Uma herdade ou a memória de um Portugal que não se apaga. Tiago Guedes consegue com A Herdade o fôlego épico que o cinema português já não se lembrava de fazer..A história imaginada pelo escritor Rui Cardoso Martins a partir de uma ideia do produtor Paulo Branco tem qualquer coisa que crava a essência da história recente de um país. O esplendor e a desgraça de Portugal durante 40 anos, da véspera do 25 de Abril até ao final do século passado. Com histórias cruzadas que relatam lutas de classe, movimentação política, incesto e um sonho de grandeza, A Herdade [que esteia nesta quinta-feira nas salas de cinema portuguesas] assume sem problemas uma ideia de fôlego épico. Mas o que é verdadeiramente relevante no filme é a serenidade dramática com que Tiago Guedes sugere todo esse ímpeto de odisseia..Em Toronto, em pleno Toronto International Film Festival (TIFF), na véspera da sua projeção, sentia-se uma curiosidade grande em torno do filme, sobretudo após a sua exibição na competição oficial de Veneza. Diana Sanchez, a programadora que o selecionou para a Special Presentations, fez uma aposta forte quando o colocou na Special Presentations, uma das secções de luxo do festival, aquela que alavanca filmes americanos com pretensões aos Óscares e que dá destaque aos títulos mais relevantes..A própria diretora do festival, a portuguesa Joana Vicente, dizia ao DN a forma como estava orgulhosa em ter o seu filme no TIFF. O resultado foi uma casa quase cheia na estreia no TIFF Bellbox1, a sala maior do complexo principal do festival. Para um filme falado em "língua estrangeira" e com quase três horas, foi a primeira vitória do filme. A segunda, o facto de a maior parte do público ter ficado para uma conversa no final com Paulo Branco, Tiago Guedes e o ator principal Albano Jerónimo, genial no papel do dono da herdade onde tudo se passa..Arlindo Beça, proprietário da Food & Wines of Portugal, empresa que leva ao Canadá os melhores vinhos portugueses e figura proeminente da comunidade portuguesa em Toronto, esteve na estreia e sentiu-se tocado com o filme: "Gostei muito do que vi. Senti que a comunidade portuguesa aqui em Toronto ficou sensibilizada pelo impacto do filme neste festival. Do que pude perceber, não foram só os portugueses que gostaram de A Herdade. É um filme que chega a muitos públicos.".À parte dos festivais, nesta semana há mais um feito conquistado: a Academia de Cinema Portuguesa escolheu A Herdade para representar Portugal nos próximos Óscares. Decisão correta, sobretudo por consagrar um título que depois de Veneza e Toronto ganhou nomeada no mercado internacionalmente..Além do mais, fala-se de que The Domain, título internacional, pode conseguir distribuição nos EUA, coisa que poderia tornar menos utópica a sua chamada para a shortlist dos melhores cinco (aí, Dor e Glória, de Almodóvar, e Parasitas, de Bong Joon-Ho, parecem já ter lugar cativo). O que pode colocar algumas interrogações sobre o facto de se ter desprezado as hipóteses de Vitalina Varela, o deslumbrante filme de Pedro Costa. Convém lembrar que as regras para a proposta da obra para os prémios da academia implicava estreia ainda em setembro - Vitalina Varela estreia-se a 31 de outubro....Para quem pergunta se A Herdade é um marco no cinema português, a resposta é clara: obviamente que é. Um objeto de cinema que repensa um desígnio de um destino português, colocando na mesa questões como o peso da reforma agrária, a sua ressaca, a forma como a banca veio a intervir nos latifúndios e tantos outros espelhos que consubstanciam a fatura do 25 de Abril..Mais do que tudo, é um filme que repensa o peso do silêncio como elemento dramático. Um testamento sobre um machismo e uma doença portuguesa. A personagem Albano Jerónimo, o dono da imensa herdade que dá título ao filme, é um paradigma de uma forma de ser português, mesmo quando destrói todos os que ama. A Herdade, mais do que ser um compêndio de referências cinéfilas (que vão desde o melodrama clássico de Hollywood a Bertolucci), é algo muito nosso. Tão português, tão verdadeiro.
