregos preestabelecidos sobretudo nas áreas rurais. Para os libaneses sobraram as cidades. "O que parecia uma maldição tornou-se uma bênção", disse à publicação americana Executive a pesquisadora Elsa El Hachem-Kirby, da Universidade Sorbonne..Os libaneses começaram a trabalhar sobretudo como caixeiros-viajantes em jornadas de 20 horas diárias, mas, ao contrário dos imigrantes italianos, alemães ou japoneses, com o produto do seu suor a entrar diretamente nos bolsos e não a transitar para fazendeiros milionários..Conhecendo o país inteiro graças à profissão, vendiam as suas mercadorias sobretudo na Amazónia, muito procurada em virtude do ciclo da borracha, e no rico estado de São Paulo, a crescer por causa da cultura do café e das construção das redes ferroviárias..A atualidade."Os meus avós já chegaram para a construção de Brasília [nos anos 50 do século passado], eles e muitos outros libaneses ergueram a capital", conta Fernanda Sarkis, jornalista e pesquisadora universitária natural da capital do Brasil, hoje a fazer doutoramento na Universidade de Porto. "Depois, o meu avô foi dono da primeira companhia elétrica da cidade.".De facto, segundo a pesquisa "Diversidades étnicas brasileiras", conduzida pelo sociólogo Simon Schwartzman, os descendentes de árabes estão entre os mais prósperos do Brasil. Eles e os judeus. "As duas comunidades vivem em clima de tolerância total em São Paulo, casamo-nos uns com os outros e tudo", sublinha Fernando Haddad..Na maior cidade brasileira, três dos últimos oito prefeitos, entre os quais Haddad, têm ascendência libanesa - os outros são Paulo Maluf e Gilberto Kassab..A esmagadora maioria dos imigrantes no Brasil é cristã maronita, o que ajudou à integração. Libaneses muçulmanos chegaram sobretudo durante a guerra civil no país - de 1975 a 1990. Todos mantêm ligações, práticas ou sentimentais, com o país.."A minha formação até à adolescência foi dentro da cultura libanesa, da música, da comida", recorda Fernanda Sarkis..A culinária árabe é a principal relação de Cyane Alem, bisneta de libaneses, com o pequenino país. "Os meus avós faziam comidas tradicionais, com as quais eu tive contacto, depois os meus pais abriram um restaurante árabe, eu fui trabalhar com eles e aí tive algum contacto com o alfabeto, com as músicas", diz Cyane, jornalista natural de Ribeirão Preto, a cerca de 300 km de São Paulo, onde foi fundado, em 1985, o restaurante Tenda Árabe..Homus, esfiha e kibe são iguarias da região quase tão presentes no dia-a-dia dos brasileiros como os tradicionais arroz e feijão.."A minha mãe, Souat, nasceu há 71 anos no Líbano, de onde os pais dela, meus avós, decidiram sair para fugir das guerras e dos problemas financeiros", conta a advogada e professora Samira Andraos Marquezin.."A cultura libanesa permeou toda a minha infância, dos Natais na casa da minha avó Violeta, libanesa, à gastronomia, da música às histórias de lá que todos contavam, por isso carrego o Líbano no meu nome e no meu coração, e já até visitei duas vezes o lindo país"..O futuro."O momento da explosão", continua Samira, "foi um choque muito grande, até porque como quase toda a família do lado da minha mãe mora lá, e eu tenho muito contacto com eles, eu senti a tragédia como se fosse no quintal da minha casa"..A explosão, equivalente a um sismo de 3,3 na escala de Richter, ocorrida pouco depois das 18.00 no horário local - 15.00 em Portugal, 11.00, no Brasil - matou cerca de 200 pessoas, feriu em torno de 7000, levou ao desaparecimento de mais de cem, causou prejuízos materiais na ordem dos 15 mil milhões de dólares e derrubou o primeiro-ministro Hassan Diab..A causa mais provável da tragédia foi a detonação de milhares de toneladas nitrato de amónio num armazém..No Brasil reza-se pelo território onde Cristo, segundo o Novo Testamento, realizou o primeiro milagre - transformou água em vinho nas Bodas de Canaã. "Oremos, portanto, para que, mais uma vez, o povo sofrido do Líbano se reerga, como sempre se reergueu", finaliza Samira.