O "Impacto do gato doméstico na biodiversidade" é o tema que o cientista espanhol Miguel Clavero Pineda trará a Portugal este mês de abril na sua intervenção num fórum internacional de médicos veterinários. O investigador alerta para os riscos que colónias de gatos assilvestrados ou vadios representam: "são uma fonte muito importante de mortalidade para muitas espécies", particularmente em meios insulares..No passado mês de março, o Congresso dos Deputados espanhol deu luz verde à aprovação da Lei de Proteção dos Direitos e Bem-Estar dos Animais, cujo projeto inicial havia sido apresentado pelo Governo espanhol no verão de 2022. A nova lei no âmbito do Ministério dos Direitos Sociais e pela Agenda 2030 pretende regulamentar "o reconhecimento e proteção da dignidade dos animais" e estabelecer mecanismos legais para "impedir o elevado grau de abandono" em Espanha, assim expõem os princípios da norma..A presente lei não nasceu isenta de polémica no país vizinho. Em julho de 2022, um artigo assinado por 13 cientistas espanhóis na revista Conservation Science and Practice, chamou a título as seguintes palavras: "Leis emergentes não devem proteger gatos vadios e os seus impactos"..Sustenta o artigo que "como se concentra em algumas espécies domésticas, o projeto entra em conflito com várias leis europeias e espanholas e com as principais estratégias de gestão para a conservação da biodiversidade. O projeto dá atenção especial às colónias de gatos vadios, ou seja, grupos de alta densidade de gatos sem dono, sustentados por uma provisão artificial de recursos"..Entre os autores do artigo encontra-se Miguel Clavero Pineda, Cientista Sénior na Estação Biológica de Doñana, doutorado em Biologia pela Universidade de Huelva, autor de inúmeras publicações sobre espécies invasivas. O investigador virá a Portugal como palestrante no 10.º Encontro de Formação da Ordem dos Médicos Veterinários, de 14 a 16 de abril..No referido encontro, Miguel Clavero Pineda vai orientar a palestra "Impacto do gato doméstico na biodiversidade". De acordo com o cientista, citado no artigo de agosto de 2022, "Criticism of the Animal Protection Law", publicado no site Science Media Centre Spain, "os gatos são uma ameaça para uma grande variedade de espécies nativas, incluindo muitas espécies ameaçadas de extinção, e este é um problema particularmente agudo nos arquipélagos das Baleares e Canárias (...) embora apreciemos o progresso que esta lei traz para os direitos dos animais domésticos, acreditamos que a lei deve concentrar-se na proteção do bem-estar de animais de estimação ou selvagens em cativeiro, e gatos sem dono não são animais de estimação". Mote para conversarmos com o especialista a propósito de um tema que não é consensual. No seu país, mostrou-se crítico em relação à nova Lei de Proteção, Direitos e Bem-Estar Animal. Em seu entender a lei entra em conflito com os objetivos de conservação da biodiversidade. Porquê? Em Espanha, como em qualquer outro país, é necessária uma lei sobre a proteção dos animais. Mas, defendemos que uma lei como aquela a que se refere deveria centrar-se em animais que tenham um responsável, uma pessoa que seja "dona" desse animal. Para o resto dos animais, a fauna silvestre, que não está sob a responsabilidade de uma pessoa, não faz sentido legislar sobre o bem-estar, pois geram-se situações indesejáveis. É o caso dos gatos vadios. A lei protege-os como indivíduos, ignorando os muitos impactos que esses animais causam na biodiversidade. E, ao falar de biodiversidade refiro-me a outros animais que vivem e sentem como os gatos, mas não tiveram a sorte de ser gatos..Destaquedestaque"A sociedade é muito parcial face a uma série de animais com características específicas, que tendemos a humanizar, esquecendo os animais que não cumprem esses "requisitos"".Um dos pontos que mais critica é o conceito de "animal urbano". Diz mesmo que houve no legislador a tentativa de garantir a proteção de certas espécies invasoras. O que o preocupa nesta questão? Preocupa-nos que "animal urbano" seja um conceito muito difuso, impossível de definir adequadamente e que foi introduzido na norma com a ideia de limitar a gestão de animais específicos, principalmente papagaios invasores e, talvez, pombos urbanos. E o grave dessa fixação em animais específicos é que a gestão de problemas ambientais gravíssimos está condicionada aos gostos e vínculos de uma parte da sociedade. Esta é muito parcial face a uma série de animais com características específicas, que tendemos a humanizar, esquecendo os animais que não cumprem esses "requisitos". O que propomos é que, se as preferências subjetivas por determinados animais forem transferidas para preferências na gestão da biodiversidade, estaremos a favorecer uma homogeneização da vida selvagem, promovendo as espécies de que gostamos. Muitas dessas espécies são invasoras, justamente por gostarmos tanto delas..Nas posições que tomou no seu país face à nova lei sublinha que esta não deve proteger os gatos assilvestrados ou vadios. Porquê? São predadores que encontramos no meio ambiente em densidades muito elevadas, sendo incentivados pelo apoio das pessoas, principalmente sob a forma de alimento e abrigo. Estes animais são uma fonte muito importante de mortalidade para muitas espécies e, desta forma, uma fonte de mortalidade não natural e isso deve-se às decisões das pessoas. Devemos fazer o possível para evitar esse dano, retirando os gatos do meio ambiente..Os gatos em colónias, quando bem alimentados, ainda constituem um perigo para as espécies selvagens? Sim, gatos bem alimentados, quer vivam em casa ou na rua, continuam a caçar..Não vê então como positivo o facto de concedermos a estes animais apoio nutricional e veterinário? Por exemplo, a instituição da figura de cuidadores voluntários destes animais ou a sua esterilização para que não se reproduzam? A esterilização e os cuidados nutricionais e veterinários são importantes, mas sem livre acesso dos animais ao exterior. Algo que é válido para gatos com dono e sem dono..Que efeitos negativos têm estes gatos assilvestrados nas áreas rurais e urbanas? Tem números que sustentem este impacto negativo em diferentes ambientes? Foram feitos estudos em diferentes pontos do planeta e todos concordam com o enorme volume de mortalidade causada por gatos. Esses números foram obtidos através de diferentes métodos, mas os resultados são muito consistentes. Os impactos são especialmente graves nos ecossistemas insulares, sendo as implicações da lei aprovada em Espanha muito graves para a conservação das espécies endémicas das Canárias e das Baleares..Destaquedestaque"Estes gatos [vadios ou assilvestrados] são uma fonte muito importante de mortalidade para muitas espécies, uma mortalidade não natural - e isso deve-se às decisões das pessoas.".Que medidas deveriam ser tomadas para evitar a proliferação destes animais? O acesso dos gatos ao exterior deve ser evitado tanto quanto possível, algo que também tem efeitos positivos nos próprios gatos. Isso inclui manter os territórios dos gatos confinados ao local onde está o dono, ou seja, dentro de casa. Há que manter os gatos sem dono fora do meio ambiente. Existem inúmeras formas de fazer isso sem que envolva qualquer recurso ao sacrifício. No entanto, a opção de sacrifício pode ser a única disponível em alguns casos, como gatos completamente selvagens, não socializáveis, que se alimentam, por exemplo, de lagartos gigantes [Gallotia stehlini] e outras espécies endémicas das Ilhas Canárias..Está consciente que esta sua tomada de posição sobre os gatos não é bem acolhida por alguns setores da sociedade? Claro. Experiencio isso com frequência. Mas, praticamente qualquer posição so bre questões públicas não é bem recebida por este ou aquele setor da sociedade e nada pode ser feito para evitar isso..dnot@dn.pt