Uma herdade ou a memória de um Portugal que não se apaga. Tiago Guedes consegue com A Herdade o fôlego épico que o cinema português já não se lembrava de fazer..A história imaginada pelo escritor Rui Cardoso Martins a partir de uma ideia do produtor Paulo Branco tem qualquer coisa que crava a essência da história recente de um país. O esplendor e a desgraça de Portugal durante 40 anos, da véspera do 25 de Abril até ao final do século passado. Com histórias cruzadas que relatam lutas de classe, movimentação política, incesto e um sonho de grandeza, A Herdade [que esteia nesta quinta-feira nas salas de cinema portuguesas] assume sem problemas uma ideia de fôlego épico. Mas o que é verdadeiramente relevante no filme é a serenidade dramática com que Tiago Guedes sugere todo esse ímpeto de odisseia..Em Toronto, em pleno Toronto International Film Festival (TIFF), na véspera da sua projeção, sentia-se uma curiosidade grande em torno do filme, sobretudo após a sua exibição na competição oficial de Veneza. Diana Sanchez, a programadora que o selecionou para a Special Presentations, fez uma aposta forte quando o colocou na Special Presentations, uma das secções de luxo do festival, aquela que alavanca filmes americanos com pretensões aos Óscares e que dá destaque aos títulos mais relevantes..A própria diretora do festival, a portuguesa Joana Vicente, dizia ao DN a forma como estava orgulhosa em ter o seu filme no TIFF. O resultado foi uma casa quase cheia na estreia no TIFF Bellbox1, a sala maior do complexo principal do festival. Para um filme falado em "língua estrangeira" e com quase três horas, foi a primeira vitória do filme. A segunda, o facto de a maior parte do público ter ficado para uma conversa no final com Paulo Branco, Tiago Guedes e o ator principal Albano Jerónimo, genial no papel do dono da herdade onde tudo se passa..Arlindo Beça, proprietário da Food & Wines of Portugal, empresa que leva ao Canadá os melhores vinhos portugueses e figura proeminente da comunidade portuguesa em Toronto, esteve na estreia e sentiu-se tocado com o filme: "Gostei muito do que vi. Senti que a comunidade portuguesa aqui em Toronto ficou sensibilizada pelo impacto do filme neste festival. Do que pude perceber, não foram só os portugueses que gostaram de A Herdade. É um filme que chega a muitos públicos.".À parte dos festivais, nesta semana há mais um feito conquistado: a Academia de Cinema Portuguesa escolheu A Herdade para representar Portugal nos próximos Óscares. Decisão correta, sobretudo por consagrar um título que depois de Veneza e Toronto ganhou nomeada no mercado internacionalmente..Além do mais, fala-se de que The Domain, título internacional, pode conseguir distribuição nos EUA, coisa que poderia tornar menos utópica a sua chamada para a shortlist dos melhores cinco (aí, Dor e Glória, de Almodóvar, e Parasitas, de Bong Joon-Ho, parecem já ter lugar cativo). O que pode colocar algumas interrogações sobre o facto de se ter desprezado as hipóteses de Vitalina Varela, o deslumbrante filme de Pedro Costa. Convém lembrar que as regras para a proposta da obra para os prémios da academia implicava estreia ainda em setembro - Vitalina Varela estreia-se a 31 de outubro....Para quem pergunta se A Herdade é um marco no cinema português, a resposta é clara: obviamente que é. Um objeto de cinema que repensa um desígnio de um destino português, colocando na mesa questões como o peso da reforma agrária, a sua ressaca, a forma como a banca veio a intervir nos latifúndios e tantos outros espelhos que consubstanciam a fatura do 25 de Abril..Mais do que tudo, é um filme que repensa o peso do silêncio como elemento dramático. Um testamento sobre um machismo e uma doença portuguesa. A personagem Albano Jerónimo, o dono da imensa herdade que dá título ao filme, é um paradigma de uma forma de ser português, mesmo quando destrói todos os que ama. A Herdade, mais do que ser um compêndio de referências cinéfilas (que vão desde o melodrama clássico de Hollywood a Bertolucci), é algo muito nosso. Tão português, tão verdadeiro.